O devir-cabo verde: Repúblika, 2014, de César Schofield Cardoso e a arte como renovadora da utopia e da identidade

Em Repúblika, 2014, César Schofield Cardoso foca as questões da identidade cabo-verdiana, o seu posicionamento no mundo, a liberdade e poesia, como utopias orientadoras da autodeterminação de um povo. 

Realizada através de um convite feito pela Presidência da República de Cabo Verde no âmbito das comemorações dos 40 anos da morte de Amílcar Cabral, de 13 a 20 de Janeiro de 2014, Repúblika é uma instalação multimédia constituída por três vídeos: #Nacionalidade (8´30´´), #Territorialidade (2´30´´); # Identificabilidade (1´30´´).

#Nacionalidade (8´30´´), que mostra a fragilidade da conquista da liberdade realçando-a não como uma essência mas como um processo sempre em devir. O vídeo contrapõe cenas de comemorações da independência de Cabo Verde em vários anos, na Praia e em Mindelo, com imagens das campanhas eleitorais retiradas, respetivamente, do Arquivo da Assembleia Nacional e do Arquivo da Televisão Nacional. Esse devir é um devir-consciência enquanto povo que se expressa pela palavra, pela vitória de um jogo internacional de futebol, por um gesto, uma forma de pentear o cabelo, pela música.

#Territorialidade reflete sobre a condição insular. A paisagem da ilha é, enquanto conceito, abarcável no seu todo; é a imagem de um micromundo. Por outro lado, as ilhas podem ser observadas de um ponto de vista exterior e móvel, pois a sua circularidade permite olhar em redor. A ilha é, simultaneamente, aberta para o mundo e fechada sobre si. Separada do mundo pelo mar, está, também, pelo mar ligada a todo o mundo. Por outro lado, nas ilhas, a paisagem não é vista como algo a contemplar esteticamente, algo longínquo, mas sim de dentro, substituindo a experiência do corpo e a sua interação com a paisagem. Assim, a ligação dos cabo-verdianos com a terra é visceral, sendo regulados pelos ciclos da Natureza.

Segundo a distinção dos geógrafos adotada por Gilles Deleuze1, as ilhas de Cabo Verde são ilhas oceânicas, sendo originais no sentido em que surgem de um movimento do fundo do mar, tornando visível a terra submersa. Nesse sentido, a sua existência é como a de um organismo vivo, desaparecendo ou reaparecendo, consoante são submersas pelo mar ou oriundas da erupção vulcânica. São, assim, o testemunho de uma luta sem fim, não apenas entre a terra e o mar, mas também entre a sua vontade de soberania e as forças exteriores às quais estão expostas devido à vasta superfície de oceano que as circunda. Neste contexto, são aqui denunciadas as questões da pesca estrangeira abusiva que ameaça delapidar os recursos marinhos de Cabo Verde, do tráfico de homens e de armas e da imigração forçada em condições por vezes desumanas. O decurso da existência insular do homem apresenta-se como uma constante conquista pela liberdade, no gume entre a vida e a morte, apenas vivível através da constante reconquista de uma nação e de uma constante invenção.

Enquanto #Territorialidade foca a abertura para o exterior, o último vídeo, # Identificabilidade, foca o voltar-se para si de Cabo Verde. Vemos uma sequência de imagens mudas, maioritariamente do tempo colonial, retiradas do Arquivo Histórico e invertidas a 90º, numa possível metáfora da mudança de posicionamento relativamente ao passado histórico do arquipélago. Estas imagens questionam a política de representação e o modo como os indígenas eram retratados, através da inserção sub-reptícia de imagens contemporâneas de thugs. O termo Thug, derivado do acrónimo Thug live, popularizado pelo rapper norte-americano 2Pac, é geralmente associado a grupos de jovens delinquentes, constituindo também, no entender do sociólogo Redy Lima, “uma forma de afirmação pessoal, social e identitária e de empoderamento”. De facto, como Foucault assinalou2, se a inventariação e sistemática categorização negativa de tudo o que não corresponde à imagem de normalidade que o homem branco ocidental fez da sua média, elegendo-a à categoria de homem universal, aumentou a superfície exposta ao controlo social, paradoxalmente, a apropriação dessas mesmas categorias por algumas minorias subverte esse processo, carregando essas mesmas categorias, assumidamente, de um conteúdo simbólico positivo, contribuído, assim, para a emancipação dessas minorias.

De facto, com a democracia e a desagregação dos agentes que moldavam ideologicamente os jovens na doutrina comunista, estes organizaram-se em grupos de resistência ao poder dominante adotando um modelo de rebelião face ao poder estabelecido. Esta autodeterminação, ainda que sob a influência americana, contrasta com o papel passivo para onde, no período colonial, os cabo-verdianos eram remetidos nas representações dos “indígenas”, imagem do “selvagem” a quem era missão dos colonizadores trazer as luzes da civilização, legitimando, deste modo, a sua ação colonizadora e elidindo a história forjada a ferro e a fogo através da escravatura e do trabalho forçado. 

No final do vídeo, a esperança, é representada por uma jovem mulher que, no seu gesto natural e autoconfiante de trazer o saco à cabeça e a criança enrolada às costas, se constitui como uma promessa do futuro: os gestos do quotidiano sobrevivem à opressão e vicissitudes históricas e perduram de geração em geração como património imaterial e capital cultural de uma nação.

Só poderá haver liberdade e autodeterminação quando existir consciência histórica enquanto povo, em que a reconstituição da memória e da ligação histórica a África seja essencial para Cabo Verde. Essa história silenciada terá que ser reescrita: para imaginar um futuro é necessário haver um passado, o qual tem as raízes em África. No contexto do desenraizamento provocado pelo processo de colonização, do qual faz parte o apagamento do sangue derramado, o papel da arte é essencial para restituir a densidade temporal roubada pela política de subjugação que reduz o tempo a um fugaz instante, sem passado para dar espessura, nem futuro para dar um sentido.

 

A criação artística é um veículo essencial de identificação e aprofundamento cultural: no desfraldar da bandeira da identidade cabo-verdiana e dos seus contornos, dando-lhe uma imagem e um caráter próprio, os seus artistas terão um papel primordial. É nesse resgate que se joga a República.

  • 1. Deleuze, Gilles. L´île déserte et outres textes et entretiens 1953-1974. Paris: Editions de Minuit.
  • 2. Foucault, Michel. Histoire de la sexualité. Paris: Gallimard, 1976: 101.

por Ana Nolasco
Vou lá visitar | 26 Fevereiro 2015 | arte, Cabo Verde, César Schofield Cardoso, utopia