Nós matámos o cão tinhoso!

Criação TEATRO O BANDO a partir do conto de LUÍS BERNARDO HONWANA
Dramaturgia e Encenação NUNO PINO CUSTÓDIO
Espaço Cénico e Figurinos MARTA CARREIRAS
Coordenação Musical RUI JÚNIOR Oralidade TERESA LIMA
Desenho de Luz JOÃO CACHULO Assistência de Encenação HUGO GAMA
Interpretação NICOLAS BRITES, NUNO NUNES,
RAÚL ATALAIA, ROSINDA COSTA, SARA DE CASTRO

20 de Maio a 20 de Junho, Quinta a Domingo às 22h00
20 de Maio a 6 de Junho, na Escola Básica 1 – Nº2, Palmela
10 a 20 de Junho no Teatro bando, Vale dos Barris, Palmela

 

Quantos destinos nos abandonam ao entrarmos no caminho dos homens?
Quantos caminhos abandonamos no destino que seguimos?
Invocamos o coro e a estrutura das tragédias para traçar o conflito que a
todos nos percorre. O conflito que se ergue entre aquilo a que aspiramos e
aquilo que fazemos, entre o que lembramos e o que crescemos, entre o que
amamos e o que tememos.
Pois ao olharmos o cão tinhoso vemos também o cão que somos, o cão do
medo, o cão da guerra, o cão colonizado, o cão colonizador, o cão coragem,
o cão da decadência, o cão de fantasia, o cão da ingenuidade, o cão criança
adulta, o cão fatalidade.
Porque todos os gestos que desenhamos no exterior já aconteceram antes
disso dentro de nós. E aquilo que ao mundo damos, seja morte ou seja amor,
só a nós oferecemos em silêncio. Mas quando o destino nos escolhe, qual é o
destino que escolhemos?

 

foto de Pedro Soaresfoto de Pedro Soares

 

Nós Matámo-nos Uns aos Outros!
O teatro que procuro, para não dizer apenas o caminho que sei expressar e descobrir, resulta de toda uma experiência de viver e sentir uma sociedade como esta, orientada pelo hiperconsumo. De um modo quase só subconsciente, manifesta-se como uma contra-resposta à experiência de violência que é sair a uma rua.
Entenda-se, em traços muito gerais, que me refiro a toda uma estrutura que impõe a velocidade como fundamental para a sobrevivência, colocando os seres humanos perante o exclusivo das experiências superficiais e, portanto, fazendo com que se identifiquem com a forma (de pensamentos, acções, comportamentos, identidades…). Uma experiência de desintegração, de isolamento e de manipulação, onde sobreviver continua a exigir a destruição
do próximo.
Como num exercício de clareza pela oposição, descobre-se todo um caminho ético que desembocará, finalmente, num resultado estético, mas onde o teatro se torna polaridade e só funciona enquanto máquina que cria ou desenvolve humanidade.

Agora, cada vez mais, os actores são também espectadores dos espectadores e estão ainda mais concentrados na impossibilidade de prosseguir se não se souber manter a interdependência com quem os vê no patamar do aqui-agora. Também os espectadores se projectam muito mais nas acções e pensamentos das representações, uma vez que são estimulados por sugestões que se completam e desenvolvem com a capacidade de se emocionarem, criarem e manterem imagens. Igualmente, existe uma vontade cada vez mais
expressa de sentir por outro, de nos dedicarmos a uma alteridade como espaço de encontro onde nos aliviamos, aí sim, dos fardos do ego, para finalmente nos encontrarmos.
É aqui, nesta perspectiva, que nasce toda uma leitura mais ontológica do inspirador conto de HONWANA. É a que sei sentir e acreditar. Em última instância, a que revela como impulso central a ideia de que tudo o que façamos no mundo exterior, seja connosco, seja com outro ser, seja até com um objecto, não passa de um encontro com a nossa essência mais íntima, se assim lhe pudermos chamar, a natureza do nosso amor.
Uma representação recitativa. Um exercício-ritual. Minimal, escasso, pobre nos seus mais variados recursos, perseguindo ao extremo as sínteses, a imobilidade… e o silêncio. A representação da consciência tida de uma leitura, bem para lá da representação de uma narrativa, porque é a forma de sentir, a maneira singular de ver as coisas que definem sempre um saber que se pode realmente transmitir, partilhar.
NÓS MATÁMO-NOS UNS AOS OUTROS!, como se fora uma tragédia ou um espaço necessário para inverter este sentido de intolerância que faz, inclusive, aumentar a suspeita de que em dois mil e quinhentos anos pouca coisa evoluiu neste mundo.

Nuno Pino Custódio

 

elenco, foto de Pedro Soareselenco, foto de Pedro Soares

Se Fosse Tudo Linear…
Objecto 1: Um texto específico, uma obra concreta
Objectivo: Reflectir sobre o objecto 1 para chegar a um outro que tem a forma e o tamanho
daquilo que um grupo de pessoas, hoje, pensou e transformou em comunicação
Enquadramento do Objecto 1: Moçambique
Enquadramento do Objecto 2: Vale dos Barris 2010
Proposta estrutural: Tragédia Grega, Atenas e Arenas

 

Às Voltas com a Vida
Se toda a vida caminharmos numa mesma direcção, vamos com a certeza que voltaremos ao ponto de partida, mesmo sabendo que não caminharemos nunca pelo mesmo sítio, nem da mesma maneira, e que todos os pontos de chegada são pontos de partida. Há qualquer coisa de antropológico na ideia de redondo que está na natureza humana, como no umbigo ou na origem do teatro.
Parece que andamos toda uma vida a criar matéria de vida, a cada dia, para nos podermos depois sentar numa cadeira e simplesmente descansar de tanto e subsistir de identificações, recorrências, reconhecimentos. Não falo de recordar, falo de reconhecer. Nenhum homem vive só de coisas que nunca viveu. O reconhecimento é essencial mesmo para o esvaziamento necessário ao conhecimento. Portanto, passamos a vida às voltas connosco e com nós mesmos só para chegarmos aos sítios onde já estivemos.
Esta ideia de redondo repete-se na história da história, como uma organização natural a partir da qual se desenham e decidem os desígnios da humanidade. Os deuses sentam-se no Olimpo, em concílio, à roda dos destinos dos homens; os cavaleiros na Távola Redonda; os imperadores nos coliseus; os actores nos anfiteatros; os cavalos e as bailarinas nas arenas; as pessoas nas praças; os cereais nas eiras; os altares nos adros; tal como um grupo de meninos em Moçambique ou um grupo de actores em Palmela.
E a vida segue em redondo, cíclica, umas vezes porque queremos, outras porque sim. O universo organiza-se em redondo, para que possamos sempre afastar-nos da ideia de meta.
Alcançar uma meta é apenas começar mais uma volta. E se formos rápidos ainda nos vemos a partir.
Esta ideia de reviravolta, retorno, retoma, reforça o pressuposto de que aquilo que lançamos para fora de nós vai cair-nos em cima, porque a nós o lançámos. E de repente, sem mais do que uns e outros, junta-se um grupo de gente para contar da sua história, da história que preparou para ser retribuída, da história que pediu para ser ouvida, porque dar aos outros é dar a nós próprios, assim como tirar.
E de repente, sem mais do que uns e outros, sugerindo nas vezes de fazer, propondo no lugar de concretizar, avança-se por matos densos, caminha-se no capim alto, na sala das aulas, nos muros e nos pátios dos segredos, onde mais do que decisões se tomam consciências.
A especificidade de cada lugar acontece na ponta dos dedos de um gesto e dura apenas o tempo essencial que leva um gesto a chegar ao reconhecimento do observador, para depois desaparecer no mesmo instante, fazendo acreditar que se pode tudo jogando com as regras dos homens, que não são mais do que as regras do nascimento do teatro.
E de repente, sem mais do que uns e outros… alguém ousa e avança.

 

Marta Carreiras

 

por teatro o Bando
Palcos | 23 Maio 2010 | Luís Bernardo Honwana, moçambique, o Bando, teatro