Retrato em branco, pardo e negro

1. No eixo Ipanema-Leblon ninguém diria, mas a maioria da população brasileira não é branca. Foi uma novidade do último censo: pela primeira vez em décadas o Brasil apareceu como um país sobretudo mestiço ou negro. Entretanto, nos liceus, nas universidades, nos escritórios, os negros em destaque continuam a ser a excepção. Destacam-se negros no desporto e nas artes, sobretudo na música. O negríssimo Seu Jorge é um símbolo sexual, mas experimentem dizer isso no eixo Ipanema-Leblon. Elas vão dizer: com todo o respeito, isso não.

E tenho as maiores dúvidas de que a linda Camila Pitanga fosse a sensação nua de que toda a gente neste momento fala — a propósito do filme “Eu Aceitaria as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios” — se não fosse uma afrodescendente tão morena-clara, nariz fino, cabelo quase liso, mantendo da herança negra aquilo que o canône brasileiro admite: pele morena e lindos lábios (que até já foram capa para um disco de João Gilberto).

Aliás, o filme é basicamente ela, pele morena e lindos lábios, ainda que a generosidade de Caetano Veloso o veja ir além.

Mas Caetano, mestiço que como ninguém sonha o Brasil mestiço, é o único jovem poeta de carne e osso que eu sigo.

 

2. O que o censo diz é isto: em 190,7 milhões, 96,7 milhões declararam-se negros ou pardos (o termo para mestiços usado pelo IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que conduz o censo). Isto significa 50,7 % da população, com 7,6 % a declararem-se negros e 43,1 % pardos.

Desdobrando em número de gente: o Brasil tem 14,5 milhões de negros (um Portugal e meio) e 82,2 milhões de pardos (mais de oito Portugais).

É a segunda maior população mestiça do mundo depois da Nigéria.

 

 

3. Os avós de todos eles são os africanos trazidos à força, os índios catequizados à força e a mistura à força de africanos e índios com brancos, sendo que esses brancos eram os portugueses. Há 200 anos o Rio de Janeiro tinha o maior porto negreiro do mundo, recentemente redescoberto nas obras de recuperação da zona portuária. Involuntariamente, a febre da Copa e das Olimpíadas desenterrou os ossos da história: o porto do Rio foi entrada para cinco milhões de negros até 1831, quando o tráfico começou a ser contrariado. E ainda demorou meio século até a escravatura ser proibida, em 1888.

Seguiram-se vagas de imigração não-negra para o Brasil: judeus em fuga às perseguições na Europa, árabes e turcos das regiões mais pobres, alemães, italianos, portugueses, japoneses. No século XX, o Brasil dos censos foi, por um triz, maioritariamente branco.

Mas nos liceus, nas universidades ou nos escritórios parecia exclusivamente branco. Os negros com ensino médio ou superior ou emprego formal eram a excepção.

E os ossos negros da história foram ficando para trás.

 

4. Em 1993 a Unesco começou a traçar uma “Rota dos Escravos” no mundo, com a colaboração de todos os países onde essa herança é relevante. Só na semana passada, o Brasil divulgou o seu “Inventário dos lugares de memória do tráfico atlântico de escravos e da história de africanos escravizados no Brasil”. Um trabalho que indica “os 100 lugares representativos da maior tragédia de mudança forçada da história”, disse ao “Globo” o antropólogo Milton Guran, responsável brasileiro pelo estudo. Países “com menos histórico de escravos negros, como o Paraguai ou a Argentina” já tinham feito o inventário há anos.


5. Este último Censo Demográfico 2010, cujos resultados ainda continuam a ser divulgados, dá conta de muitas outras desigualdades na sociedade brasileira.

Desde 2000, o trabalho formal aumentou quase 10 % — os trabalhadores protegidos socialmente são agora mais de 70 % — e o rendimento da população cresceu 5,5 %. Mas também mais de 70 % dos trabalhadores ganha menos de 500 euros. E esses estão sobretudo no Norte e no Brasil rural.

Ou seja, enquanto que em São Paulo ou no Rio se negoceia o metro quadrado mais caro do mundo, e os preços em geral começam a estar à altura disso, embora só uma minoria ganhe salários à altura disso, o rendimento médio no Nordeste é de 377 euros.

E nos subúrbios do Rio ou São Paulo, os que ganham menos, os que têm de usar transportes públicos, são os que levam mais tempo a chegar ao trabalho. No estado do Rio, quase um terço da população leva mais de uma hora para chegar e há municípios onde 20 por cento leva duas horas, porque os transportes simplesmente não estão integrados.

Então o que o novo censo mostra é um país a avançar nos índices de desenvolvimento humano — como há dias destacou o Nobel Amartya Sen, que aqui esteve em palestras —, com a taxa de mortalidade infantil a cair para metade (de 29,7 para 15,6). Mas também um país assimétrico que, sendo a sexta economia do mundo, ainda tem quase metade da população sem o ensino básico completo e a receber salários que não acompanham o crescimento.

É desse lado da assimetria, o dos que há muito são pobres e ainda são pobres, que estão os negros e mestiços. Segundo o censo, o rendimento médio mensal de negros, pardos e indígenas é praticamente metade do da população branca e amarela. E a taxa de analfabetismo é mais do dobro.

 

6. Então leio na imprensa brasileira editorialistas e colunistas ultrajados com a recente decisão unânime do Supremo Tribunal Federal de julgar constitucionais as cotas para negros e pardos nas universidades públicas. Porque o Brasil, escrevem, passa a ser um país racializado. Porque a raça, escrevem, passa a ser um critério. Claro, ninguém quer que a raça seja um critério, a começar pelos negros e pardos que são a maioria do Brasil. Mas, claro, a questão é que a raça já é, tem sido, sempre foi, um critério. As cotas não criam um critério, invertem um critério para que ele desapareça.

O Brasil do futuro não quer ter critérios raciais, quem discordará disto? Será um sinal de que já não precisa deles, desenterrou os ossos negros da história, foi em frente. Mas são sempre os que têm presente que põem o futuro à frente dos outros.

E como mostra o censo, esse Brasil do futuro, onde um casal preto e branco será comum, ainda não é.

 

publicado no jornal Público, 6-5-2012 e no blogue Atlântico Sul  

por Alexandra Lucas Coelho
Vou lá visitar | 13 Maio 2012 | Brasil, Caetano Veloso, Camila Pitanga, censos, democracia racial, negro