A descolonização de um museu

Faz falta a Lisboa um grande museu sobre a expansão marítima e todas as suas consequências. E também faz falta um museu que descolonize definitivamente os museus, que devem ser lugares de conhecimento e não lugares ao serviço de narrativas encomiásticas.

Faz falta a Lisboa, outrora capital de um Império colonial, um grande museu sobre o processo da expansão marítima e suas consequências. Todas as consequências: dos aspectos náuticos e comerciais, aos evangelizadores, colonizadores, escravizadores, traficantes. E tanto lá, aonde se chegou e ficou mais século menos século, como cá, até aos dias de hoje, nas práticas e valores das instituições de cultura e de conhecimento. Um museu desses não é fácil, porque tem de se confrontar com o passado de um forma problemática e ainda com o que têm sido os museus de história neste país. Ou seja, com o passado do país e com as maneiras de lidar com esse passado.

Por isso, também faz falta a Lisboa, capital deste país, um museu que descolonize definitivamente os museus, que devem ser lugares de conhecimento e não lugares ao serviço de narrativas encomiásticas, auto-referenciais, que segmentam e filtram o conhecimento adequado ao seu propósito. Isso é mais uma instituição de propaganda que um museu, mesmo se matizada com algum tributo à verdade e à discussão crítica. A intencionalidade de um museu deve ser a conservação, a transmissão e a experiência de conhecimento histórico.

O que se celebra é o conhecimento e não uma qualquer forma de mobilização ou adesão à acção. Bem o contrário do que foi a tradição em Portugal de usos da história para celebrações identitárias no período colonial, mas também no pós-25 de Abril, e sempre ancoradas na grande metáfora das descobertas. Foi assim com a exposição do mundo português de 1940, foi assim com a adopção do luso-tropicalismo como narrativa moderada e afectuosa das consequências das descobertas, mas, depois, também nos anos 90, a emular a sequência das datas de descobrimentos que se memorizava na escola básica, a Comissão dos Descobrimentos de 1992 e a própria Expo-98.

terra brasilis, invasão, etnocídio e apropriação cultural, 2015 desenho feito com pemba branca (giz utilizado em rituais de Umbanda) e lápis dermatografico sobre algodão preto 100 x 150 cmterra brasilis, invasão, etnocídio e apropriação cultural, 2015 desenho feito com pemba branca (giz utilizado em rituais de Umbanda) e lápis dermatografico sobre algodão preto 100 x 150 cm

 

A palavra “descobertas”, com as suas intencionalidades implícitas, devia ser ela mesma um objecto museológico da história colonial e dessa outra história da colonização do conhecimento e da cultura histórica do país por um identitarismo pouco dado à discussão crítica. Precisamente uma discussão que facilmente expõe na experiência da “descoberta” uma unilateralidade apenas inteligível através de uma inumanização daqueles outros que lá estavam e que foram encontrados. Mas talvez mais significativo é que  o termo “descobertas” tem sido a designação genérica para um conjunto de factos históricos incomparavelmente menos relevantes que o conjunto dos factos que, à escala global, formaram o mundo que hoje temos: a “colonização”, o “tráfico de escravos”, a “migração forçada em massa”.

E, no entanto, enquanto designação genérica é como se as “descobertas”, essa gesta de expedições marítimas, fossem o verdadeiro denominador comum, genuína intencionalidade, decerto benigna, da expansão portuguesa. Se o português é hoje uma língua mundial ou se houve a miscigenação do Brasil essas são consequências históricas de uma ordem de dominação em grande escala, que deve ser estudada por historiadores e deve poder ser conhecida e reconhecida em vez de continuar a ser obscurecida por narrativas celebratórias de feitos heróicos e estados de ânimo amistosos.

Um museu que se chame “das Descobertas”, logo à partida, não romperá com essa visão benigna falsificadora do passado que, implicitamente, cauciona a continuidade do imaginário expansionista como motor das representações de modernidade do país, transmutadas em jeitos para a diplomacia e para a cooperação, para comunidades alargadas, lusofonias, soft power, cargos internacionais, secretários-gerais das Nações Unidas, etc. Não que tudo isto não possa justificar-se, simplesmente não a partir daquele imaginário. Renunciar a este embuste, o que não está adquirido, é algo que devemos ao mundo que fizemos e a nós próprios, no escasso sentido político que pode fazer falar-se na primeira pessoa do plural.

Hoje, contudo, há uma pressão restauradora, com fontes em muitos quadrantes na nossa sociedade, a que não se deve oferecer um compromisso. Um museu das Descobertas, a mesma designação de um Padrão colonial, meio século depois do fim do império colonial, ou uma estátua paternalista do Padre António Vieira, ou políticas de nacionalidade que reconhecem tão poucos direitos a quem nasce neste país sem sangue português quando se conferem tantos direitos (e bem) a quem com ele só tem uma ligação remota no seu passado, todos estes exemplos, e muito mais, vão seguindo um padrão preocupante: esbatem uma diferença que esperaríamos fazer cumprir entre um antes e um pós 25 de Abril.

 

Artigo publicado originalemente no Jornal Económico.

por André Barata
A ler | 27 Abril 2018 | colonialismo, debate, descolinizar museus, museu das descobertas, políticas de memória