Fui lá visitar artistas... contextos artísticos nos Camarões

Não se escapa ao espelho estilhaçado do país. Tudo pode acontecer num território complexo com cerca de 280 línguas faladas, correspondentes praticamente ao mesmo número de etnias. Pela sua complexidade climática, étnica, social, religiosa, os roteiros turísticos não se cansam de repetir que “os Camarões podem ser considerados uma África em concentrado”, onde cada deslumbramento do olhar é sucedido por uma crispação do olhar, sem tempo para refazermos cada imagem. A vida acontece em grand vitesse, tanto nas grandes cidades de Douala ou Yaoundé, como em Mamarom, a Oeste, onde as últimas velhas da aldeia produzem olaria em série, para ser vendida por todo o lado. Um país politicamente contraditório que, apesar de nos anos 60, ter contribuído com importantes activistas do fim dos colonialismos, prepara ainda a segunda etapa da independência, à sombra do governo de Paul Biya.

Tal como a maior parte da produção artística no continente, o espaço da arte contemporânea e a acção dos artistas transita com facilidade entre as fronteiras do institucional e do quotidiano, entre os domínios profíssional e não-profissional. À imagem do homem da etnia bamiléké, exímio comerciante e espírito empreendedor que, para além do “emprego fixo” na banca de tecidos no mercado, tem ainda a render quatro táxis, uma fotocopiadora de serviço, cultiva um terreno e negoceia cabras no mercado, a condição profissional dos artistas é absolutamente versátil. Os artistas são “artesãos” e são “artistas africanos contemporâneos”, para além de se entregarem a outros trabalhos donde extraem lucros. Na maioria das vezes, o conjunto da sua obra acusa o compromisso inevitável de um “portfolio” misto, entre as vendas que asseguram a sobrevivência e a linguagem independente.

Nos Camarões, o circuito da arte é pequeno. Os contextos artísticos de Douala, Bonendale, “Bandjoun Station” e Yaoundé não bastam para cumprir os palcos e as agendas curatoriais da arte contemporânea internacional. É por esta razão que os programadores e os artistas, circulam no exterior, maioritariamente entre Dakar, Paris, Amesterdão, Londres, Nova Iorque, Joanesburgo, organizando iniciativas que tragam gente de fora, curadores e galeristas internacionais, e consequentemente apoios ocidentais ao desenvolvimento.

Os artistas da diáspora têm um papel fundamental na projecção do nome do país no mapa da arte contemporânea, capaz de potenciar resultados colaterais. Ou seja, quando Samuel Fosso, Barthélémy Toguo ou Pascale Marthine Tayou expõem no “Palais de Tokyo”, no “Moderna Musset”, na Feira de Miami, na “Serpentine Gallery”, ou na Bienal de São Paulo, os curadores e galeristas do mundo inteiro, prolongam as pesquisas no terreno à procura de novos “toguos”, “fossos”, “tayous”, na expectativa de repetir os fenómenos do efeito “áfrica”.

 B. Toguo B. Toguo Mario Mauroner Contemporary Art Viena and the artist Mario Mauroner Contemporary Art Viena and the artist

Samuel Fosso I Autoportrait, Samuel Fosso I Autoportrait,

 

Ulisses e o Cão

Com grande expectativa, porém, surgem investimentos no país, por parte dos artistas que fizeram a sua carreira no exterior. No contexto camaronês, assistimos à criação de espaços de contestação e de imaginação a partir de contextos locais, que são protagonizados por alguns artistas da diáspora, entre os quais Barthélémy Toguo, Goody Leye, Joel Mpah Doph que actualmente põem em marcha projectos de intervenção social e cultural. De certa forma, como Ulisses que volta a Ítaca, os artistas regressam, restabelecem os laços e constroem casas. E à semelhança da epopeia, poucos reconhecem o herói na chegada, sintoma do alargamento dos espaços e das redes de construção da identidade. Como Ulisses que chega deslocado, e que Argos o fiel cão reconhece e confirma a identidade, assim são os artistas, no jogo dos vários papéis da diáspora – migrantes, emigrantes, imigrantes - simultaneamente o Ulisses e o cão.

É neste sentido que o conceito de “mondialité”, de Édouard Glissant, tem valor propositivo, concorrendo para a redefinição do estético, do político, do cultural e para uma nova epistemologia da arte. Opera nas comunidades de indivíduos conscientes de que a riqueza do mundo radica num “tout-monde” - espaço contrário ao “país” – e de que o património resultante é pertença de todos. Estamos longe dos modelos caducos dos estados-nação e no interior de uma cultura que se caracteriza pelas identidades flutuantes, onde os papéis dos indivíduos são cruzados, redistribuídos e potenciais. E é por isso que, num plano estético, fará sentido pensar as imagens e as produções dos artistas nos termos da proposta de Glissant, beneficiando deste suplemento cultural, ainda que sentindo a angústia criativa perante a superação dos anteriores modelos históricos (pós-coloniais).

a terra prometida de BARTHÉLEMY TOGUO

Em 2001, Barthélemy Toguo, apresentava em Nantes a instalação Terre Promise, uma pista de aviões inundada de destroços. Os doze metros cheios de pedras e lixo perturbavam as aterragens e as descolagens, e ridicularizava-se no título a imagem do Ocidente, a realização individual e o sucesso. Nesta instalação, como em grande parte da sua obra, Toguo falava sobre o constrangimento à mobilidade das pessoas no mundo. Terre Promise pode ser lida como a encenação satírica da “Jerusalém” da diáspora e dos seus artistas, uma alusão à “via sacra” da burocracia, dos vistos, dos papéis, das fronteiras que dividem, das ilusões frustradas, dos entraves ao sonho, dos logros que desesperam, da corrupção entranhada nos hábitos, nas esperas intermináveis por um malfadado carimbo.

 CIAC/ Bienal de S. Tomé e Príncipe/ foto de Inês Gonçalves Courtesy: Mario Mauroner Contemporary Art Viena and the artist CIAC/ Bienal de S. Tomé e Príncipe/ foto de Inês Gonçalves Courtesy: Mario Mauroner Contemporary Art Viena and the artist

Para chegar a Bandjoun Station, no Oeste camaronês das chefferies, faz-se o mesmo trajecto mental de Terre Promise, mas numa outra ordem de objectivos. Neste caso estamos mais perto da Terre Promise que Toguo propôs na Bienal de São Tomé, 2008, o mesmo dispositivo, mas completamente coberto de uma película fina e brilhante de alumínio. Amaldiçoamos os obstáculos que têm início logo nas embaixadas do país na Europa, mas posteriormente as paisagens absolverão todas as pragas.

Ainda na estrada internacional avista-se o edifício em altura, imponente no meio da vegetação densa dos altos planaltos. Basta perguntar pela “maison à étages”, numa analogia imprevista com Petit à Petit, um filme de Jean Rouch, em que um dos personagens decide construir um verdadeiro “building” nas margens do rio Níger. Imbuído de espírito e prática de antropólogo, viaja até Paris para observar como é que as pessoas vivem numa “maison à étages”, e aí descobre as curiosas maneiras de habitar da tribo parisiense.

Bandjoun Station  © Barthélèmy ToguoBandjoun Station © Barthélèmy Toguo

Bandjoun Station: inverter papéis

Bandjoun Station é um delírio visual para quem chega. O edifício principal é sincrético na composição dos elementos arquitectónicos, escultóricos e decorativos, na medida em que integra elementos da cultura local bamiléké (a decoração animalista das fachadas, a cobertura metálica), formas de construção contemporâneas (o betão, o cimento, os revestimentos industriais), uma aparência bulding up permanente, e uma forte marca autoral, através da introdução do bestiário de Barthélémy Toguo. Signos animais e vegetalistas a par de elementos apotropaicos protegem e vigiam esta “casa do mundo”.

Bandjoun Station é composto de quatro valências: “House”, “Visual Arts”, “Agriculture Project” e “Educational Project”, promovendo as vertentes pedagógica, cultural, agrícola, médica, formativa.

Em entrevista, B. Toguo refere que Bandjoun Station pretende ser “uma resposta à falta de projectos culturais no continente. Cada vez mais, é principalmente o Ocidente que expõe a criação africana contemporânea e que detém um olhar institucional sobre a produção. Foi nesse sentido que senti vontade de construir um lugar de troca e de vida onde os artistas internacionais pudessem vir para trabalhar e expor”

O projecto abriu as portas em Novembro de 2009 e a equipa interdisciplinar tem uma agenda para um período de dois anos, nas áreas da arte contemporânea, da dança, do cinema, da literatura, da antropologia, e da música. “A ideia é proporcionar encontros profissionais e espaços de colaboração entre agentes culturais de diversos campos artísticos. Temos doze residências bem equipadas, espaços de trabalho e de exposição, biblioteca, sala de conferências, apoio técnico para a produção e acervo permanente”.

Sete hectares de terreno na paisagem de Bandjoun constituem uma vertente paralela deste projecto artístico. Pretendem constituir-se como laboratórios de integração ambiental e de experimentação social, através da cultura intensiva do café, bem como de outras espécies locais que permitem a manutenção de uma agricultura autóctone e de uma ligação sustentada da comunidade à terra. Para Barthélémy Toguo não se trata de ter mais uns hectares para plantar, é preciso promover a consciência da riqueza natural dos Camarões e do seu usufruto pelas populações. “É um acto político forte onde a nossa sementeira de artistas fertilizará uma sementeira de café, um acto crítico que amplifica o acto artístico e denuncia aquilo de que Senghor falava, a deteriorização das condições de troca onde os preços de exportação impostos pelo Ocidente penalizam e empobrecem os agricultores do Sul”.

Barthélèmy Toguo em Bandjoun Station © Barthélèmy Toguo Barthélèmy Toguo em Bandjoun Station © Barthélèmy Toguo

Na paisagem rural de Bandjoun, cujo património museológico se limita aos acervo dos museus das chefferies, vai ser integrado um novo conjunto de obras que estarão disponíveis ao público, e especialmente ao público escolar. Obras visuais e sonoras, nomes como Roni Horn, Zwelethu Mthetwa, Fela Anikulaputi, Laurie Anderson, Benoît Fossouo, Orlan, Joel Mpah Dooh, Souleymane Sissé, Moreira, Cuco Zuarez, Balthazar Torres-Garcia, Philippe Starck, Alpha Blondy, Marcel Dzama, Marlise Bété, Peter Doïg, Carolee Schneemann, Miriam Makeba, Joachen Gerz, Alpha Blondy, Peter Rusam, Timo Dentler, entre outros, constituirão o acervo-base que será consecutivamente ampliado e exposto segundo montagens regulares.

A energia de Toguo e dos seus colaboradores é inesgotável para pôr de pé Badjoun Station e ali trabalho nunca pára.

A noite cai muito cedo nos altos planatos bamiléké e ouve-se música do outro lado da estrada da maison à étages. É o bar de Blanco, o preto mais branco de Bandjoun. Não há cerveja nem gelada nem fria. Serve-se morna. Estamos no Oeste dos Camarões, respondem-nos.

Sementeira de café, Bandjoun Station, foto de Barthélèmy ToguoSementeira de café, Bandjoun Station, foto de Barthélèmy Toguo

arte contemporânea à beira da estrada

Mesmo à saída de Bandjoun, um pequeno troço da estrada que leva a Douala, é ocupado por instalações dispersas de Benoît Fossouo, artista outsider que traz dos mercados de Bandjoun objectos de toda a espécie. Trata-se de uma pesquisa de signos presentes na natureza e na cultura que Fossouo desenvolve baseando-se na caligrafia (inscrições elaboradas a partir do seu nome, com as cores utilizadas na decoração das casas bamiléké), na assemblage de objectos encontrados (com recurso à feitiçaria local), ou na criação de “lugares” (a “banca de venda de frutas”, o “ninho de ovos”, a “passagem secreta” para armazenar comida e material).

As instalações de Benoît Fossouo podem ser consideradas figuras daquilo a que Jean Loup Amselle designa de “primitivismo autodidacta”, como o trabalho que foi desenvolvido por outros “profetas africanos”, e cujo expoente máximo é Frédéric Bruly Bouabré (Costa do Marfim). Artista visionário, Bruly Bouabré criou imagens e alfabeto para uma nova escrita “bété” inspirada nos rochedos da aldeia de Békora. Outro exemplo é o angolano Paulo Kapela, cujo trabalho se caracteriza pelo sincretismo que alia o fervor católico ao qual é devoto, com a iconografia politica que atravessou a independência de Angola.

Hoje estes imaginários fazem parte da contemporaneidade africana, e pertencem a grandes colecções: Pigozzi, Dia: Beacon, Sindika Dokolo, entre outras. As obras Bruly Bouabré e Capela integraram igualmente exposições importantes, e atestam o sucesso do “primitivismo autodidacta” que caracteriza as selecções curatoriais sobre a arte africana de hoje. Arte africana e pulsão selvagem criadora ainda têm de andar de braço dado.

Benoît Fossouo I Instalação à beira da estrada internacional que liga Bandjoun a Douala, foto de M. Mestre Benoît Fossouo I Instalação à beira da estrada internacional que liga Bandjoun a Douala, foto de M. Mestre

nas margens do rio wourri…

Bonandale fica a 10 km de Douala e não é fácil de encontrar. Como no resto do país, todas as estradas asfaltadas “do tempo dos franceses” esboroam-se de dia para dia, à sombra da corrupção insistente da polícia. Para encontrar a residência MTN, em Bonendale é preciso perguntar pela “village d’artistes” e sacrificar a suspensão do carro, antes de chegar às margens do Rio Wourri. A paisagem altera-se repentinamente. Aqui só já temos os poucos habitantes locais, os pescadores que deslizam em pirogas carregadas dos camarões que deram o nome ao país, e um grupo de artistas.

Atelier da Residência MTN Foundation I Bonendale Foto de M. MestreAtelier da Residência MTN Foundation I Bonendale Foto de M. Mestre

Foi Joël Mpah Dooh o primeiro a querer sair do caos de Douala para se “fixar num local mais próximo da natureza”. Actualmente, para além de Joël, também Goody Leye, Louise Epée, Salifou Lindou, Jules Wokam compraram casas e terrenos. A “village d’artistes” é uma rede informal de colaboração artística que integra o trabalho individual de cada artista e os seus projectos culturais, tal como a residência MTN Foundation e o projecto “Art Bakery”, num acto de recusa para com as formas de trabalhar e habitar a cidade. “A vinda dos artistas para este local foram verdadeiras respostas éticas e políticas”, diz-nos Joël enquanto nos mostra os espaços da residência MTN Foundation, a multinacional de telecomunicações com uma presença fortíssima no Médio Oriente e no continente africano: da Costa do Marfim até à África do Sul, onde é patrocinadora oficial do campeonato do Mundo FIFA 2010.

 

Venda de crédito para telemóveis MTN,   Bandjoun, Foto de M. MestreVenda de crédito para telemóveis MTN, Bandjoun, Foto de M. Mestre

Joël Mpah Dooh Dessins, Plexiglass, ferroJoël Mpah Dooh Dessins, Plexiglass, ferroArtBakery BonendaleArtBakery Bonendale

 

jovens artistas MTN Foundation

Hoje é o dia da apresentação dos resultados da residência, e entre o verde e o silêncio, um grande grupo de pessoas distribui-se em círculo. O jovem artista residente Bruno Nsecke recebeu 1.000.000 F., “um prémio muito prestigiante, principalmente quando se tem 25 anos e toda a gente anda de um lado para o outro à procura de qualquer coisa”, diz-nos Mpah Dooh, “e é por isso todos os timmings são estritamente cumpridos junto da MTN (…) não pode haver falhas, nem atrasos, ou perdemos este apoio”, acrescenta. A funcionar desde 2006, a residência MTN promove uma interacção entre os artistas e o meio geográfico, procurando as formas de produção necessárias para a concretização dos projectos individuais. Proporciona ainda a exposição de cada projecto resultante das residências em Douala, contribuindo para a promoção da arte emergente nos Camarões.

Após a apresentação, a conversa anima-se e vai ao encontro do tema das bienais africanas. Qual a opinião de Joël sobre a inserção destes jovens artistas no circuito africano e internacional, Dakar, Joanesburgo, Cairo, Luanda, São Paulo, EUA, China? Joël Mpah Dooh parece não estar interessado, e justifica: “Tivemos a Revue Noire, nos anos 90 que lançou nomes no mercado, foi uma euforia que transformou o modo como nos sentíamos artistas, e artistas africanos, e agora andamos todos a lamentar a necessidade de escolas especializadas que reforcem a formação, porque durante anos andamos só interessados na resposta ao mercado ”.

É a partir desta reflexão, que o projecto residência MTN Foundation pretende continuar a desenvolver a vertente formativa, procurando preencher as lacunas do sistema de ensino camaronês que não dispõe de nenhuma formação superior na área. Para além disso, aposta em breve na abertura das residências a jovens artistas estrangeiros, em paralelo com os artistas camaroneses.

uma oficina de criação conectada com o Ocidente

“Art Bakery” aposta essencialmente na sua vertente de residência de artistas, A funcionar desde 2003, e coordenado por Goody Leye, o projecto ocupa uma casa de habitação de estilo colonial, no tecido urbano disperso e rural de Bonendale. No site pode ler-se: “um oásis de criatividade”, “um espaço convivial onde a arte se faz e se discute ao longo do dia”, ou ainda “um espaço físico e mental onde o artista se questiona, troca, experimenta”. Para G. Leye “faz lembrar a Art Factory, do Andy Warhol, mas tem um lado mais sensorial, porque a ideia é que toda a gente arregace as mangas e trabalhe os materiais que tem à disposição”.

Os projectos de “Art Bakery” encontram-se afixados nas paredes exteriores do espaço: seminários para formação de críticos e historiadores de arte, serviço educativo junto das escolas básicas de Bonendale, masterclass, um estúdio de pós-produção audiovisual, etc. Estella Mbulli que aqui trabalha explica cada projecto com grande detalhe, detendo-se no mais importante: Exit Tour, em 2006, em que sete artistas viajaram por sete países da África Oeste, procurando espaços informais para intervir com projectos artísticos realizados durante a viagem. O objectivo de Exit Tour foi chegar a Dakar para a abertura da Bienal, e “interrogar a viagem enquanto forma de deriva estética”, diz-nos.

Apesar de exíguo, o espaço de “Art Bakery”, conta também com uma biblioteca que dispõe das melhores edições da História da Arte Universal, a crítica de Gombrich, Danto, Krauss, os catálogos Les Magiciens de la Terre, a Documenta de Okwui Enzor, e ainda alguns números da revista ArtForum. Apesar da abrangência literária, não se percebe o interesse real ou a existência de leitores locais para temáticas como o primitivismo, a diáspora, o pós-colonialismo, ou as últimas aquisições da colecção Pigozzi. Alguns catálogos estão revestidos a plástico: “Foram doados pela Embaixada da França em Yaoundé”, diz-nos Estella, enquanto mostra o resto do espaço.  

Fundamentalmente suportado pelo programa RAIN Artist’s Initiative Network, da Rijksakademie (Amesterdão) que promove as trocas culturais entre artistas ocidentais e não ocidentais, a ArtBakery tem sabido encontrar fundos específicos para os seus projectos que elenca no site: a DOEN Foundation, um apoio da lotaria holandesa, o programa Art Moves Africa (AMA) que tem por objectivo facilitar as trocas culturais e artísticas no continente africano, e ainda o IAAB, um “studio program” que proporciona aos artistas de Basel viagens de longa duração a outros continentes.

viagens aos confins de uma cidade

Os 10 km que distanciam Bonendale e Douala fazem-se em marcha muito lenta e incerta. Os carros tentam evitar os grandes buracos de uma estrada polvilhada águas estagnadas. O resultado é uma grande parada de carcaças de metal que se adensa à entrada da cidade.

Joseph Sumégné,  La Nouvelle Liberté Douala (Deido)Joseph Sumégné, La Nouvelle Liberté Douala (Deido)

La Nouvelle Liberté, a grande escultura de doze metros do artista Joseph Sumégné, acolhe quem entra em Douala, de braço erguido. Ainda que uma analogia irónica a aproxime da Estátua da Liberdade, e que a maioria das pessoas viaje até Douala para tentar a sua sorte, a verdade é que a cidade é um “el-dourado” negro onde se encontra miséria, doenças, e as formas de vida mais primárias, que já no início do séc. Louis Ferdinand Céline descrevera. Na energia de um colonismo recém tomado, o escritor francês sentiu o espaço e a liberdade de acção, mas não deixa de caracterizar Douala como a enferma “Fort Gono” de Voyage au Bout de la Nuit, cidade-metáfora de doenças venéreas, delírios e encontros sexuais entre brancos e mulheres pretas.

Actualmente, Douala é uma cidade extraordinariamente viva, palco de constantes mutações de natureza espacial, social, relacional, ou politica. À semelhança das suas congéneres africanas, especialmente na geografia da África central, um dos traços mais marcantes é a formação do tecido social e económico. A cidade formal e a cidade informal coabitam, pondo em marcha um movimento que permanentemente arruma e desarruma as etnias, culturas, nacionalidades, e religiões. Em certa medida, Douala insere-se nesse tipo de cidades do hemisfério Sul, de que fala Rem Koolhas, capazes de propor novos modelos urbanísticos, e com novas formas de organização do sector informal. Cidade em trânsito nas suas formas e conteúdos, permite-nos experienciar a vida num mundo deslocado, um “cosmopolitismo vernacular” (Homi Bhabha), dentro e fora dos Camarões e de África.

La Pagode (antigo palácio da família Manga Bell,  Douala (Bonanjo)La Pagode (antigo palácio da família Manga Bell, Douala (Bonanjo)

a cidade como laboratório: Doual’art

É a partir da cidade, e muito particularmente de um entendimento da urbe como organismo vivo, que foi pensado o projecto doual’art, centro de arte contemporânea, que se define como um laboratório de pesquisa sobre as questões urbanas.

Somos recebidos por Didier Schaub, director artístico, que mostra o espaço enquanto fala da história da organização que dirige com Marilyn Douala Bell.

“O espaço era um antigo cinema que recuperámos em 1991 quando começámos, e hoje é uma galeria que acolhe várias iniciativas”. Exposições, workshops, actividades pedagógicas, acções de formação são as actividades contínuas da organização. Em exposição está uma instalação do artista marroquino Younès Rahmoun, com curadoria de Abdellah Karroum, mas prepara-se já a próxima, da dupla francesa de artistas Art Orienté Objet.

O tipo de projectos desta organização relaciona-se com aquilo a que poderíamos designar de “engenharia social”, centrando as acções nos bairros de Douala e estabelecendo projectos com as diversas comunidades. “É da experiência continuada nos bairros de Douala que surgiu o principal projecto que actualmente nos dedicamos, o Salon Urbain”, diz-nos Didier Shaub. SUD, Salon Urbain de Douala é uma apresentação bienal de projectos de arte pública que tem sido levada a cabo pela organização doual’art e que é precedido por um encontro curatorial.

Arts et Urbis trará a reflexão curatorial a Douala, em 2009, através de nomes como Arno van Roosmalen, Ngoné Fall, Simon Njami, Jérôme Sans, Edgar Pieterse, ou o artista camaronês Pascale Marthine Tayou, e em que se aproveitará para discutir a cidade e as suas relações com a água, conceito base do SUD 2010.

Hervé Yemguem é um dos artistas que realizará um projecto para SUD 2010, é “artista da casa”, e representa a jovem geração de artistas camaroneses. Já começou a preparar “Mots Écrits” em colaboração com os jovens rappers do bairro de New Bell. Paulin Tchuenbou, produtor das actividades de doual’art e fino conhecedor da cidade leva-nos até lá.

Didier Schaub (director artístico de Doual’art), Douala (Bonanjo)Didier Schaub (director artístico de Doual’art), Douala (Bonanjo)

It’s New – Bell,  camarade!! 

“New Bell” é o bairro com o maior número de imigrantes da cidade e também o mais conflituoso. Mulçumanos que rezam orientados para Meca, coabitam ao lado de grupos de homens que fazem a festa, entre rodadas de cervejas. O território é marcado ao milímetro e os grupos de jovens dominam os pedaços de rua e os cruzamentos, aguardando os clientes para fazer o dinheiro do dia. Ouve-se o “Pst, Pst” em todo o lado, na boca dos rapazes das moto-taxi e das “pousse-pousse,”, carrinhos de mão que transportam mercadorias de um lado para o outro. Uma viagem de mota custa 50 cêntimos, e pode ser negociada segundo a distância.

Chegamos à casa de Hervé Yamguem. Duas divisões que servem também de atelier aberto para o bairro de New Bell. Para o Salon Urbaine de Douala (SUD) o poeta e artista plástico está a trabalhar no tema da “água”. Os ritmos  dos jovens rappers de New Bell ajudam à obra e à festa: “C’est le sauvetage./ Ils fanam de gauche à droite./ Le combat est rude./ L’eau est un miroir du monde”. Moctomoflar, nome artístico, do jovem que acaba de chegar explica-nos que “a água aqui no Bairro é muito preciosa. Ás vezes temos de assistir ao facto dos muçulmanos gastarem água para se lavar cinco vezes ao dia, e por outro lado as mamãs não terem água”.

Até ao SUD 2010, muitas etapas surgirão. Para já, prepara-se a apresentação geral dos projectos em cada bairro com os restantes artistas, Salifou Lindou, Hervé Youmbi, Jules Wokam, Julie Courcelle e Achille Ka.

Durante o mês em que visitei os Camarões assinalaram-se vários acontecimentos nos meios de comunicação. Em África, na República Democrática do Congo, os conflitos agudizavam-se, anunciou-se a morte da sul-africana Miriam Makeba, cantora e activista dos direitos humanos; no Mundo, os governantes das potências económicas mundiais reuniam-se para definir um plano estratégio contra a crise financeira, e Barak Obama ganhava as eleições norte-americanas. Esta breve agenda internacional, que apenas deu para incluir as grandes manchetes dos dias, não deixa de ser sintomática da imagem de África que circula, em especial no espaço ocidental. Quer atentemos na natureza intrínseca de cada um dos acontecimentos enumerados, ou os tomemos como um todo, África é transmitida como uma imagem sobredeterminada. Quer isto dizer, um lugar capaz de plasmar a abundância dos discursos que circulam, os desígnios para o continente, e as situações de natureza traumática.

Instalação de Younès Rahmoun no espaço Doual’art, DoualaInstalação de Younès Rahmoun no espaço Doual’art, Douala

Dentro e fora, na disseminada geografia que a designa, África tem sido um espaço de ambivalência que ainda polariza questões fundamentais como os direitos humanos, a igualdade racial, o apartheid, a subalternidade, a hibridização, a mixagem, a deslocação de pessoas e culturas. No decorrer das eleições norte-americanas, por exemplo, a victória de Barack Obama voltou a ter no centro dos debates as questões da raça e da classe, dos Cultural Studies dos anos 1970. É sobre este aspecto demonstrativo a justeza das palavras do historiador indiano Sarat Maharaj, quando alerta para o facto de estarmos a cair num “espectáculo do discurso”1.

Curadores e programadores, iniciativas culturais de grande visibilidade, habitualmente alimentadoras do grande discurso invertem, não obstante, esta ordem. Promovem-se agora “pausas reflexivas”,  e “vazios”, como é o caso da última edição da Bienal de São Paulo, numa consciência firme de refundação dos princípios, na procura de novos territórios.

Mas será possível efectivar este preditos vindos maioritariamente dos agentes críticos, e com eles impor esta quase utopia aos agentes económicos, num mercado que, mesmo em crise, tem ainda nas obras de arte a legitimação simbolicamente mais alta do poder de compra? Se todos os sectores da vida estão ameaçados nas certezas que o sistema actual ocidental atingiu, o campo artístico não constitui uma excepção. Talvez, num futuro muito breve, se mobilizem linhas de orientação “desaceleradas” em espaços fora da macro-escala, se trabalhem as especificidades (no caso do modelo das bienais), e convoquem formas de criação e produção que amplifiquem a experiência. Ao que parece não estamos muito longe das estratégias “regionais” que temos vindo a referir, como Bandjoun Station, Doual’Art, a Residência MTN Foundation, etc., protagonizadas por artistas que triunfam na esfera internacional e que actuam na escala local, rasurando hiatos.

 

NOTA: Artista visionário, Bruly Bouabré criou imagens e alfabeto para uma nova escrita “bété” inspirada nos rochedos da aldeia de Békora. Outro exemplo é o angolano Paulo Kapela, cujo trabalho se caracteriza pelo sincretismo que alia o fervor católico ao qual é devoto, com a iconografia política que atravessou a independência de Angola.

 

Publicado na revista ArteCapital (24/03/2009))

  • 1. P. 274, “New Horizons – African Contemporary Art and Post-colonial Politics”, Stina Edblom, in Third Guangzhou Triennial, Cat., 2008.

por Marta Mestre
Vou lá visitar | 20 Maio 2010 | África, Bandjoun Station, Barthélémy Toguo, Benoît Fossouo, Camarões, Douala, Paulo Kapela