Rap dos anos 90 em Cabo Verde, o fenómeno Tchipie

Cabo Verde. Rap dos anos de 1990: o fenómeno Tchipie na reconstrução e representação da identidade feminina e de resistência

No universo cultural do hip-hop, de modo geral, prevalece ainda um discurso dominante que tende a minorar a importância da mulher na referida cultura, apresentando-a como um acessório ou adorno da atividade masculina. Noutros casos, ela é apresentada como uma espécie de alvo para o discurso masculino sobre as diferenças de género, cuja principal manifestação pode ser encontrada no machismo e na misoginia existente na comunidade negra norte-americana, vangloriada pelo gangsta rap

Existem, no entanto, segundo Simões (2010), autoras que contestam esta menorização, enfatizando as atividades desenvolvidas por vários rappers do sexo feminino. Se é verdade que o rap, elemento oral do hip-hop, tende a ser apresentado como a voz dos sem voz, ou seja, a voz de revolta dos jovens negros oprimidos (ou dos jovens periféricos e semiperiféricos, no caso cabo-verdiano), a sua versão feminina, pelo menos nos EUA, corresponderia a uma dupla forma de opressão: a de ser negra e mulher (ou mulher, jovem e pobre, no caso cabo-verdiano).

Para Weller (2005), apesar das mudanças significativas alcançadas pelos movimentos feministas e das transformações económicas, sociais e culturais que levaram a um crescimento da participação feminina na esfera pública (principalmente no mercado de trabalho), as jovens ainda constituem uma minoria nos movimentos político-culturais.

No espaço social cabo-verdiano, na metade dos anos de 1990, um dos grupos que poder-se-á ser considerado como um dos clássicos ou old school do rap feito nas ilhas, foram precisamente um grupo feminino, com residência no Bairro Craveiro Lopes, denominado Tchipie, que com a célebre música “Matchuburro”, ícone da revolução simbólica feminina contra a dominação simbólica masculina, pôs o dedo na ferida e denunciou os discursos machistas presentes na sociedade cabo-verdiana, sobretudo no seio da camada juvenil.

Ao compararmos as produções no hip-hop feito por homens e por mulheres, reparamos que as rappers tendem a falar as suas experiências pessoais como mulher, ao contrário dos rappers, que possuem nas letras um conteúdo mais abrangente. No entender de Matsunaga (2008), estas tendências prendem-se com as construções sociais de ambos os sexos. Neste sentido, as rappers, compartilham representações mais enraizadas na sua condição de mulher, embora, citando a autora:

“Podem contribuir para a formação de novas representações ao instituir elementos novos, divulgando outras formas de compreensão da mulher, que, além de ser mãe e companheira, também organiza em grupos de luta, propondo, portanto, referências na construção do mundo e da mulher” (2008: 110).

Poder-se-á considerar que a atitude e o discurso das Tchipie situavam-se nesse propósito, contribuindo para uma revolução na cena do hip-hop crioulo, através da negação da submissão feminina.

Esta nova atitude feminina espelhada neste grupo de rap feminino enquadra-se então naquilo que Pardue considera ser um “fenómeno sociopsicológico bastante complexo, que envolve uma tensão entre a opinião, o comportamento e o juízo” (2008: 530), resultante das lutas simbólicas na relação de género no seio da camada juvenil praiense e nas avaliações das mesmas.

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As Tchipie representavam a mulher guerreira, uma agente pró-activa, que através do uso de roupas militares, bonés e da encenação de batalhas contra os homens nos espetáculos com gesticulações bruscas e agressivas, desafiando-os a responderem as suas provocações, redesenharam o conceito da feminilidade e trouxeram autoconfiança a muitas jovens.

Pardue (2008) considera que no hip-hop o conceito de atitude deve ser tratado como uma questão de visibilidade social que requer um ato de afirmação. Segundo este autor, os hip-hoppers associam atitude ao conhecimento e, por conseguinte, “ao objectivo maior de ser ‘real’ e representar a realidade” (Pardue, 2008: 531). A atitude das Tchipie e a música “Matchuburro” visava desconstruir, pelo menos no discurso, a atitude dos machos praienses, usando-os como “interlocutores negativos” (Pardue, 2008: 533), ridicularizando-os.

“Nhós sabi ma ten rapaz ki ta parsi gatus ma o ki bu txiga pertu es e pior ki patu / E ka ses manera di papia ke kuá-kuá / Problema e ses koru ke pior ki koka / Nada na kabesa mentalidadi baratu / Es tem maskulinidadi i sensibilidade di palerma / Ben bistidu ku sés Reebok i Nike na pé kes odja na revista o na TV […] / Pêtu pa fora pa es mostra mês ta podi ma kabesa pundel? Sta dentu braku”1 (Tchipie, 1995).

Por outro lado, o rap das Tchipie constrói para si uma representação positivada, baseada numa dimensão moral valorizada pela sociedade santiaguense: a luta (representação que premeia a luta contra um clima adverso, as secas, as fomes e a irresponsabilidade parental), a resistência (representação que premeia a resistência antissistemas escravocrata e colonial) e a esperança (a eterna espera do advento de dias melhores). Na vida quotidiana, perante a dominação simbólica masculina, estes valores são utilizados como referência identitária na construção da representação da mulher como independente e batalhadora, negando o imaginário social reproduzido no qual ela é representada como frágil, passiva e dependente.

Apesar dessa representação simbólica de resistência feminina, a performance das Tchipie poderá também ser encarada como resultado da dominação masculina interiorizada pelas mulheres. Em ralação a este ponto, Nega Gizza, rapper brasileira, é de opinião, segundo Lara e outros (2010), que no Brasil, o fato de inicialmente as rappers trajassem de forma masculina, era sintoma de que não possuem identidade própria, uma vez que, a sua identidade tinha sido copiada das rappers norte-americanas. Afirma que era a única forma de serem aceites, sem nenhum tipo de juízo, num universo maioritariamente masculino (exclusivamente masculino no início, no caso cabo-verdiano). Obviamente, esse discurso de relação de género servirá analogamente para explicar a apropriação das Tchipies de imagens masculinas no contexto em análise.    

Contudo, ao contrário, do acontecido nos EUA, em que as mulheres encontraram no rap uma arma de tornar pública as diferentes formas de discriminação por que passam, nas ilhas, a moda não pegou e essa nova forma de reivindicação feminina através do rap teve inicio e terminou com as Tchipie, se calhar, devido ao fim prematuro do grupo por motivos académicos inerentes ao universo juvenil da época2, por um lado, e, por outro, o não aparecimento de outros grupos femininos com a mesma visibilidade3 e incentivos4

Referências bibliográficas

Lara, Juliana Sequeira e outros (2010), “Mulheres no RAP carioca: inserção e preconceito”, Comunicação apresentada no VIII Congresso Iberoamericana de Ciência, Tecnologia e Género, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, 05-09 de Abril.

Matsunaga, Priscila Saemi (2008), “As representações sociais da mulher no movimento hip hop”, Psicologia & Sociedade, Vol. 20, Nº 1, pp. 108-116.

Pardue, Derek (2008), “Desempenhando atitude: uma imposição de espaço e género pelos hip hoppers brasileiros”, Revista de Antropologia, Vol. 51, Nº 2, pp. 519-546.

Simões, José Alberto (2010), Entre a rua e a internet: um estudo sobre o hip hop português, Lisboa, ICS.

Weller, Wivian (2005), “A presença feminina nas (sub)culturas juvenis: a arte de se tornar visível” Estudos Feministas, Vol. 13, Nº 1, pp.107-126.

  • 1. “Sabem que existem rapazes que parecem gatos mas quando se chega perto são piores que patos / Não é a sua maneira de falar que é kuá-kuá / O problema são as suas conversas que são piores que cocô / Nada na cabeça mentalidade barata / Têm a masculinidade e sensibilidade de palerma / Bem vestidos com seus Reebok e Nike nos pés que viram na TV […] / Peito para fora para mostrarem que podem mas a cabeça está onde? No buraco”.
  • 2. Devido a não existência de estabelecimentos universitários no país na época, terminado o ensino secundário, os jovens deixavam o país para estudar em universidades estrangeiras. Situação que explica, por exemplo, as interrupções constantes no desenvolvimento de jovens desportistas cabo-verdianos, sobretudo no futebol, basquetebol e andebol, nos anos de 1990 e início do anos de 2000, estancando assim o desenvolvimento dessas atividades.
  • 3. O grupo soube muito bem aproveitar a oportunidade trazida pela campanha legislativa de 1996, abrindo, juntamente com os Niggaz Badio, comícios do Movimento Para a Democracia (MPD), partido que sustentava o governo. Convém referir que foi neste ano que dá-se início à instrumentalização dos rappers por parte dos partidos, embora, necessário é salientar o fato de que os rappers, também, souberam muito bem utilizar a sua tática.
  • 4. As Tchipie tiveram a bênção de “Gugas” Veiga, um dos produtores e promotores musicais com maior sucesso nas ilhas, e, Heavy H, artista em voga na época, aparecendo inicialmente como a equipa de coro deste cantor.

por Redy Wilson Lima
Palcos | 6 Novembro 2012 | Cabo Verde, feminino, Hip-Hop