Os Monstros, quando a qualidade supera barreiras raciais

‘Os Monstros’, considerados por muitos o melhor grupo musical moçambicano no período marcaram, entre 1968 e 1976, uma geração pela sua postura e qualidade musical. A banda era constituída por jovens negros adolescentes. Na formação inicial do grupo estava Arlindo Estevão, António Manjate (falecido), Adolfo Macaringue e João Paulo (falecido). Mais tarde juntaram-se Máximo (baterista), João Pais (organista) e Marcelo (trompetista). Residiam nos bairros suburbanos de Maputo: Mafalala, Chamanculo, Minkadjuíne, Indígena e Mahotas.

Começaram por se chamar ‘Mártires’ mas, por questões de marketing, acabaram por ser ‘Os Monstros’. A situação mundial prevalecente na altura contribuiu bastante para a postura adoptada pela banda. De acordo com os seus testemunhos, acontecimentos como o Maio de 68 em França, a Guerra do Vietname, o movimento hippie altamente contestatário em relação a esta guerra, Martin Luther King e a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, desempenharam um importante papel para o desenvolvimento de uma atitude contestária e uma consciência cultural muito forte entre eles. Para além de que o ambiente estudantil negro em que gravitavam, era caracterizado pela leitura e discussão de obras de autores como Franz Fanon, Ângela Davis, Black Panthers, Stockley Carmichael, William Dubois e, no caso moçambicano, Luís Bernardo Honwana e o seu Nós Matámos o Cão Tinhoso. 

As leituras levar-lhes-ão sucessivamente ao Panafricanismo, Negritude e à Soul Music. A Soul Music é escolhida pela banda pelo facto de cantar o negro e as injustiças sofridas por este. Assim, será com este género musical que ‘Os Monstros’ irão entrar para o mundo da música e tornar-se populares no país. A popularidade e a qualidade das suas músicas supera as bandas de brancos o que, em pleno período colonial, não era usual. A sua popularidade e ascenção em plena sociedade colonial segregacionista e racista deveu-se a uma série de factores. Um deles foi a entrada de David Abílio  - amigo de infância dos membros da banda – para o Jornal Notícias. A partir dali estabelece contactos com colegas de profissão que passam a cobrir as actuações do grupo e pela qualidade demonstrada nas suas actuações, a imprensa vai ser unânime em afirmar que a banda era das melhores no seu género.

E outro factor não menos importante, terá sido a situação politíca da época. A década de 1960 no espaço de lingual portuguesa é marcada por transformações de grande importância que irão mudar radicalmente a situação nas colónias portuguesas. A Guerra de Angola iniciada em 1961 e que levará à abolição do estatuto do Indígena e ao início de políticas de aceitação do negro. Portanto, a aceitação e promoção dos ‘Monstros’ pode ser enquadrada neste contexto político-social marcado por um esforço de preservação das colónias, através da conquista das mentes dos povos colonizados. Assim, os ‘Monstros’ podem ter servido os interesses portugueses neste sentido, mas em contrapartida, foram um manifesto de identidade negra através da sua música.


A transição do subúrbio para o cimento 

Assim, do Centro Associativo dos Negros de Moçambique, festas familiares e casamentos na zona suburbana, ‘Os Monstros’ dão um salto qualitativo para a “zona de cimento”. Aqui começam por actuar em bailes de finalistas que na altura eram considerados festas de elite e quem actuava nelas eram também indivíduos provenientes do mesmo meio social. Portanto, quebrava-se assim uma situação social que estava profundamente enraízada. A primeira actuação foi no baile de finalistas dos estudantes da Escola Comercial que, diz-se, ter sido espectacular. Surpreendentemente, uma banda de jovens negros que tocava Soul Music levara jovens brancos ao delírio.

Qual a razão do sucesso? A qualidade técnica dos membros da banda, criatividade, espectacularidade e boa capacidade de execução estarão por detrás desta reacção e aceitação. Terá pesado também o facto de serem praticamente da mesma idade, o que levou a que se criasse uma empatia muito forte com os seus fãs. Pois, para além da música soul, o grupo também executava números de bandas famosas na época como os ‘Credence Clear Water Revival’ adaptando as suas músicas para o soul tornando as suas versões melhores que as interpretadas por outros agrupamentos locais. Gradualmente a sua fama vai crescendo à medida que os convites se multiplicam. Lugares que antes estavam reservados a bandas constituídas por indivíduos de raça branca e mestiça passam a estar acessiveís aos ‘Monstros’. Nesta senda, o grupo actua no Clube Militar de Lourenço Marques, privilégio reservado a poucos, para as altas patentes do exército e agrada. O desempenho dos ‘Monstros’ contribuíu para o reconhecimento do negro como alguém capaz e com valor. Esta mudança de atitude teve um impacto muito grande no seio da juventude negra de Lourenço Marques.

 

O resgate do orgulho negro

Paralelamente à acção psico-social de promoção do negro e à aceitação verificada nos círculos raciais brancos e na zona urbana, os moçambicanos negros sentiam-se orgulhosos pelo facto de existir uma banda de jovens negros que tinha aceitação multiracial sem constragimentos de nenhuma espécie apesar da continuação do sistema colonial e da Guerra de Libertação iniciada no norte do país pela FRELIMO. Surgem mais bandas de jovens moçambicanos a tocar ritmos que não eram limitados ao folclore. ‘Os Monstros’ tiveram um impacto bastante grande entre a juventude negra a nível das mentalidades. A sua auto-estima e os seus índices de confiança melhoraram bastante, pois, ao cantar Soul Music, música do negro norte-americano, estes passavam a mensagem de luta dado que aqueles eram conhecidos pelo uso da música como instrumento de luta, de denúncia e contestação ao sistema. Isto era feito de uma forma tão subtil e com uso de linguagem metafórica, que o poder colonial não se sentiu em nenhum momento confrontado, daí que o grupo tenha sido largamente aceite pelo establishment. A ideia de negro preguiçoso, desprezível e incapaz de fazer coisas boas como era veículado pelo sistema político de então, era assim desmentida.

 

O alistamento no exército português

Em 1970, dois membros da banda - João Paulo e João Pais - são convocados para a tropa, o que ameaça desintegrar a banda. Para evitar que isso aconteça, os ‘Monstros’ alistam-se voluntariamente mesmo com alguns elementos sem idade regulamentar, caso do baterista Máximo, revelando deste modo a profunda amizade e espírito de solidariedade existente entre eles. A entrada para o exército português é facilitada pelo Movimento Nacional Feminino (MNF) adstrito às Forças Armadas que intercede a seu favor, junto do General Kaúlza de Arriaga. Este concede a autorização e passam a ser a banda do exército em Moçambique actuando em quartéis e bases militares em substituição da banda do português João Paulo que, durante anos, havia tocado para as tropas.

A sua passagem pelo exército não foi de todo pacífica dado que alguns membros do exército não entendiam o estatuto especial de que gozavam. O conjunto era obrigado a realizar espectáculos para o exército durante três meses consecutivos, findo os quais descansavam durante nove meses. Durante o período de descanso aproveitavam para ensaiar e estudar. Ficam baseados em Nampula e por quatro anos vão actuar em todos distritos (hoje provincías) de Moçambique. É nesta fase que o agrupamento se torna o mais popular de Moçambique e, em termos musicais evolui bastante, pois, para além do Soul Music, tocam o Underground, Funk, Pop-Music e o Rock.

Sobre a passagem por Nampula, Máximo, baterista da banda, recorda que naquela cidade o racismo fazia-se sentir de forma muito forte, de tal modo que as moças locais não namoravam com negros. Mas, com a chegada da banda, no espaço de um ano a situação mudou completamente. Outro episódio interessante vivido por ele ocorreu na Beira, cidade que era a mais segregacionista do país. Ali, a banda foi convidada a actuar num clube Chinês, mas por algum motivo ele atrasou-se e não entrou ao mesmo tempo que os colegas, então, a entrada foi-lhe negada. Para que entrasse foi necessária a intervenção dos outros elementos do grupo para confirmarem que fazia parte do conjunto.

 

A desmobilização e o fim da banda 

Após os quatro anos de serviço militar em que ‘Os Monstros’ percorrem o país de lés a lés a entreter as tropas, dá-se a desmobilização. A desmobilização acontece em 1974. Esse ano é marcado por uma série de acontecimentos, nomeadamente o 25 de Abril, a Assinatura dos Acordos de Lusaka que permitem a constituição de um governo de transição que levará à independência em Junho de 1975. Assim, a desmobilização ocorre num período conturbado acaba por ditar o fim do agrupamento. Pois, com a independência, novos valores foram adoptados e Os Monstros já não se enquadravam num processo que dava primazia à música de cariz moçambicana. Então, tal mudança para o agrupamento afigurou-se difícil para além do próprio momento político que conotava tudo que não tivesse origem africana e moçambicana de reaccionário, decadente e burguês. A banda foi considerada conivente com o sistema colonial português e assim o seu fim foi inevitável. O ano de 1976 marca o desaparecimento oficial dos Monstros e a emigração de um dos seus elementos mais carismáticos, o vocalista João Paulo. Este emigra para a África do Sul em 1978, onde se manteria até 1999, quando volta de vez para a Moçambique.      

 

O reencontro e o fim definitivo

O reencontro verifica-se com o regresso de João Paulo em 1999. Os membros da banda agora adultos e com diferentes actividades tentam reconstituir a banda. Apenas dois espectáculos são realizados e apercebem-se que os tempos são outros e que a adrelina da juventude e a disciplina do grupo já não é a mesma. De jovens disciplinados, regrados e sem vicios que eram, tudo se esfumara. Também a boa imagem que tinham deixado dos Monstros na década de 60 e 70 obrigava-os a não continuarem, sob pena de destruírem o legado que haviam construído. Assim, em 2000, realizou-se o ultimo espectáculo e cada um se dedica às suas actividades profissionais. Apenas João Paulo continua a cantar como músico profissional até à altura da sua morte em 2009. Deste modo encerrava-se uma época.

‘Os Monstros’ foram sem dúvida uma das bandas mais populares de Moçambique senão a mais popular durante o período da sua existência (1968-1976). A qualidade da sua música e a consciência política e social demonstrada pelos seus membros levou a que a banda fosse única nesse sentido.  A escolha de um género musical que era atribuído ao negro norte-americano mostra por si só uma atitude contestatária que foi veiculada de forma bastante inteligente através do uso de linguagem metafórica altamente truncada. Aliado a isso é preciso considerer a qualidade técnica e a espectacularidade dos seus instrumentistas que conseguiram cativar a juventude urbanizada europeia daquela época e não só, consumidora da música pop de então. A criação de uma rede social forte também ajudou na sua ascenção e afirmação naquele contexto. A política de promoção social do negro implementada pela psico-social teve uma grande influência na aceitação generalizada por parte da sociedade colonial e a sua adopção pelo exército.

A qualidade da música foi outro factor que ajudou a quebrar preconceitos racias e impor a banda e simultaneamente despertar o orgulho negro e auto-confiança entre a juventude nativa. Esta aceitação e aclamação pelas instituições e sociedade colonial terá sido a causa do seu desaparecimento e morte cultural aquando da independência. O novo regime vinha com um projecto de sociedade que não compactuava com o passado e a forma de ser e estar dos ‘Monstros’. Com uma base social essencialmente rural não havia espaço para valores urbanos ainda que estes fossem professados por jovens negros. Pois, estes eram vistos como elementos perniciosos para a juventude da nova sociedade que se pretendia criar. Sendo assim o fim da banda era inevitável. Pois, nesta fase da revolução moçambicana a independência intelectual era interpretada como uma ameaça o que levou a que muitos jovens abandonassem o país. 

por Rui Guerra Laranjeira
Palcos | 5 Julho 2010 | moçambique, música, soul music