Jorge Ben, homem-jongo

Uma definição de Dante (sim, o remoto poeta italiano) a propósito da canção (canzone), diz assim: “…é uma composição de palavras postas em música” (o grifo é meu). Com efeito, a letra de música que, para dizer o mínimo, não é bem poesia, requer a sua “fenomenologia da composição” ou coisa que o valha. A simplicidade da definição do poeta florentino me autoriza a dizer outra coisa óbvia: a letra de música nasce para ser cantada e não lida ou declamada, do contrário seria um poema embalsamado nas páginas de um livro. Isto é, as questões de composição próprias a um texto que é “palavra voando” (na feliz formulação de James Joyce), exigem do letrista-compositor um comportamento perante a linguagem diferente daquele experimentado pelo poeta.

A canção é uma obra onde se integram de maneira inextrincável informações musicais e verbais. O compósito canção não é, portanto, um subdiretório daquela já consagrada poesia do suporte livro/papel, máquina verbal para ser, mais do que lida à viva voz, murmurada na solidão. Apesar de a canção conviver muito bem com a arte da poesia, não resta dúvida de que o canto-falado da música goza de uma especificidade em termos de linguagem. Neste sentido, a canção não tem, rigorosamente, nada a ver com um poema; da mesma maneira que, por exemplo, uma obra fílmica guarda muitas diferenças em relação a um espetáculo de teatro, ou à ópera, embora se possa observar, quem sabe, certa consangüinidade entre tais formas de expressão.

Na canção verifica-se uma oscilação permanente entre fala e canto. A expressão oral, os sotaques “cantados” (na fala do outro ouvimos com mais facilidade tal música), o pregão do ambulante, etc., são, por assim dizer, formas brutas da canção prístina. Uma sílaba mais longa, aquela pausa inesperada na elocução, uma seqüência de inflexões quase onomatopaicas, enfim, tudo isso está na raiz dessa fala que se transforma em canto, ou em sentido oposto, desse canto que, ocasionalmente, se reconstitui em fala. Não se pode “declamar” ou apenas “dizer” a letra da canção. Fazendo isso negamos a música que, ao fim e ao cabo, impõe os limites ao ajustamento das palavras, de acordo com aquele sentido requerido pela canzone dantesca. É como se tentássemos descrever um balão sem mencionarmos sua pele de látex.

Continuando, letra de música não é bem poesia. Entretanto, sei que, ao fim e ao cabo, a recepção, atualmente, tem em alta conta a hibridação dos meios — essa vaga avassaladora a levar e lavar tudo de roldão —, e sendo assim, é natural que se afirme que a poesia, visando a uma espécie de sobrevida, se deixe seqüestrar pela MPB e seus seguidores. Além disso, os poetas sentem-se desinflados demais porque sua visibilidade está longe daquela experimentada pelos compositores populares. É inegável que há um parentesco entre essas formas artísticas, mas cada uma tem a sua semiótica. Elas se encontram (em algum lugar), mas não se confundem. Enfim, para complementar de um modo bem tosco o que, a rigor, mal se constitui numa tese: perece-me que os poetas, de uns tempos para cá, começaram a se intrometer demais nas coisas da música popular; pretendem levar o debate para o andar de cima, para a “cobertura”. Eles é que mencionam os nomes de Caetano, Chico, Paul Mccartney, Arnaldo Antunes, etc., apresentando-os como poetas, mas já revelando o nascimento de um qualificativo por detrás deste substantivo agora no plural.  Mas, onde andam, e onde entram nessa discussão, os letristas-músicos “menos cultivados” e, não obstante, geniais, o pessoal da “laje”, por assim dizer, como Ismael Silva, Nelson Cavaquinho, Candeia, Zé Keti, Tim Maia, Antonio Marcos, o próprio Jorge Ben, e outros, hein? Muito bem, parece que já vislumbro alguém chegando num passo acelerado, para bradar que “eles são poetas também!”. An-han… Mas, aí eu passo. Um homem só não é temido nem estimado.

Agora, sobre Jorge Ben — e na perspectiva de que a canção seria essa “composição de palavras postas em música” —, o mínino que se pode tentar dizer a seu respeito, é que ele soube e, felizmente, ainda sabe como poucos, tirar proveito das tensões formais relacionadas ao gênero, e a partir deste ponto, produzir o inesperado e o experimental com uma liberdade despretensiosa, e entre lírica e brutalista. O texto de apresentação escrito por Armando Pittigliani, estampado no encarte do seu definitivo disco Samba Esquema Novo (1963), é, a propósito, repleto de questões interessantes. Pittigliani atribui o irresistível sucesso do compositor — sucesso bom, sem apelações comerciais e duvidosas concessões artísticas — ao seu caráter bem “brasileirão” sintonizado com o processo de transformação por que passava a música popular do período. Com a mais elevada simplicidade, Jorge Ben apresentava um esquema novo de samba. Para o produtor musical, Ben propunha um retorno mais acentuado às raízes primitivas da música popular brasileira, mas fazendo uso de insumos mais modernos.

À diferença dos idealizadores da bossa nova, que vão beber na mesma matriz, isto é, o samba, porém por um viés mais cool, desentranhando dele harmonias jazzísticas, Jorge Ben introduz o sentido motown latu sensu — no samba; nessa operação de transculturação com que repõe o samba na ordem do dia da cultura pop do seu tempo, estão implicados elementos da “black music”: o soul, o funk, e, naturalmente, o rhythm and blues. Esses fatores e gêneros combinados fizeram Jorge Ben inventar uma “puxada” de violão nova para o samba; seu violão se converteu, sobretudo, num instrumento de ritmo. Pittigliani refere que em sua “batida” tanto se percebe uma linha de baixo, como o “desenho rítmico” de sua marcação nessa maneira “atravessada” e algo roqueira de tocar. Por este motivo, em diversas faixas desse disco os arranjos dispensam o baixo (a clássica “Chove chuva” e a menos celebrada “É só sambar” são exemplares a este propósito); também por isso, Jorge Ben aparece em quase todos os álbuns executando instrumentos de percussão. E é esse encontro entre a matriz do samba e o balanço ou o suingue motown que faz o produtor musical Armando Pittigliani, na tentativa de apresentar a arte de Jorge Ben, lançar mão de expressões do tipo “a influência ‘negróide’ que transborda de sua música”, “a nostalgia do sangue negro” que suas letras e melodias denunciam, etc. Pittigliani ainda nos convida a ouvir no sambalanço de Ben a síntese de “todo o encanto da poesia pura e simples do brasileiro autêntico, todo o ritmo empolgante de quatro séculos de civilização baseada numa miscigenação de raças onde o negro africano tem seu papel preponderante”, e, além disso, não se esquece de mencionar os ancestrais etíopes de Jorge Ben (em minha mente ouço a faixa “Uala ulala”).

Não obstante o olhar de “kodak excursionista” do produtor, conciliador e paternalista, para o processo civilizatório no Brasil — pois de outro ponto de vista, o gesto inaugural de nossa gostosa mestiçagem, ao fim e ao cabo, provém do estupro escravagista —, seria um falsear do analista não atentar para essa invariante crítico-compositiva presente no trabalho do compositor. Na totalidade de sua discografia são muitos os momentos onde uma tópica negra é afirmada, quer pelo uso de fragmentos etnolinguísticos de origem africana, quer pelas senhas a uma religiosidade fetichista com que aprendemos a identificar a noção de sagrado numa perspectiva afro-brasileira sem culpa. É fundamental reconhecer estes estilemas — e mais adiante vou me deter num destes traços do compositor —, mas sem esquecer que a arte de Jorge Ben não se deixa ler em toda a sua inteireza exclusivamente por este viés. Pois, referir-se à sua música por meio de noções como “pureza e simplicidade”, “autenticidade”, ou falar do “amor singelo” revelado em suas letras, enfim, a superestimação desse recorte (espécie de cogito negróide) tende a nos levar ao inócuo lugar-comum do primitivismo verde-amarelo como bônus. Marca identitária de algibeira.

Mas Jorge Ben não é, a rigor, um músico naïf. Seu particular primitivismo, se assim o quiséssemos definir, cedendo por um momento à convenção, poderia ser relacionado, no âmbito das artes visuais, a Volpi. Alfredo Volpi (de 1896, Lucca, Itália, a 1988, São Paulo), pintor canonizado pelo movimento da poesia concreta das décadas de 1950/60, era um artista formado inicialmente dentro da cultura popular e do artesanato. Volpi, que mais tarde foi aclamado pelas Bienais de São Paulo e Veneza, durante o primeiro quarto do século 20 trabalhou como pintor de frisos, florões e painéis nas paredes das mansões dos endinheirados paulistanos; também foi marceneiro, entalhador e encadernador. O pintor fazia as suas próprias tintas diluídas numa emulsão de verniz e clara de ovo. Jorge Ben, carioca da Tijuca, aprendeu a tocar violão sem professor, na verdade aprendeu apenas com um “método” desses que se adquire em qualquer banca de revistas. Décio Pignatari, em depoimento a respeito do artista, diz que esse Volpi construtivista enfrentava as questões visuais do seu tempo “atendo-se a meios mais artesanais”.1

De outra parte, Volpi ignorava conceitos teóricos como Gestalt, “topologia”, etc., fato que, ainda segundo Pignatari, comprovava, à maravilha, em sua arte, a “teoria da pura visualidade” — um dos princípios do movimento concreto. Seria, portanto, um engano identificá-lo como um primitivo, um ingênuo ou um equivocadamente influenciado “pintor de bandeirinhas”. Para Décio Pignatari, sua formação e cultura visuais, sua acurada organização de formas, fizeram de Volpi “um dos artistas mais conscientes e conseqüentes na evolução formal da própria obra”. Do ponto de vista do poeta concreto, Alfredo Volpi “é um dos raros artistas brasileiros que não só não decaiu depois dos quarenta, mas teve a sábia e justa coragem de dar um belíssimo ‘salto qualitativo’ em plena maturidade”. E, voltando a Jorge Ben, é também uma semelhante característica que o aparta do modus faciendi assumido por alguns dos seus pares tais como, por exemplo, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Jorge Ben pode não estar, hoje, com toda a sua gana, mas ao menos preservou incorruptível, a contragosto do solo, sua dignidade artística. Continua filho da vanguarda da velha-guarda de todos os bons sambas e sambistas. Samba de preto velho. Obá.

De volta, então, às ideias com que comecei este texto. Tendo em mente a “composição de palavras postas em música” de Jorge Ben, isto é, sua atitude excêntrica na maneira de “letrar” a canção, proponho à consideração do leitor o seguinte: Jorge Ben suinga uma forma requintada de sotaque jongueiro. Uma estética de jongo subjaz às letras do compositor. E o que é o jongo? Os pesquisadores no âmbito da antropologia dão conta de que jongo ou caxambu é um ritmo que tem sua origem na região africana do Congo-Angola. O ritmo que também deriva em dança chegou ao Brasil trazido pelos negros escravizados da nação bantu. A festa dos jongueiros, que não é restritamente religiosa, fica completa quando entram em cena os desafios dos pontos de jongo. O ponto ou a cantiga é uma adivinha em versos, cantada ou falada que o adversário precisa “desatar” ou “desamarrar”. Os jongueiros procuram vencer um ao outro através dos pontos de jongo enunciados aos integrantes da roda. Esses objetos melo-verbais são todos enigmáticos e metafóricos, e impõem grandes dificuldades à sua decifração. A linguagem cifrada nos pontos de jongo se estrutura em torno de formulações lingüísticas detonadores da mutação semântica das palavras. Os jongueiros trocam o sentido das palavras criando um novo vocabulário. Os pontos encerram, portanto, um sentido simbólico. Esse procedimento de linguagem deita raízes nas contingências históricas em que se formou a cultura desses povos. Foi a forma encontrada pelos escravos para conversar entre si e burlar a vigilância da capatazia. Por meio dessas senhas musicais, mensagens importantes se refugiavam por detrás do sentido literal de enunciados insuspeitos ou, para o ponto de vista do senhor, no mínimo, sem nenhum sentido: espécie de “samba do crioulo doido” como reza a locução de certa recepção preconceituosa frente àquilo que lhe provoca uma estranheza. Vejamos um ponto de jongo e sua respectiva paráfrase explicativa:

            Água com areia
            Não pode combina
            Água vai imbora
            Arei fica no lugar

A água representa o fazendeiro inexperiente, sem prestígio político, que fracassa em seus negócios; já areia indica o proprietário antigo, poderoso, que domina o lugar.
Os recursos musicais e de linguagem usados por Jorge Ben parecem obedecer a uma lógica sensível que tem semelhanças com o modo de representação do jongo. No disco Dádiva (1983), a música “A loba comeu o canário” contém os seguintes versos:

            A loba comeu o canário
            Comeu com medo, mas comeu
            Pois já tinha até mandado avisar
            Que no dia seguinte bem cedinho
            Escondidinha ia voltar
            Mas bem feito quem mandou mandar
            Um canário assim para a exposição
            Não podendo voar

O compositor de Tábua de esmeraldas se comporta como um jongueiro ao narrar o fracasso da celebrada seleção de 1982 treinada por Telê Santana, mas, derrotada pelo time italiano numa partida eliminatória que garantiria a passagem para a final da Copa. Claro que as referências simbólicas não são tão cerradas se comparadas ao exemplo do ponto de jongo mais acima. Mas o parti pris é fundamentalmente o mesmo. De outra parte, para quem não se interessa pelas coisas do futebol pode ser que esta letra seja de fato incompreensível; um fruidor deste naipe jamais desamarraria o ponto proposto por Jorge Ben. Entretanto, aqui não é bem uma troca de sentidos das palavras que ocorre, e sim um deslizamento ou um deslocamento de referências sobre a superfície de uma determinada trama cultural. Mesmo assim o essencial da tradição do jongueiro preto velho é mantido, pois o próprio vocábulo “loba”, símbolo consagrado da Itália, é deprimido em sua gama de significações porque aparece todo em minúsculas, retardando assim uma decifração imediata e por contigüidade caso fosse grafado com um / l / maiúsculo. Mas a real rasteira de sentido, típica do ponto de jongo, acontece quando Jorge Ben canta: “…quem mandou mandar/ Um canário assim para a exposição/ Não podendo voar…”. Aqui tudo é cifra, enigma, nó para ser desatado: canário para Seleção Canarinho; exposição para Copa do Mundo; e não podendo voar em alusão às críticas feitas às deficiências do time de Telê. O grande Zico, selecionado e selecionável, à época, voltava de grave lesão e não estava em sua melhor forma física e técnica. A primeira estrofe do samba — cujo bis é imprescindível — é maravilhosa por sua perspicácia psicológica, ouçamo-la: “A loba comeu o canário/ Comeu com medo, mas comeu”. Notável a malícia e a síntese com que Jorge Ben desvela o sentimento dúplice da equipe italiana, pois ela alcançou tal façanha quase não acreditando que pudesse ser capaz de fazê-lo. Como se não tivesse direito para tanto.

Em 1984, Ben lança o álbum Sonsual (notar a palavra-valise do título, portmanteau, recurso expressivo caro a Lewis Carroll, e levado ao extremo por James Joyce em seu antirromance Finnegans Wake). Vinte e um anos depois de ter feito Samba Esquema Novo o compositor ainda estava ligado e inventivo. Na época eu tinha 23 anos, já fazia música e sempre estava atento às novidades dos compositores que de fato interessavam, e até onde consigo enxergar, me parece que este baita disco passou em branco. Em Sonsual, Jorge Ben continua fazendo a coisa certa e sem deixar de acrescentar lances neográficos ao repertório do cancioneiro da música popular. Seu samba novo que se misturava com o maracatu, incorpora agora o axé do afoxé. Na faixa 2, “A rainha foi embora”, para não perder a apetência pelo enunciado que diz uma coisa em termos de outra, Ben mantém o jongo em pé, um Sísifo sem angústia, sem náusea: “Rola, pedra, rola, pedra/ Que esta chuva é garoa/ quanto mais eu rolo pedra/ mais a coisa fica boa”.


 “Irene, cara mia” é um afoxé, mesmo. Nesta música, Jorge Ben faz o seu bom e velho excurso de cunho metalingüístico e filosofal, vou transcrever alguns excertos, vale a pena:

            (…)
            Irene, cara, cara mia
            Flash Dance ouvi você cantar
            Maravilhado fiquei e não resisti
            E no cinema eu dancei, dancei
            (…)
            Fiz uma canção pra você dançar também
            Ai, ai, ai, ai, ai, ai
            Uma canção que fala de amor e de alegria
            Das coisas simples e belas da vida
            Das coisas que podem correr por aí
            Alegrando as pessoas
            E fazendo um bem espiritual

            Minha música suburbana urbana
            Com raízes africanas e oriental
            Com ligeiro toque universal
            É para você esse som penkelê, penkelê, penkelê

Sonsual vai a contrapelo da temporada de demanda pelo rock-mercadoria — adultescente ad nauseum — experimentada na década de 1980. No entanto, Jorge Ben, de posse do seu “ligeiro toque universal”, não dá as costas ao negro rock’n roll. A balada “My little brother”, com uma “batida” de violão Ovation em diálogo com rarefeitos riffs de guitarra na linha do blues, tem um acento que nos remete a Bob Dylan, eis alguns versos: “Everyday in the morning/ I am very happy/ Because I see and listen to my little brother/ Singing and playing his tambourine for me”. Um detalhe importante a ser frisado é que Jorge Ben é um mestre no uso de acordes e tons menores. Este recurso representa sempre uma surpresa, uma informação nova, já que o compositor por meio desses breves desvios de rota (geradores de tensão) impõe uma bela suspensão aos seus recorrentes temas da alegria, da simpatia e do deleite.

Tudo aquilo que poderíamos definir como o-modo-jorge-ben-de-compor atravessa do princípio ao fim as composições de Sonsual. No samba-enredo “Bizantina, Bizância”, Jorge Ben exercita a sua composição de palavras, aqui “alheias”, postas em música, sua expropriação sem afetação da enciclopédia do mundo. A pretexto de cantar “Bizantina, a mulher bonita de Stambul”, metáfora da mulher idealizada, o compositor narra o périplo dos enamorados mercadores em perseguição à musa através de terras, continentes e cidades cujas mitologias são abonadas pelo turismo de catálogo, diz assim o samba:

            Eles vieram de Kandahar, Pérsia, Kathmandu
            Atenas, Osaka, Pequim, Caxemira, Samarcanda, Jakarta
            Alexandria, Bagdá, Jerusalém, Kilimanjaro
            Daomé, Addis Ababa, San Marino, Anglia, Tolouse, Praga
            Baden-baden, Antuérpia, Casablanca, Guanajuato
            Machu Picchu, Memphis, e Málaga… aaa
            E até de um novo continente chamado Brasilis
            Só pra te ver, oh, mulher, só pra te ver… eee

Outra singularidade do músico que se verifica neste disco, são suas troças prosódicas. No início muitos entendiam como um problema de dicção. É conhecida a controvérsia de sua pronúncia do pronome você que soa “voxê” na classuda “Por causa de você, menina”. Na apresentação ao álbum Samba Esquema Novo, o produtor musical solve a dúvida: o “voxê” tatibitate usado pelo cantor era apenas a sua homenagem a uma menina de três anos que começava a dominar a fala e sempre lhe pedia “aquela música, voxê canta?”. No entanto, não é difícil captar um eco ainda que esbatido desse voxê prístino e transgressivo a cada vez que Jorge Ben canta malandramente o pronome em muitas músicas de sua extensa discografia. Em “Bizantina, Bizância”, já referida linhas acima, pode-se ouvir uns estranhamentos desta ordem. Por exemplo, no estribilho: “Diga, diga, diga, Dime/ Diga, diga, diga, diga”, Ben faz o fonema / d / da primeira sílaba do imperativo “diga” soar de um modo duro e linguodental, ao contrário da naturalidade da prosódia coloquial onde soaria mais ou menos como um “djiga”. E, mais adiante, quando Jorge Ben fala dos vários pretendentes à bela de Stambul, no verso “O mais rude, o mais simples, o mais sábio”, o / r / da primeira sílaba do adjetivo “rude” soa de modo velar, como em “arame”.

Temos aqui outro lance da inventividade desse artista: o canto de Jorge Ben se distancia tanto do vozeirão, melhor dizendo, da interpretação à maneira de Ângela Maria ou de Nelson Gonçalves, como da escola e da escala da contenção vocal bossanovista, a João Gilberto, entre cerebral e intimista.  Mas não se pode afirmar de plano que Ben avança através de um canto naturalista, não; ele inventa a sua arte de intérprete abandonando sempre o mais recente posto conquistado. Nem dramático nem construtivista.

Esgarçadas alusões a uma retórica circense como contraponto a um latinório ouvido na infância. Jorge Ben tem a medida intransferível de um modo de cantar que não abole o acaso nem o erro. Seu canto e sua música se projetam sobre uma ludicidade harmônico-discursiva menos nonsense do que jongueira. Sua alegria contagiante, o poder de sua simpatia está em ser um compositor que tematiza — sem dor e sem o menor detrimento de sua competência como inventor  — a possibilidade de fazer música para aprender a fazer música. Suspendo então o fluxo da minha interpretação devota com “Peçam bis”2, esta jóia de lirismo (em sentido forte) e humor machadiano do sambista Ismael Silva, que desonera o culto ao gênio na relação artista-público. Esta é a imagem de minha predileção do Jorge Ben de que me ocupei até aqui.

            A todos que estão me ouvindo
            Eu agradeço
            Esta atenção dispensada
            É mais do que mereço
            Se não gostarem
            Não digam nada a ninguém
            Senão os outros
            Não vão me aturar também
            Não vão fazer
            O que aconteceu certo dia
            Foi tanto bis
            Que eu já não podia atender
            No entretanto
            O que a platéia queria
            É que eu cantasse
            Cantasse até aprender.

  • 1. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960; Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, São Paulo: Ateliê Editorial, 2006, p. 92.
  • 2. Cada tridente em seu lugar e outras crônicas; Cidinha da Silva, São Paulo: Instituto Kuanza, 2006.

por Ronald Augusto
Palcos | 14 Fevereiro 2011 | composição, Jorge Ben, mpb, música brasileira, poesia