Uma ilha na Suiça

Aqui a crise não domina as conversas ou as letras gordas dos jornais. Terra sinónimo de bancos bem recheados, relógios de cuco e emigrantes que de lá vêm “novos-ricos”, a Suíça é por enquanto uma ilha na Europa. Mas esta ilha também tem “ilhas”.

Caminhar pela pequena vila Suíça de Stein, junto à fronteira com a Alemanha, é um mergulho num postal onde as casas e ruas imaculadas apenas deixam espaço para um sossego entediante, quebrado apenas pela sensação de que tudo não passa afinal de um cenário de um filme que ainda não chegou a rodar, de tão pouco usado que tudo parece.

O número 6 de uma rua por detrás da estação de comboio é a excepção rodeada de perfeição por todos os lados. É ali o centro de asilo para refugiados políticos de Stein.

Ao entrar na porta sem trinco, fica no corpo a sensação de que estamos noutra realidade. Os rostos quea habitam confirmam que a perfeição ficou à porta. Pergunto pelo Marchal, o guineense que ontem conheci na estação de Basel e com quem, por ouvir falar crioulo, meti conversa. Tínhamos combinado que passaria cá hoje para um pouco de djumbai – convívio.

Nem o iraniano nem o curdo que ali estão sabem dele, voltam ao que estavam a fazer na sala cujo vazio é apenas interrompido pelo ruído monótono de uma televisão empoeirada. Seguindo as sugestões dos seus dedos, procuro na casa do lado. Uma porta escancarada dá para uma cozinha fria vestida de branco sujo e ocupada apenas por um fogão a gás sem nada ao lume. Outro curdo sugere com as mãos que eu tente o andar de cima.

Ouço vozes enquanto subo os estreitos degraus de madeira. Soa a árabe. Vários tunisinos fumam e conversam à volta de uma mesa. Não se avista mais nada na sala. Calam-se e olham-me de lado. Os olhares fixam-se em mim. Marchal? “Un garçon noir?” “Je ne sais pas”.

Tento mais uma porta silenciosa enquanto passa um rapaz no corredor. “Tu connais Marchal?” “Biensur!” “Il est de Guinée-Bissau aussi” Braima é afinal também guineense e a conversa segue em crioulo. “O Marchal foi à rua e ainda não chegou, mas senta-te aqui connosco” - e abriu-se a porta do quarto numa penumbra.

Três homens assistem a um sitcom senegalês numa televisão que já não mostra a totalidade da imagem. Vẽm da Gâmbia, da Guiné-Bissau, da Guiné-Conacry. Dentro destas encolhidas quatro paredes, recebem-me sorridentes e apontam para a cadeira menos estragada. Um deles janta arroz e faz um gesto que me convida a comer do seu prato.

Mussá, o gambiano, sorri ao falar da Gâmbia, dos gambianos e da sua felicidade ensolarada. O sorriso desfaz-se quando conta como chegou de barco à Europa. “Se eu soubesse tinha ficado na Gâmbia”, atira Mussá. Fala da viagem de barco do Senegal para a Mauritânia, da ida por terra dali até Marrocos e da travessia do Mediterrâneo num pequeno barco apinhado que, ao contrário de muitos outros, atingiu uma qualquer praia do sul de Itália.

Evita os pormenores de como conseguiu entrar na Suíça sem papéis. Não importa, chegou ao destino. Mas não encontrou o que esperava. “Passei mal para chegar aqui, onde todos são ricos, para viver como um animal”.

Da janela vê-se a tranquilidade da Suíça, as suas casas espaçosas de grandes janelas que adivinham um interior bem acima do confortável. Deste lado do vidro, Mussá divide o pequeno quarto com cinco companheiros.

Não só na Gâmbia, mas um pouco por todo o continente africano subsiste a ideia do “el dorado” europeu, a terra da oportunidade e da riqueza fácil. A ideia que os trouxe aqui.

O pedido de asilo raramente é concedido e é difícil provar que não emigraram por motivos económicos. O estado procura a triagem entre os que realmente são candidatos ao asilo, aqueles que conseguem provar serem perseguidos por motivos políticos, ideológicos, morais ou religiosos no país de origem. Os restantes, a grande maioria, serão recambiados.

As longas entrevistas sucedem-se, muitos “desaparecem” do centro do asilo antes do fim do processo para arriscar uma permanência ilegal e incerta no país. Os que ficam arrastam a pouca esperança que resta daquela que os trouxe até cá. Ganham tempo. “Talvez case com uma mulher Suíça. Talvez apareça um trabalho qualquer…” diz Mussá. Já se importou mais. Todos os dias pensa é em voltar para a Gâmbia. Mas por enquanto teima em tentar levar daqui alguma coisa para lá abrir um negócio.
“Brother, na África as pessoas recebem-te, dão-te comida se precisares. Não precisas de tanto dinheiro para viver, e se for preciso até vives sem dinheiro… Aqui? Esquece”.

O estado suíço chama-lhe “apoio financeiro aos requerentes de asilo político” mas estes homens chamam aos 70 francos suíços semanais uma anedota. “Não sei o que querem que façamos com isto. Com os preços suíços, não dá para nada”.

Calcula-se que para uma vida “digna” nesta parte da Suíça sejam necessários cerca de 3.500 francos por mês, bem acima dos cerca de 280 que aqui recebem.

“Mas ‘tá-se bem. Sei que não vou ficar muito mais tempo. A África chama por mim e em breve voltarei para casa”.

por Fernando Naves Sousa
Vou lá visitar | 7 Abril 2012 | emigrantres, política migratória