A globalização do hip-hop: homogeneização e diferenciação cultural

No Thief to Blame (Shinique Smith, 2007-08) - Pintura pertencente à exposição RECOGNIZE!No Thief to Blame (Shinique Smith, 2007-08) - Pintura pertencente à exposição RECOGNIZE!

Pode ouvir-se uma música ecoar de forma ubíqua em vários pontos do planeta, consumir-se alimentos idênticos (distribuídos de um modo similar e em espaços decalcados uns dos outros), ver-se exactamente os mesmos filmes, assistir-se diariamente aos mesmos programas de televisão, acompanhar-se as mesmas notícias, entre muitos outros exemplos que poderíamos aqui evocar, mas tudo isto não significa, ao contrário daquilo que crêem as perspectivas mais pessimistas sobre o impacto da globalização, que se tenha anulado a diversidade cultural e que se viva hoje num mundo necessariamente homogéneo. Do mesmo modo, tal não significa, inversamente, como acreditam os mais optimistas, que nada se tenha uniformizado, tornado semelhante, ignorando o facto de se ter produzido um imaginário comum e tendencialmente indiferenciado, alicerçado na possibilidade de disseminação planetária de objectos e símbolos variados.

Todavia, a globalização cultural apresenta-se como um processo mais complexo do que a anterior dicotomização sugere, em virtude do qual podemos constatar que as pressões hegemónicas, no sentido de algum tipo de homogeneização, andam a par da afirmação de múltiplos particularismos e, por isso, de uma inevitável diversidade cultural. A universalização do que é específico levou à generalização do «exótico», tal como o enraizamento deste em determinados lugares tem conduzido, paradoxalmente, à reivindicação de um estatuto «autóctone» para determinados artefactos e práticas.

Snoop Dogg (Borbay 2011)Snoop Dogg (Borbay 2011)

O espaço urbano inspira, absorve e corporiza todas estas ambivalências e tensões no seu interior, que contribuem para redefinir os seus limites mas também as suas funções. Parece-nos, portanto, difícil concebê-lo fechado sobre si mesmo, enclausurado e preso integralmente ao lugar. Porém, é também impossível afirmar que estamos perante um espaço urbano completamente novo, despojado inteiramente do lugar. Os lugares físicos, e os contextos socioespaciais que os enformam, são determinantes para compreendermos os fenómenos e práticas sociais e deverão impedir-nos de substituir os primeiros por contextos abstractos de interacção.

A chamada cultura hip-hop constitui um bom exemplo para situarmos brevemente o alcance de algumas das afirmações feitas anteriormente. Por um lado, permite-nos ilustrar como um conjunto de práticas específicas que se globalizaram, tornando-se aparentemente homogéneas, ultrapassam a mera generalização a que pareciam sentenciadas, localizando-se em diferentes contextos que introduzem cambiantes significativos aos seus atributos de partida. Por outro lado, concede-nos a oportunidade de discutir como podem emergir e coabitar, dentro do que parece ser um contexto indiferenciado, formas de produção artística distintas e circuitos culturais sucedâneos uns dos outros. Esta diversidade não subsiste, no entanto, sem gerar tensões em torno da legitimidade das diferentes práticas e dos produtos gerados, bem como dos contextos socioespaciais onde decorre a sua produção e apropriação.

Dizem-nos vários relatos coligidos ao longo do tempo que aquilo a que se tem convencionado chamar movimento hip-hop (em grande medida em virtude da autoproclamação dos seus protagonistas) teve a sua origem no bairro do Bronx, na cidade de Nova Iorque, durante os anos 70 do século XX. Basicamente, e de forma simplificada, podemos dizer que o hip-hop se distingue por ser uma «cultura de rua», ligada à juventude urbana, caracterizando-se por um conjunto de manifestações expressivas visuais (graffiti), sonoras (djing emcing1) e gestuais (breakdance) que tomam o espaço urbano como cenário primordial. Entre estas várias vertentes expressivas existiria uma interligação não só funcional como simbólica, consubstanciada num conjunto de princípios e valores supostamente partilhados pelos primeiros praticantes (e que serviriam, de forma directa ou indirecta, de inspiração aos actuais).

Eminem (Borbay 2011)Eminem (Borbay 2011)

Contudo, o que começou por ser um fenómeno circunscrito à juventude urbana (sobretudo de origem afro-americana) excluída de uma série de recursos económicos e culturais, depressa se estendeu a jovens de outras proveniências sociais e contextos geográficos. Para este facto terá sido fundamental a descoberta do potencial de mercado de alguns dos seus produtos, particularmente da música rap, e a consequente possibilidade de os aproveitar comercialmente. A comercialização encarregou-se de globalizar o hip-hop e, por esta via, podemos hoje encontrá-lo, sob diversas manifestações, um pouco por todo o mundo. Assim, quando falamos de hip-hop, referimo-nos a práticas diversas, que embora alimentem um imaginário comum, reconhecível e potencialmente partilhado, cobrem uma multiplicidade de fenómenos e contextos, onde se cruzam e afirmam práticas e vivências distintas, dando por isso origem a múltiplas definições (algumas mesmo discrepantes) acerca da sua própria autenticidade.

O hip-hop surge em Portugal, nas suas várias expressões2, como um desses contextos de implantação. O que gerou, por um lado, a adaptação específica dos recursos disponíveis a nível global, e por outro lado, e ao mesmo tempo, a reprodução das características presentes nas manifestações que serviram de modelo ou inspiração aos primeiros protagonistas.

Nesta perspectiva, se, por um lado, os produtos, as práticas e os símbolos de «contestação» juvenil se tornam objectos de consumo, sofrendo a «domesticação» que advém da sua própria incorporação no mercado, por outro lado, e inversamente, é possível considerar que algum tipo de «resistência» pode surgir do próprio consumo, subvertendo os significados e propósitos supostamente inscritos nos produtos comercializados. E que de resto, considerando o problema de forma circular, estiveram na origem de muitas das práticas mais tarde incorporadas nos canais alargados de distribuição e consumo.Hip Hop Haven ExhibitionHip Hop Haven Exhibition

Assim se percebe que também a criação artística no interior do universo composto pelo hip-hop seja mais complexa do que se poderia pensar à primeira vista. Isto explicaria por que razão a comercialização tende a ser encarada de forma dúplice por artistas que pretendem preservar a sua autonomia. Se, por um lado, esta materializa a possibilidade de obtenção de dividendos económicos, concretizando (mesmo que de forma modesta) as aspirações de profissionalização de alguns artistas, por outro lado, representa a perda de controlo sobre os produtos criados (pondo eventualmente em causa a sua própria integridade artística). Criar circuitos alternativos e próprios, independentes das estruturas preexistentes, sem abandonar completamente o intuito de comercialização (mesmo que restrito e visivelmente orientado para a auto-subsistência), parece ser este o caminho seguido, por exemplo, por algumas pequenas editoras de rap nacional, criadas pelos próprios artistas de modo a assegurar estruturas de edição, meios de divulgação e promoção independentes3.

Sendo o hip-hop, como dissemos, constituído por um conjunto de práticas que, desde as suas origens e na maior parte das suas expressões actuais, se encontram ligadas directamente à «rua», ao exterior, ao espaço público, a territórios específicos no interior dos quais se movimentam variados grupos de praticantes e adeptos, os circuitos que as mesmas definem são de importância crucial para compreender o modo como (se) organizam (n)o espaço urbano.

Esta inscrição no espaço urbano não assume naturalmente os mesmos contornos em todas as vertentes do hip-hop, quer porque correspondem a formas de expressão distintas e relativamente autónomas (mesmo que se possam combinar de diferentes modos), quer porque cada uma pode assumir diferentes feições e, como tal, integrar circuitos com conotações diferenciadas (uns «formais», apresentando um carácter oficial, estabelecido ou comercial, outros «informais», apresentando um carácter alternativo, não comercial ou mesmo ilegal). A apropriação do espaço não se limita à inscrição física de marcas iconográficas (como aconteceria com o graffiti e outras manifestações visuais similares), nem aos locais públicos onde decorrem determinadas actuações (como aconteceria com o breakdance ou com os improvisos realizados pelos MC na rua), mas também através da representação simbólica que do mesmo é feita através dos diversos produtos gerados (veja-se o caso das rimas criadas por rappers com o intuito de exaltar a sua origem socioespacial e que dão conta da sua experiência biográfica singular).

 

A Internet e a (re)construção do hip-hop

O caso da Internet merece ser aqui destacado por várias razões. Não só porque contribuiu para uma alteração da relação com o espaço, permitindo desvincular os processos e relações sociais dos seus contextos imediatos, como também porque se encontra na base de uma transformação no modo como se constituem (e se tem acesso) (a)os circuitos culturais que se formam tanto fora como dentro deste meio.

Com efeito, a Internet vem subverter não só a relação com o lugar, na medida em que o descontextualiza, como as fronteiras que separam a produção do consumo, os artistas dos adeptos, contribuindo também, neste último caso, e de alguma forma, para a indistinção entre amadores e profissionais (esta indistinção advém tanto da partilha de um mesmo meio de divulgação, como da possível concomitância numa mesma modalidade de comunicação). De facto, tomando como exemplo a produção musical, a Internet tanto se apresenta como um meio de divulgação para as grandes editoras e as multinacionais da indústria discográfica (que promovem os seus artistas e catálogos), reforçando assim os seus circuitos comerciais, como cria circuitos próprios e alternativos, que não só funcionam como espaços de consumo e partilha para vários adeptos e artistas com interesses afins, como sítios onde se criam ou se dão a conhecer determinados produtos ou obras próprias (numa versão tanto preliminar como acabada), o que se torna particularmente significativo no caso de artistas amadores ou de principiantes.

AREK (Tim Conlon and Dave Hupp, 2007) - Graffiti pertencente à exposição RECOGNIZE!AREK (Tim Conlon and Dave Hupp, 2007) - Graffiti pertencente à exposição RECOGNIZE!

O espaço urbano, apropriado física e simbolicamente, é assim transposto para a Internet, que simultaneamente o descontextualiza e preserva, dando-lhe um alcance mais amplo mas, ao mesmo tempo, podendo manter diversas alusões ao lugar. É o que se pode ver através das diversas páginas, blogs e fotologs de writers e crews de graffiti, ou através dos sítios Internet de várias bandas de rap, MC e DJ, que não só revelam a sua origem geográfica como reivindicam a importância simbólica da mesma online. As músicas dos rappers referem-se aos seus lugares de origem, tal como os writers apropriam e reclamam determinado espaço que é exposto online. Pegando neste último caso, podemos ver como os graffiti que encontramos em várias cidades contemporâneas, são transferidos para as redes «virtuais», onde são exibidos, vistos, comentados, partilhados. O circuito pode ser restrito, até mesmo atomizado (individualizado), mas o tipo de experiência que proporciona não deixa de ser sintomático da capacidade do urbano para se transfigurar, ainda que para isso se desaposse, mesmo que temporariamente, do lugar. De certo modo, um lugar específico não só se generaliza online como se perpetua, através do seu armazenamento nas redes digitais. O urbano digitalizado apresenta-se assim, paradoxalmente, ubíquo e perene, acessível de diversos pontos e, ao mesmo tempo, acautela-se das transformações (pelo menos momentaneamente) do próprio espaço.

Resumindo, a Internet apresenta-se como um meio simultaneamente independente e interdependente do «real», autonomizando-se e reportando-se a este. Podemos dizer, neste sentido, que várias das actividades que se desenrolam no espaço urbano podem ser transferidas para o «virtual», prolongando-se neste, do mesmo modo que podem retornar (constantemente) aos territórios que tomam como referência. Disso mesmo nos podem dar conta as redes «virtuais» actualmente existentes, que proporcionam uma experiência diferenciada do espaço, embora não inteiramente dissociada dos lugares. A Internet cria circuitos próprios e alternativos, mas estes também se encaminham, em muitos casos, para a «realidade», para os lugares veiculados pelos produtos gerados tanto fora como dentro da Internet (ou com recurso a esta). Este urbano «virtual», poderíamos chamar-lhe assim, é composto por um espaço desterritorializado, porém onde os vários lugares, e as práticas que nos mesmos ocorrem, são (re)criados.

N.E.R.D, Pharrell Williams (David Scheinbaum, 2002) - Fotografia pertencente à exposição RECOGNIZE!N.E.R.D, Pharrell Williams (David Scheinbaum, 2002) - Fotografia pertencente à exposição RECOGNIZE!

Artigo originalmente publicado em Le Monde Diplomatique - edição portuguesa, nº 6, II série, Abril de 2007.

  • 1. Constituem duas componentes interdependentes da música rap: djing, actividade realizada pelo DJ (Disk Jockey), ou quem manipula os discos e produz a sonoridade típica do rap, e mcing, actividade a cargo do MC, Mestre-de-Cerimónias, rapper ou cantor rap.
  • 2. As primeiras expressões da «cultura hip-hop» emergem em Portugal no início dos anos 80, sobretudo com o breakdance, claramente influenciadas pelo cinema e pela televisão, só mais tarde se afirmam o rape o graffiti. O primeiro grande momento de visibilidade pública do hip-hop nacional surge em meados dos anos 90, com o aparecimento das edições de música rap (principalmente com a gravação da colectânea Rapública, em 1994, pela Sony Music) e a exposição mediática que acompanhou o fenómeno.
  • 3. Vejam-se, por exemplo, os casos das editoras independentes Loop Recordings, Matarroa ou Horizontal.

por José Alberto Simões
Palcos | 28 Dezembro 2011 | cultura, diversidade cultural, globalização, Hip-Hop, música