O nomadismo literário de Ruy Duarte de Carvalho

[…] se foi a poesia, passando pela ponte do cinema, que me transportou à antropologia, à apreensão fundamentada no conhecimento dito objetivo disponível sobre a substância humana com que a vida me implicou, foi de facto a antropologia – embora sem programa prévio mas sempre como via, também, de expressão e de intervenção – que me transportou à ficção…

Ruy Duarte de Carvalho, A Câmara, a escrita e a coisa dita 

Esta epígrafe sintetiza a inquieta trajetória intelectual do autor angolano Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010), cineasta, antropólogo, poeta e romancista. Este artigo pretende demonstrar como essa trajetória se reflete na sua produção literária desenvolvida a partir do final da década de 1990 e compreender as bases sobre as quais se construiu o diálogo entre esses campos. A análise sobre como as diferentes expressões e linguagens se inserem no texto de Carvalho dá o arranque a uma reflexão sobre as relações entre antropologia e literatura, e os questionamentos acerca de autoria e narração, que sustentam o projeto literário desenvolvido na trilogia Os filhos de Próspero

A poesia, primeira forma de expressão desenvolvida pelo autor, esteve intimamente ligada à expressão poética oral dos povos nômades do sudoeste angolano. Especialmente em Sinais misteriosos… já se vê… (1980), série de textos e desenhos sobre ofícios e histórias de referência mumuíla; Ondula Savana Branca (1982); e Observação Directa (2000), em que realiza a tradução e adaptação de provérbios nyaneka, kwanyama e kuvale, utilizando-se de materiais já coletados por outros viajantes, mas também de suas próprias recolhas em trabalho de campo.

Após a independência, ainda na década de 1970, Carvalho realiza uma série de documentários com os povos do sudoeste angolano para a Televisão Popular de Angola (TPA) dirigida à época por Luandino Vieira. Composta por catorze documentários, os filmes demonstram uma tentativa do autor de retratar povos deslocados do centro do poder angolano – Luanda – e também uma reflexão acerca da linguagem do cinema etnográfico desenvolvido pela escola francesa da qual o realizador e etnólogo francês Jean Rouch (1917-2004) era o nome mais proeminente. São exemplos desta fase os filmes Uma festa para viver (1976), filmado quinze dias antes da independência de Angola e Presente Angolano, Tempo Mumuíla, série de dez documentários que retratam festas e rituais dos povos do sul de Angola. Carvalho iniciaria a década de 1980 dirigindo Nelisita: narrativas nyaneka (1982), a primeira longa de ficção inteiramente falada em uma língua africana, o lumuíla. Adaptação de dois contos míticos colhidos pelo padre Carlos Estermann (1896-1976) entre os povos kwanyamas, o filme adapta os contos Nambalissita e Um homem e uma mulher em um ano de fome para construir uma única peça fílmica. Moia: o recado das ilhas (1989), realizado em Cabo Verde, completa a sua filmografia, com uma reflexão sobre identidades crioulas no espaço africano, atlântico e lusófono. 

127 fotogramas ou 34 cenas de ‘Nelisita’, de Inês Ponte127 fotogramas ou 34 cenas de ‘Nelisita’, de Inês Ponte 

Com o ensaio O camarada e a câmara, cinema e antropologia para além do filme etnográfico (1980), Carvalho realiza sua primeira incursão na reflexão antropológica escrita. Nos anos seguintes realiza seu doutoramento em Antropologia pela “École de Hautes Études en Sciences Sociales” de Paris, apresentando uma tese dedicada aos pescadores da costa de Luanda, e lançada em livro com o título Ana a Manda – os filhos da rede, em 1989. Até meados dos anos 2000, lançaria a etnografia Aviso à Navegação (1997) e Os kuvales na história, nas guerras e nas crises (2002). 

A escrita em prosa sintetiza os deslocamentos anteriores enquanto local em que a poesia influenciada pelas tradições orais, o cinema documentário de base etnográfica e a reflexão antropológica se intertextualizam com a literatura ocidental e a escrita ficcional. Esta produção foi desenvolvida a partir do final da década de 1990, especialmente na trilogia Os Filhos de Próspero, composta por Os Papéis do Inglês (2000), As paisagens propícias (2005), e A terceira metade (2009).

Os Filhos de Próspero

A trilogia tem início com a busca por papéis que ajudariam a desvendar o enigma da morte de um caçador de elefantes inglês chamado Archibald Perkings ocorrida em solo angolano. A descoberta dos papéis revela também que estes ficaram sob a posse de um homem, que será o motivo da busca de As paisagens propícias. Um terço da narrativa será a transcrição de um e-mail da personagem Severo endereçado ao narrador. No fim do livro, aparece a personagem Jonas Trindade, descrito como “mucuísso”, que faz um relato de sua vida ao narrador, cuja transcrição está substancialmente na obra A terceira metade.

Em Os Papéis do Inglês encontra-se um exemplo de como uma mesma reflexão se desenvolve em duas linguagens distintas, na prosa e na poesia:

A experiência constitui-se a partir das referências. As do mundo e do tempo anteriores. E é a esse mundo anterior que a ordem das coisas, e da própria experiência, me impõe dar testemunho. Não viesse eu de fora e a experiência seria a da existência comum, não se revelaria como experiência, nem se revelaria sequer, estaria interligada na existência. (Carvalho 2007, 25) 

Mais à frente, ainda em Os papéis do inglês, o autor trabalha sua reflexão em um poema: 

Coisas que só se revelam / A quem não é do lugar: / Porém exigem estar / Até sentir com elas / O tempo do lugar / Que não se dá a ler / Só de as olhar / E nem a quem / Faz parte do lugar. / Partir de novo então / Para captar / Da mesma forma e algures / O tempo que a haver / Só noutro lugar (Carvalho 2007, 26)

Altera-se a forma, mas mantém-se a reflexão acerca da experiência e da existência, reveladas a quem é de dentro e de fora do lugar. Trata-se de uma poesia cuja reflexão remete à substância antropológica ou, como diz o autor, uma forma de “conhecimento dito objetivo disponível sobre a substância humana” que a vida o implicou. A interface com a reflexão antropológica também será percebida nas semelhanças entre os textos académicos e o texto literário, cujo entrelaçado origina uma escrita literária ensaística em que os limites entre o texto etnográfico e o texto literário apresentam-se indistinguíveis. Exemplificando:

Tanto uns como os outros praticavam, à data das primeiras referências historicamente recuperáveis, línguas de estalo, decorrentes de contatos talvez milenares, ao longo de remotos avanços que os hão-de ter trazido das lonjuras nilóticas e lacustres do nordeste da África, com sociedades verdadeiramente “aborígenes”, do tipo que hoje identificamos aos grupos Khoi e San. (Carvalho 2008, 131) 

Tudo quanto do que foi escrito nos últimos 150 anos possa vir a ler-se sobre este sudoeste do continente (nem que sejam os comentários que põem tal perspectiva em causa), acabará por assinalar identificações entre pastores kuvale e himba com pastores da costa oriental, desde a África do Sul ao Nilo superior e ao nordeste sudanês, somali e etíope, passando pela Kenia e pela Tanzânia. (Carvalho 2005a, 158-159)

Extraído de uma palestra realizada em 1999 na III Reunião Internacional de História de África, em Lisboa, o primeiro trecho contém informações análogas ao segundo trecho, extraído do romance As paisagens propícias. Em ambos, a informação histórica permanece a mesma, das origens e dos contatos entre os povos do sudoeste angolano com os povos provenientes da região do Nilo.

A construção narrativa da trilogia também aponta para a influência de autores da literatura ocidental como Mark Twain (1835-1910), Henrique Galvão (1895-1970) e Joseph Conrad (1857-1924). Conrad aparece em uma transcrição literal do conto “The return” (1897), no trecho “15” de Os Papéis do Inglês, em que o autor-narrador, incapaz de conhecer os meandros psicológicos da personagem de Archibald Perkings, remete para a história de Alvan Hervey, protagonista do conto de Conrad, para criar uma narrativa espelhada deste em Perkings. “Seria a altura de me alongar sobre o que lhe terá passado então pela cabeça? Não me sinto capaz dos feitos de nenhum Conrad e não me interessa, nesse caso, esforçar-me por isso, nem aspirar a romancista ou ser tido como tal” (Carvalho 2009, 56).

Um pouco antes, este universo literário já havia se aproximado do universo antropológico, quando o narrador afirma que Bronislaw Malinowski (1884-1942), o antropólogo que revolucionou o trabalho de campo na etnografia moderna, seria “o Conrad das ciências sociais”.

O ano anterior a esse, o de 1922, foi retido pela história como o annus mirabilis do funcionalismo, com a publicação dos estudos do próprio Radcliff-Brown e de Malinowski, chegado entretanto da Polónia, com escala de alguns anos em Leipzig, para tornar-se o Conrad das ciências sociais e revolucionar tudo com dois anos bem passados nas ilhas Tronbriand. (Carvalho 2007, 52)

Por último, a experiência de campo também ocupa um lugar marcante na obra do autor, observável na busca contínua por testemunhos, seja no relato da personagem Trindade narrado em A terceira metade (2009); ou em As paisagens propícias (2005), em grande parte uma transcrição literal de um e-mail da personagem de Severo endereçado ao narrador. A reiterada busca por testemunhos como matéria primeira para a construção das obras acontece pela impossibilidade de conhecer algumas histórias da região recorrendo apenas aos exíguos documentos escritos. 

Estava assim, pois, em condições de concluir que se de facto queria saber mais alguma coisa sobre o branco da Namíbia tinha era que mudar o registo e o ambiente da busca. Passar do escrito ao oral e enfrentar matos em vez de bibliotecas e arquivos (Carvalho 2005a, 21). 

Note-se que, nesse caso, o alvo da busca do autor não é uma lenda ou história de criação de mundos, ou épicos relatos de “guerras tribais”, mas a história pessoal de Severo, o desconhecido “branco da Namíbia” que, na verdade, era mulato. 

Apresenta-se, assim, uma narrativa habilmente construída relacionando esses diferentes campos, e cujas pistas contornam os caminhos reflexivos propostos pelo autor, e na qual o narrador tem constantemente sua posição explicitada e questionada. Se em Os Papéis do Inglês o narrador diz que avisará quando inventar ou inserir questões subjetivas, nos volumes seguintes da trilogia, esses limites tornam-se menos nítidos. Para além da inserção na própria prosa da tensão entre realidade e ficção, há certas divisões formais que explicitam essas tensões nos romances. Em Os Papéis do Inglês a estrutura narrativa é dividida em três partes – “dois livros” e um Intermezzo –, sendo estas subdivididas em um diário e a narração da estória. Essa estrutura irá repetir-se nos romances seguintes. Em As paisagens propícias também há três partes intituladas “livros”: um branco das namíbias; as paisagens propícias; e da ponte-cais de Argel ao Cabo das Agulhas; já em A terceira metade os ‘três livros’ intitulados os suis & os sós; os sóis & os nós; os nós & os nóis, são precedidos por “três fragmentos introdutórios”. Esses fragmentos contêm reflexões acerca das relações entre autor e narrador que tensionam o campo mediador sobre o qual os discursos se constituem. Em As paisagens propícias o autor questiona: 

Mas este, assim, será também o diário de quem? Do narrador, talvez sem dúvida, mas também daquele que tem o nome na entrada do livro. Qual dos dois se vai sentar aqui a pôr em ordem o que se segue, não só o diário daquilo que agora vier a ter interesse para o que quer contar, mas às voltas também com um caderno onde já antes registou o que alguém que tinha coisas para revelar contou àquele que irá narrar-lhe a estória agora, quer dizer… instauro o narrador e tomo nota… E a partir deste momento descubro-me a trabalhar, sem qualquer pejo, au nègre… (Carvalho 2005a, 12) 

E no início de A terceira metade recupera os mesmos questionamentos:

Convocava em mim o narrador que nestes últimos anos me tenho imposto às vezes ser, embora sem grande sucesso, parece……. depois, quando às 3 da tarde de cada dia encerrava uma jornada de escrita, daí até às 5 da alvorada seguinte, o narrador (o autor constituído em narrador) só existia como destinatário das instruções, das intenções, das decisões, que cada noite o autor deixava assentes num roteiro…………. (Carvalho 2009, 21)

O narrador é instaurado e convocado pelo autor como o destinatário das orientações que este projetava. Este trecho aponta para um diálogo com a tradição dos debates iniciados na década de 1960 acerca da função do autor e do narrador, cujos marcos principais são A Morte do Autor (Barthes, 1968) e O que é um autor (Foucault, 1969); e das complexas relações entre antropologia e literatura, presentes em Diary in a strict sense of the term (Malinowski, 1967).

Escrito em polaco e com a clara intenção de não ser publicado, o diário de campo de Malinowski descortina uma pessoa que não esconde a antipatia pelos nativos, nem as angústias psicológicas de quem se sentia “solitário e desesperado ao extremo” (Malinowski 1997, 75). Roland Barthes (1915-1980) e Michel Foucault (1926-1984) colocaram a autoridade do autor sob suspeita no final da década de 1960. O primeiro ao decretar a “morte do autor” (1968), conferindo positividade ativa ao leitor e proclamando seu “nascimento”, enquanto Foucault define o autor como uma função que delimita um campo do discurso.

As formulações de Barthes e Foucault reaparecem na década de 1980, em diálogo com algumas questões-chave da antropologia. Clifford Geertz (1926-2006) é um dos responsáveis pela chamada “virada etnográfica” utilizando um conceito de cultura essencialmente semiótico no qual “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, [e] a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado” (2005, 15). Essas reflexões colocam a tarefa da coleta de dados realizada pela etnografia – que ele aponta como “construção das construções de outras pessoas” (1989, 20) – mais próxima do crítico literário do que de um decifrador de códigos. Os textos antropológicos seriam, eles mesmos, interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão, uma vez que “somente o nativo” faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura. Trata-se, portanto, de ficções, ficções no sentido de que seja ‘algo construído’, ‘algo modelado’ – o sentido original de fictio – não que sejam falsas” (1989, 25-26). Isso não transformaria antropólogos em romancistas, tampouco construir hipóteses ou escrever fórmulas os converteria em físicos, mas sugere algumas afinidades. 

Paradoxalmente, Ruy Duarte de Carvalho recusa o rótulo de “ficcionista” (2009, 22) em uma obra cuja capa vem com a inscrição “romance”.  É nessa dialética negativa de reconhecimento “sou o que não sou” que antropólogo-autor e romancista-narrador se relacionam e se constituem. É o narrador que receberá as informações assentes num roteiro deixadas pelo autor (antropólogo) para construir a narrativa. Nas fronteiras permanentemente cruzadas entre antropologia e literatura esboça-se uma identificação sob o viés da alteridade: sou antropólogo porque não sou ficcionista, sou romancista porque não sou antropólogo. Sou o que não sou.

Em A auto-modelagem etnográfica, James Clifford (1945-…) levanta pontos úteis para analisar a construção narrativa da trilogia. Clifford considera a etnografia clássica de Malinowski Os argonautas do pacífico ocidental (1922) e o Diary in a strict sense of the term (1967) como partes que compõem um único texto expandido. Enquanto o lançamento de Os argonautas redefiniu o paradigma do etnógrafo e do trabalho de campo na década de 1920, a publicação do diário, quatro décadas mais tarde, provocou escândalo em relação à imagem pública da antropologia: “Uma experiência de campo que estabelecera o padrão para a descrição cultural científica estava atravessada pela ambivalência” (2008, 99).

Clifford refuta a forma geral como o diário foi entendido em sua publicação de que seria uma verdadeira revelação sobre o trabalho de campo de Malinowski. Para ele, a experiência de campo em Trobriand não se esgota nos argonautas, nem no Diário, nem na combinação de ambos. Clifford afirma que Malinowski havia suprimido o diário no processo de dar integridade a uma cultura (a trobriandesa) e a um eu (o etnógrafo científico), com objetivo de criar um discurso público aceitável: a etnografia Os argonautas do pacífico ocidental.

Os filhos de Próspero utiliza um dispositivo inverso ao expediente de Malinowski. Não há subtração do diário, mas a sua adição ao universo discursivo da etnografia, com a intenção de compor um único texto expandido na interação entre as partes. Apesar de escritas pela mesma pessoa, o narrador de Ruy Duarte de Carvalho justifica uma diferença crucial entre “aquele que tem o nome na entrada do livro e o narrador”, ou entre o autor do diário e o autor da narração, embora, lembremos, nesse caso, tratar-se da mesma pessoa. Para Barthes, o problema consiste em distinguir o “autor” do “escritor” e, noutro ponto, a “obra”, que é aquilo que o “autor” produz, e o “texto”, que é o que produz o “escritor”. Em Os filhos de Próspero, para além das diferenciações definidas por Barthes entre autor/obra – escritor/texto, Carvalho produz uma terceira tensão entre autor/narrador, não diferenciados pelo nome, mas pela função: o narrador como destinatário das instruções, das intenções e das decisões que cada noite o autor deixava assentes num roteiro. É o narrador (e não o autor) o sujeito primeiro do discurso, ao constituir-se na relação com os diferentes discursos deixados pelo autor. O narrador toma consciência de si mesmo na relação com o autor. Para Ruy Duarte de Carvalho, se o autor é uma função, como afirma Foucault, esta função surge de forma problemática dentro da própria experiência do texto, quando o narrador está trabalhando “au négre” (Carvalho 2005a, 12). 

Há que sublinhar, no entanto, uma diferença notável no processo de representação do diário no desenvolvimento da trilogia. No primeiro volume o diário contém datas que vão do dia 23/12/1999 até o dia 01/01/00. Essa data simbólica para o mundo ocidental, a virada do ano – década – século – milênio é representada na narrativa sem nenhuma referencia especial à exceção da data contida no diário. Inserido no universo dos povos kuvales, local em que “o longínquo ocidente preservava uma faixa de céu limpo” (Carvalho 2009, 180), essas datas passam despercebidas. Para Maurice Blanchot (1907-2003), o diário não é essencialmente confissão, mas um “Memorial” para o escritor recordar-se de si mesmo, daquele que ele é quando não escreve, quando vive sua vida cotidiana, quando é um ser vivente e verdadeiro, não agonizante e sem verdade. “[…] O Diário representa a sequência dos pontos de referência que um escritor estabelece e fixa para reconhecer-se, quando pressente a metamorfose perigosa a que está exposto (2011, 20). Esses pontos de referência a que Blanchot se refere expressam-se no diário da narrativa – e na maioria dos diários – através da inscrição da data. “O diário – esse livro na aparência inteiramente solitário – é escrito com frequência por medo e angústia da solidão que atinge o escritor por intermédio da obra” (2011, 20). Se a definição de Blanchot se encaixa perfeitamente ao que é exposto no diário de Malinowski, o diário do narrador de Os filhos de Próspero aponta para outra direção. A exclusão das datas nas narrativas seguintes torna mais ténues os deslocamentos entre o diário e a narrativa, à medida em que o autor mergulha com mais profundidade no universo e no terreno kuvale. O narrador não expressa “medo e angústia da solidão” em seu diário, mas produz reflexões de cunho pessoal, político e metafísico acerca das relações entre antropologia e literatura, autor e narrador, ocidente e não-ocidente. 

Um dos grandes trunfos da narrativa literária de Ruy Duarte de Carvalho é turvar os limites entre os gêneros e linguagens desenvolvidas anteriormente pelo autor. A instabilidade narrativa no posicionamento do narrador, entre o diário e a narração, é o campo mediador no qual os diferentes discursos e linguagens se relacionam com a intenção de realizar uma única “obra expandida”. Uma posição instável, cambaleante, um posicionar-se variável. 

Bibliografia 

Carvalho, Ruy Duarte de. 1989. Ana a Manda: Os filhos da rede. Lisboa: IICT. 

———. 1997. Aviso à Navegação – olhar sucinto e preliminar sobre os pastores Kuvale. Luanda: INALD. 

———. 2000. Vou lá visitar pastores… Rio de Janeiro: Gryphus.

———. 2005. Lavra: poesia reunida 1970-2000. Lisboa: Cotovia. 

———. 2005a. As paisagens propícias. Lisboa: Cotovia. 

———. 2007. Os papéis do inglês. São Paulo: Companhia das Letras. 

———. 2008. A câmara, a escrita e a coisa dita. Lisboa: Cotovia.

———. 2009. A terceira metade. Lisboa: Cotovia.

Barthes, Roland. 2004. Rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes.

Clifford, James. 2008. A Experiência Etnográfica: Antropologia e Literatura no Século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 

Conrad, Joseph. 2002. O Coração das Trevas. São Paulo: Iluminuras.

Duarte, B. 1975. Literatura Tradicional Angolana. Benguela: Didáctica de Angola. 

Estermann, C. 1971. Cinquenta Contos Bantos do Sudoeste de Angola. 1.ª ed. Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola. 

Foucault, Michel. 2009. Michel Foucault: Literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária. 

Geertz, Clifford. 1989. Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 

———. 2009. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

Malinowski, Bronislaw. 1997. Um diário no sentido estrito do termo. Rio de Janeiro; São Paulo: Record. 

Milheiros, M. 1967. Notas de etnografia angolana. 2.ª ed. Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola. 

Shakespeare, William. 2002. A Tempestade. São Paulo: LP&M.

 

____________

in Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho (2019), Marta Lança et all (org), Lisboa: BUALA - Associação Cultural I Centro de Estudos Comparatistas (FL-UL). ISBN: 978-989-20-8194-6  

 baixar o livro. 

por Christian Fischgold
Ruy Duarte de Carvalho | 25 Julho 2019 | Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho, Literatura, nomadismo