Os órfãos têm outra vez um lar

Parece boutade mas não é: com a publicidade certa, com sorte, com o que quer que seja que faz com os olhos todos se virem para o mesmo lugar num determinado momento, Ronald Edward Lewis, um americano que não nasceu em Memphis na década de 1940, podia ter um lugar na história equivalente ao de Marvin Gaye.

O seu primeiro disco, editado em 1974 na prestigiada Stax, tinha tudo para ser “o” disco: a voz de três oitavas a ondear por entre uma suave cortina melódica, um fundo jazzy sempre em oscilações rítmicas e por cima, ora trôpego, ora manso, ora violento, ora melancólico, o zumbir sem fundo da orquestra, violinos a exponenciarem o rasgo da voz, flautas a cirandar por todo o lado.

Podia apostar-se todas as fichas no disco – era impossível falhar: tinha fundura, tinha corpo, tinha balanço, tinha canções que se atiravam aos seis minutos. E foi o mais redondo falhanço, um falhanço que encerra em si – pela grandeza do disco e pela história pessoal de Bond – o desamparo de toda uma geração negra.

A Stax, em queda depois da morte de Otis Redding, apostou o dinheiro na produção e não promoveu o disco quando conclui que este tinha um som mais suave que o habitual na editora. Bond foi para a estrada sozinho defender um disco com uma latitude sonora gigantesca. Não havia discos nas lojas, quase não havia gente nos concertos. (A que havia nunca o esqueceu e é graças a elas e para elas e os que vierem a seguir que este texto existe.)

 Lou Bond Lou Bond

Seguiu-se o costume: comas inexplicáveis, pernas partidas, depressão, drogaria, álcool. A coisa foi dura ao ponto de nem as amizades lhe valerem – e que amizades: Isaac Hayes era fã, os Rotary Connection (Minnie Riperton na voz) idem.

Bond nunca mais voltou a gravar e ficou em “coma” mediático até ao ano passado quando a Light In The Attic o reeditou. Em Portugal só agora chega às lojas esta obra seminal que sintetiza de forma belíssima uma vida tremendamente violenta: os pais de Bond separaram-se quando era miúdo e ele, por razões que ainda hoje não sabe explicar, não ficou com nenhum, crescendo em lares de acolhimento (graças aos quais conheceu o gospel na missa e a country na rádio).

A ferida aberta na infância reproduziu-se freudianamente na vida de saltimbanco que levou em adulto: tal como os pais biológicos, os vários pais adoptivos nunca ficaram com ele; e Bond acabou a dormir nas ruas porque não queria ser um peso para ninguém. Hoje diz estar feliz com a reedição.

Seria uma história bonita ou triste conforme o olhar de cada um, não fora ter-se repetido com dezenas de artistas da soul dos anos 1970: é que de 1969 a 1974 não só houve uma carrada de discos que, com mais ou menos suor funk, com mais ou menos recurso a metais ou orquestras, elevaram a soul à condição de território experimental glorioso, como também se dá o caso de quase todos esses discos terem sido fracassos comerciais que ficaram no esquecimento até à reedição – todas elas recentes.

Em comum, além da soul, esses discos só têm uma coisa: foram feitos por negros e têm um olhar impiedoso sobre a condição de ser negro e viver na América.

Para sermos exactos, têm mais um dado em comum, que depende de como pesarmos esse “esquecimento” a que foram vetados. É que até àquela época a música negra esbranquiçava-se, única forma de conseguir pontuar nas tabelas de vendas – e os cantores e compositores que ficaram nas margens foram os primeiros a recusaram esse namoro com o centro, os que olharam à volta do ponto de vista do negro. (O que não é o mesmo que dizer que todos os que olharam do ponto de vista do negro ficaram à margem da história.)

Podemos dizer: esses discos foram abandonados quando foram lançados, foram negligenciados a posteriori e foram apagados da história.

É certo que álbuns como “Stand” (1969) ou “There’s a Riot Going On” (1971), de Sly and the Family Stone, “Curtis” (1970), de Curtis Mayfield, “Pieces of a Man” (1971), de Gil Scott-Heron se tornaram discos icónicos, e que gente famosa como James Brown ou as Staples Singers lançaram, nessa época, discos acentuadamente políticos (basta lembrar que JB editou o single “(Sing it loud) I’m black and I’m proud” em 1969). Mas a verdade é que o grosso da produção negra não encontrou, no seu tempo, eco em lado algum – é como se houvesse uma cortina entre o real que cantavam e os potenciais consumidores. Entre quem fazia a música e quem a ouvia alguém escolheu não ouvir esta música que só agora vem à tona.

A questão é: que discos são esses, onde andam?

Não há uma resposta fixa, isto é, não há um único tipo musical em jogo. Trata-se de gente extremamente díspar que, como foi dito, só tem em comum a soul como casa partida e a América negra como chegada.

É gente como Lou Rawls, homem de voz poderosa, de crooner, que em 1972 deu uma guinada na carreira e resolveu olhar para o que andava mal no mundo – daí resultou um tremendo disco, “Man Of Value”, tematicamente de acordo com o título. No outro extremo temos a loucura dos Madhouse, que foram buscar Nixon para a capa do estupendo “Serve’em”, de 1972, cujo título carregado de sarcasmo denota logo a carga explosiva da música, um funk assente em riffs mais oloeados que pele de modelo em foto de bikini, ou em linhas de baixo tão gordurosas, tão repletas de graves cheios, roliços, gulosos que a espinha começa a comichar, segue-se-lhe o pescoço, depois desce até aos pezinhos a modos que na mesma altura em que os braços se arribam e ao fim de uma canção nota-se que o corpo entrou involuntariamente no modo “dança”.

E se quisermos falar de coisas do outro mundo, temos os Boscoe, combo que durou um só disco, homónimo – mas um magnífico disco: malhas de guitarra bluesadas a rastejar, spoken-word, flautas a tropeçar na pauta: em “Writin’ on the wall” é assim durante seis minutos antes de entrar um breve interlúdio aparentado da soul que logo descola rumo a uma névoa de ganza. Frase chave: “We were so busy kissing somebody’s ass that we forgot about the past”.

Ainda no outro mundo, mas no capítulo dedicado às vozes é impossível não abençoar a reedição de “The Baby Huey Story: The Living Legend”, disco de 1971 que reuniu – um ano após a sua morte – vários temas de Baby Huey, um homem gigantesco que nunca gravou em vida. Encontra-se lá a mais demoníaca, demencial e espantosa versão de sempre de “A Change is gonna come”, de Sam Cooke, transformada de balada dorida em soul fantasmagórica (primeiro) e funk psicadélico sideral (por fim).

Mas há dois homens que merecem ser vistos com mais atenção. O primeiro é Eugene McDaniels que em 1969 lançou “Outlaw”, disco que além de ser senhor de um balanço tão swingado que até faz babar (o wurlitzer, a guitarrinha picada) ainda dispara para outros lados a meio de cada canção. Dois anos depois McDaniels voltava com “Headless Heroes of The Apocalypse” e uma noção ainda mais própria da música negra (o baixo, por exemplo, não era tão proeminente como é usual na soul da época), agora fazendo pontes entre o gospel, arranjos lounge e a bluezada desafinada que sempre marcou o seu som, sem abdicar de um olhar politizado, ou social se quiserem.

Se McDaniels é um pioneiro, o louco Swamp Dogg não lhe fica atrás. Dogg era uma personagem única, que dizia de si mesmo ter-se deitado um dia analfabeto e acordado no dia seguinte um génio musical. Em 1970 atirou uma granada louca chamada “Total Destruction to Your Mind”, que tem em “Synthetic world” a mais perfeita encarnação da soul-pop que não abdica de pensar – um órgão de derreter mel coxas abaixo, a voz plena de sarcasmo, o ritmozinho dolente e de repente ali os metais, a guitarra wah-wah, o acelerar do tempo da voz – uma canção de (como dizer?) génio. Não contente e com o rabo quente Dogg voltou no ano seguinte com “Rat On!”, um disco com uma das capas mais hilariantes da história da pop – e mais pesadão, mais funkalhão que o anterior.

O que é que há-de tão curioso nestes dois homens? O facto de – antes de Marvin Gaye e Stevie Wonder lá chegarem – comporem álbuns conceptuais, tanto ao nível do som como dos assuntos abordados.

É curioso notar que a história oficial proclama que a independência dos artistas negros se deve a Stevie Wonder(que também se politizou em “Innervisions”, de 1972, quatro anos antes do seu génio partir para um exílio de onde só voltou sob o nome de Prince) e Marvin Gaye. Podemos argumentar que além de terem canções tremendas Gaye e Wonder têm o peso que têm exactamente porque fizeram discos conceptuais. É bom notar, no entanto, que antes disso já Curtis Mayfield fundou a sua própria editora, a Curtom, em 1970 e também ele tinha um programa.

A história neste aspecto é exclusiva, porque o território que Wonder, Gaye e Mayfield – pese a sua grandeza – marcaram já tinha sido explorado por Swamp Dogg e por Eugene McDaniels, cujo rótulo de pioneiros valeu zero na conta bancária.

Podemos perguntar-nos porque raio é que um ou outro disco permaneceu durante bastante tempo no imaginário colectivo enquanto todos os outros não. A resposta terá de incluir uma espécie de atitude de resistência face à indústria, que toda esta gente partilhava. Por outro lado responsabilizar exclusivamente os brancos pela enormidade de música negra que ficou posta de parte não só parece abusivo como também maniqueísta e excessivamente simplificador – por alguma razão os Boscoe apontavam o dedo à própria comunidade negra.

A única coisa que sabemos é como é que alguns destes discos evitaram o completo oblívio: graças ao hip-hop. Quando o hip-hop ganhou consciência do passado, quando foi à procura das suas raízes começou a usar samples de toda esta gente. Para dar dois exemplos simples, “Jagger the Dagger”, de Eugene McDaniels, foi usado por uma data de grupos, dos A tribe Called Quest aos Gravedigazz. E se formos à obra de Lou Bond verificamos que em 1996 osOutkast usaram um sample de “To the establishment” (sem a mais pequena dúvida e sombra alguma de exagero uma das maiores canções de sempre) em “Wailin’”, Prodigy usou o mesmo sample em “Trials of Love” (2000) e por aí fora, numa lista que inclui Mary J Blidge.

Os discos que quiseram olhar de forma negra para o negro ficaram quase todos de fora. Lentamente pequenas vinhetas foram sendo extraídas e fizeram-nos regressar sob a forma de base sonora. No século XXI ressuscitaram em reedições de coleccionador, obrigando a uma revisão histórica: antes 1969 era o ano em que os Velvet tinham surgido, agora podemos dizer que é o ano do fenomenal “Cryin’ in the streets”, de George Perkins & the Silver Stars.

Uma última nota: Lou Bond pensou durante muitos anos que tinha nascido em Memphis e só quando aos 13 anos conheceu uma tia é que ficou a saber que tinha nascido em Chicago.

De certa maneira estamos no mesmo pé que ele: pensávamos que tínhamos vindo dali e afinal (também) viemos dacolá.

Do pouco que se sabe de Lou Bond percebe-se que ele deseja apenas que o Senhor lhe dê paz, uma reforma tranquila e que a sua música seja ouvida.

Seja feita a sua vontade.

 

publicado originalmente no suplemento Ipsilon do jornal Público, 29/1/2010

por João Bonifácio
Palcos | 31 Janeiro 2011 | Lou Bond, soul music