Voz de Angola

O rapper MCK lançou em Janeiro “Proibido Ouvir Isto” e, em quatro horas, de norte a sul de Angola, voaram 10 mil cópias. Fala com eloquência do país que existe para além do Eldorado de petróleo e diamantes. O poder angolano não gosta do que ele canta. É alguém que representa o desejo de futuro da sua geração.

 

Há um mês, MCK fez o lançamento oficial do seu último álbum, “Proibido Ouvir Isto”. Há muito que era esperado o sucessor de “Nutrição Espiritual”. Há muito que se esperava ouvir em canção o que tinha a dizer sobre a Angola onde nasceu em 1981. Lançado em Luanda, Benguela, Malange e Cabinda, “Proibido Ouvir Isto” atravessou Angola num ápice. A palavra espalhou-se como fogo em palha seca. Em quatro horas voaram dez mil discos. Números impressionantes. MCK de volta: “Eu avisei que era proibido ouvir isto, mas vocês carregaram play. Estou di volta na caminho di luta, em busca de justiça, paz e liberdade”.

Quem é MCK? É um rapper que utiliza o hip hop como arma de intervenção e cuja música, divulgada nos candongueiros que transportam as populações no lufa lufa do quotidiano, publicitada pelos piratas que vendem CDr na rua, partilhada em larga escala na net, se transformou na voz não oficial de Angola, o que muito desagrada ao Estado angolano - “tenho um caminho premiado de proibições”, dir-nos-á. É, também, representante de uma geração que conheceu a guerra civil que paralisou o país durante décadas, mas que não aceita que a guerra continue a ser invocada pelo Estado como desculpa para as injustiças sociais. Foi uma das personalidades ouvidas pela presidente alemã, Angela Merkel, quando esta, em visita oficial a Angola, em Julho de 2011, quis auscultar a sociedade civil. E é, ambição máxima, alguém que pretende cumprir o sonho por cumprir das independências africanas, citando Kwame Nkrumah, líder do Gana independente, Julius Nyerere, primeiro presidente da Tanzânia, ou o tão próximo Agostinho Neto como inspiração para a criação de um país que tenha consciência da sua riqueza cultural e que orgulhe os angolanos, “fazendo-os sentir incluídos nessa vitória que é a subida do PIB, pela distribuição equitativa dos rendimentos do país”.

Uma pistola apontada à cabeça

Diz: “A geração que viveu 1975 tinha o desafio da independência. Nós temos os nossos desafios. A corrupção, a falta de emprego, a pobreza extrema”. 54 por cento dos angolanos vivem abaixo do limiar de pobreza, com menos de um euro por dia. No seu último relatório dedicado a Angola, a Human Rights Watch denuncia restrições à liberdade de imprensa ou a reiterada proibição de manifestações anti governamentais, o que contraria a Constituição aprovada em 2010. Enquanto isso, um jornalista como Rafael Marques escreve sobre os atentados aos direitos humanos perpetrados sobre os mineiros das Lundas e expõem em acções judiciais teias de corrupção que atravessam o Estado angolano. E MCK, por cantar o que canta, já teve uma pistola apontada à cabeça - “é um recado para pensares no que andas a fazer”, disseram-lhe -, já recebeu ameaças por carta, sms e por vultos surgidos no escuro da noite. Carrega consigo a morte de Arsénio Sebastião “Cherokee”, um lavador de carros de 27 anos cujo assassinato em 2003 por membros da Guarda Presidencial, à vista de quem passava no embarcadouro do Mussulo, por cantar “A Téknika, as kausas e as konsekuências”, crítica nada discreta ao governo angolano, causou escândalo internacional. Não, o Eldorado não mora aqui. E MCK não está sozinho.

Músicos activistas como Ikonoklasta ou Carbono amplificam palavras de ordem como “o país não tem dono, Angola é de todos nós” ou, em referência aos anos de presidência de José Eduardo dos Santos, “32 é demais”. São frases ouvidas da boca de pessoas que começaram a sair à rua em manifestações para exigir maior liberdade de expressão ou o fim da pobreza extrema, enfrentando a agressividade da polícia e, em vários casos, a detenção nas prisões. Quer a voz se erga ou não em disco ou em manifestações, quer falemos de gente que nasceu e sempre viveu em Angola, quer falemos daqueles que tiveram o privilégio de sair para estudar fora e conhecer mundo, é inegável nesta geração um desejo de futuro, de construção.

O multifacetado Nástio Mosquito, músico, videasta, fotógrafo e artista plástico, ele que se descreve como “vagabundo criativo com preocupações sócio-económicas” (“tem que chegar”, acrescenta), ele que nasceu no Huambo e que passou parte da adolescência em Portugal, vivia em Londres quando a paz se instalou em Angola. Decidiu regressar. “Teria de sentir de perto o que estava a acontecer. Não mais voltei a Londres. Divórcio, novo “guarda-roupa” e uma atitude de reconstrução”, escreve-nos por email. Ao observar o seu país hoje, as contradições entre o poder económico pujante e a incapacidade de o fazer verter ao todo social, algo que, ressalva, não vê como particularmente distinto das realidades do Ocidente com que foi contactando - a diferença é que, ali, “as coisas são de facto mais evidentes” -, Mosquito tem a sensação “que quem olhar para Angola com olhos de ver verá como o mundo moderno foi “construído”“. Isso é uma vantagem: “Temos muito que aprender e, se nos mantivermos focados nas coisas certas, teremos argumentos para reclamar de forma consequente, e de hoje, novas soluções rumo a uma vida melhor”.

MCK tem noção perfeita do que são para si as coisas certas, esgrime os seus argumentos com sageza e tom certeiro. Para Nástio Mosquito, não é surpreendente o seu impacto e a abrangência da sua voz, que começou por chegar à comunidade hip hop, mas que há muito extravasou as suas fronteiras, abrangendo o povo dos 7, o que já nasce a ouvir rap, aos 70, o que vê o hip hop com desconfiança, mas que aprendeu a admirar as palavras e a música de MCK. Diz-se que uma canção sua é mais relevante politicamente e mais ouvida que os discursos políticos na Assembleia Nacional angolana. “A parte importante [em tudo isto] é a comunicação”, reflecte Nástio Mosquito. “Não acho uma coisa surpreendente que alguém eloquente como o MCK, e sendo do “povo”, tenha maior impacto no “povo” do que uma assembleia adormecida e distante do que se passa nas ruas”. Escrito isto, questiona, “é diferente em Portugal?” A distância entre as acções da classe política e a realidade nas ruas e a desconfiança, quando não indiferença, com que ela é ouvida, também faz parte da realidade portuguesa. Mas MCK, e o percurso de MCK, e a resposta das autoridades a MCK, é uma história angolana. Da Angola de hoje.

Estamos num estúdio lisboeta protegido do frio do Inverno. MCK está em Portugal para lançar o seu álbum, que será aqui distribuído pela Rádio Fazuma, grande ponte musical com África, em particular a lusófona. No dia anterior, MCK estivera na loja FNAC do Centro Comercial Colombo, para o lançamento oficial de “Proibido Ouvir Isto”. Recebeu-o um auditório cheio. Estavam lá nomes importantes do hip hop nacional como Valete, Chullage ou o angolano radicado em Portugal Bob Da Rage Sense. Lá estavam Conductor, nome fulcral da criação de uma identidade no hip hop angolano, através do admirável Conjunto Ngonguenha, e, mais tarde, já em Portugal, um dos fundadores dos Buraka Som Sistema. A apresentação do álbum foi um misto de conferência política e de sessão musical, o que faz todo o sentido: “Aborreço-me batendo nas mesmas teclas / Falo muito de política. Poderia cantar futilidades para distrair o povo”, diz MCK.

Acompanhado por Mr Isaac e por DJ Nel Assassin, rappou canções do novo álbum, foi filmado pelas dezenas de telemóveis, arrancou aplausos quando chegou “Atrás do prejuízo”, canção maior que nos atira para o centro da vida quotidiana dos habitantes dos musseques, ou quando apresentou “No país do pai banana”, retrato de uma dependência e reverência, imposta mas já inculcada na população, perante um homem providencial acima de qualquer crítica (que pode ser o patrão, o chefe da repartição, o Presidente da República).

Quando o vimos pela primeira vez, no vídeo de “Atrás do prejuízo”, era um rapaz de boné e camisola larga que correspondia à imagem b-boy do hip hop. Hoje, de óculos e casaco de bom corte, surge-nos na sua elegância descontraída como artista com algo de estadista, ouvindo compenetrado as perguntas e, ponderado, pausado, alinhando cuidadosamente as respostas e utilizando aqui e ali um humor certeiro.

Kuduru - Fogo no Musseque (Dir. Jorge António)Kuduru - Fogo no Musseque (Dir. Jorge António)Encontrámo-lo no dia seguinte, no estúdio protegido do frio. Pedro Coquenão está connosco. Figura de destaque da Radio Fazuma, é membro dos Batida que, há dois anos, cruzaram kuduru com a música das décadas de 1960 e 1970 preservada nos arquivos da delegação angolana da Valentim de Carvalho (o álbum chama-se “Dance Mwangolé” e é acima de recomendável). Coquenão mostra as últimas pérolas do passado angolano que descobriu nos arquivos. MCK reconhece algumas. Ouvia-as na Rádio Nacional de Angola, enquanto crescia.

Nasceu em Luanda, no município da Ingombota, no bairro do Maculusso, filho de um motorista e de uma empregada doméstica, e é o mais novo de oito irmãos. Quando os pais se separaram, mudou-se com a mãe para o Catambor, “um dos bairros periféricos com maior foco de crime”. Mudou-se novamente pouco depois, “para um bairro um pouco mais pesado”, o Margoso, ou “Chabá”. A educação religiosa que recebeu por influência da mãe, testemunha de Jeová, serviu de protecção. Não fosse essa presença e “até aos 12 anos”, comenta, “estaria ligado ao crime ou seria alcoólico”. O seu percurso estudantil é um frenesim. É licenciado em Filosofia, mas tem também o curso básico de Fisioterapia. E também passou pelo curso de Administração Pública do Instituto Médio de Economia. E, terminada a filosofia, está agora a estudar Direito. Sede de conhecimento? Certamente. Mas não só. “A pobreza leva-te a experimentar um pouco de tudo. Fazes aquilo que podes e não aquilo que queres”, confessa. Não é por acaso que diz sentir-se um vencedor: “Apesar de crescer naquela confusão, naquela promiscuidade em que é quase impossível sobreviver honestamente, preservei a ética e o sentido de vida honesta. E contribuí para a construção desse espírito na comunidade angolana. Conseguir sobreviver sem me corromper já é uma vitória”.

Musseque de LuandaMusseque de Luanda

Durante este percurso, a música atravessou-se no seu caminho. Começou pelo breakdance, influenciado pelo cinema americano. Depois chegaram os sons de Run DMC ou Public Enemy, primeiro, chegaram depois os brasileiros Racionais MCs e Gabriel O Pensador, chegou de Portugal a compilação “Rapública” e, mais tarde, Boss AC. Quando tomou contacto com a literatura das independências africanas, com os ideais do pan africanismo e com o “renascimento” da comunidade afro-americana, tudo se conjugou. “Todos eles aconselhavam um resgate e uma valorização cultural, uma visão mais integradora e um maior respeito pelo sentido de patriotismo. Associei isso ao facto de o elemento mais forte de transmissão de conhecimento que temos em Angola ser a oralidade. Tem força vinculativa e faz com que a música não seja só música. É um instrumento de luta, de partilha de educação, de passagem de testemunho.” A identidade musical estava definida - o hip hop, que cumpre a mesma função que a música de protesto nas décadas de 1960 e 1970, a acolher no seu seio a tradição musical angolana e a diversidade cultural do país. Depois, a realidade à sua volta deu-lhe as palavras de que precisava.

Em 2002 lançou o primeiro álbum, “Trincheira de ideais”. Em 2006 o segundo, “Nutrição espiritual”. E agora chega “Proibido Ouvir Isso”. São, à primeira vista, para quem pretende intervir tão proximamente na realidade angolana, muitos anos entre cada disco. MCK corrige-nos. Antes de mais, não vive a música profissionalmente. Trabalha numa empresa de transportes, desenvolve projectos como freelancer em comunicação e marketing, estuda Direito à noite e é um independente que gere uma pequena editora, a Masta K Produções, e que nem sempre consegue “juntar 60 mil dólares” para lançar um novo álbum - “sou um bocadinho aquilo que é o modelo de Angola, um laboratório de sobrevivência”.

José Eduardo dos SantosJosé Eduardo dos SantosVê os seus discos como “interpretações” do tempo que passou e do que mudou na sociedade entretanto. Nesse sentido, diz, “cinco anos são um bom espaço de tempo que oferecemos a qualquer governação democraticamente eleita”. Nesse espaço de tempo, viu a paz chegar definitivamente e, com ela, surgir por fim a possibilidade de pensar em mais que a sobrevivência até ao dia seguinte. Mas assistiu também ao “boom” do petróleo e a tudo o que isso implicou económica e socialmente. Critica a cultura materialista, a “cultura do petróleo e do diamante”, que tomou conta da mentalidade angolana. Critica o poder angolano pela corrupção endémica e o culto de personalidade em torno do Presidente - “devemos ser dos poucos países que têm um presidente vivo nas suas notas”. E não poupa o conformismo de tantos, que muito contestam no sofá de casa mas que na rua, como diz numa das novas canções, “é tudo sim chefe”. E aponta o dedo aos governos ocidentais, em especial ao português, por não questionarem de onde vem o tanto dinheiro que Angola tem agora para investir. Agrada-lhe a ideia de uma irmandade lusófona e, de resto, vê-a concretizada no plano artístico: a sua música circula pelos países lusófonos, os músicos colaboram entre si, e a sua Masta K distribui em Angola Sam The Kid, Valete ou o moçambicano Azagaia. Mas diz-se ofendido enquanto angolano ao perceber que tantos portugueses só vêem Angola como o “país onde se faz dinheiro rápido”, sem qualquer interesse em aprofundar outros laços que não os comerciais. E ofende-o igualmente a atitude dos angolanos que se vangloriam de serem hoje “colonos do português”, porque “compram casas onde desejam e compram tudo o que querem no Colombo”. Não vê fraternidade e desejo de conhecimento mútuo nessa relação. Não vê nisso futuro risonho. Não vê vantagens reais para Angola - diz mesmo que Angola devia procurar parceiros que conseguissem dar mais vantagens ao povo que Portugal.

MCK pertence a um nova geração de angolanos que pretende um outro país. A sua voz chega a todos, toca a todos. Em 2011, as manifestações na rua mostraram a face mais visível de uma contestação às desigualdades e à prepotência do estado que aqueles que aompanhavam os discos e as canções da comunidade hip hop já conheciam. São momentos de aprendizagem para todos, refere. O futuro há-de chegar. E MCK estará cá para cantá-lo.

Nástio MosquitoNástio Mosquito

Nástio Mosquito também estará nessa Angola do futuro. Cidadão do mundo, que leva os seus filmes e fotografias a Berlim, ao Dubai ou ao Brasil, escreve-nos que o que lhe permite “viver e trabalhar hoje em Luanda é o facto de o nosso sistema sócio-político estar em constante mutação desde 1992”. Vê o seu país como um grande espaço em aberto, cheio de possibilidades. “Tudo está a começar agora”, diz. “Temos de trabalhar e deixar clara a relevância do que fazemos. Relevância lúdica, prática e, em consequência financeira. O estado e o governo têm o seu papel, mas Angola só existe porque os angolanos existem”. Ouvimo-lo cantar “Angola não me respeita”, vimos o seu vídeo “My African Mind” em que reenquadra e questiona com humor desconcertante - porque é riso e um tiro no estômago - a narrativa africana criado pelo Ocidente. Não se diz um artista político: “O meu trabalho é artístico”, discorda. “Pode ser considerado social”, concede. E as angústias sociais são respondidas também politicamente. Se o meu trabalho é político é na consequência e não no ponto de partida”.

Em 2011, ano em que fundou a “fábrica de ideias” Dzzzz, observou as manifestações na rua angolana como “sinal real que a sociedade não está parada”: “Estamos em movimento e a articular aquele que é o nosso presente semeando um futuro que hoje é difícil de ter claro”.

2012, será um ano musical para Nástio Mosquito. Lançará um álbum duplo que será divulgado numa digressão por Angola e pelo resto do continente africano. Chama-se “Se Eu Fosse Angolano”.

 

artigo originalmente publicado no jornal Público, fevereiro 2012 

por Mário Lopes
Palcos | 1 Março 2012 | hip hop angolano, luanda, mc k, Nástio Mosquito