Transpor as fronteiras da música: I hate world music

Detesto a world music. Essa é provavelmente uma das perversas razões por que me pediram para escrever sobre o tema. Trata‐se de um chavão amplo que se refere à música não ocidental de todo e qualquer género, desde a música popular à música tradicional e até à música clássica. É uma categoria pseudomusical e de marketing e um nome que designa uma prateleira na loja de discos onde se encaixa tudo o que não cabe em qualquer outro ponto da loja.

O que há nessa prateleira vai desde a música mais ostensivamente comercial produzida num país, como bandas sonoras de filmes indianos (a cantora Asha Bhosle é o seu exemplo mais conhecido), até à art pop ultrassofisticada e supercosmopolita do Brasil (Caetano Veloso, Tom Zé, Carlinhos Brown); desde o conceito algo bizarro e surreal de um antigo coro folclórico estatal búlgaro regido por compositores da era soviética com formação clássica (Le Mystère des Voix Bulgares) até às canções norteño do Texas e do Norte do México que glorificam as façanhas dos traficantes de droga (Los Tigres del Norte).

Os álbuns de Selena, Ricky Martin e Los Del Rio (os reis da macarena), artistas que vendem milhões de discos só nos Estados Unidos, são arrumados ao lado de gravações de tribos das montanhas da Tailândia. Mistura‐se alhos com bugalhos, na verdade. Portanto, de um ponto de vista puramente democrático, em que toda a música é igual, independentemente do que vende e da elegância da produção, trata‐se de uma utopia musical.

Sendo assim, de que me queixo?

Na minha experiência, a utilização da categoria world music é uma forma de considerar os artistas, ou a sua música, irrelevantes para a vida de cada um de nós. É uma forma de relegar esta «coisa» para o reino do exótico e, portanto, giro, esquisito mas seguro, uma vez que o exótico é belo mas irrelevante; eles não são, por definição, como nós. É talvez por isso que detesto a designação. A world music agrupa como «eles» tudo e mais alguma coisa que não seja «nós». Este arranjo é uma forma conveniente de não ver uma banda ou um artista como uma individualidade criativa, ainda que de uma cultura algo diferente do que se vê na televisão norte‐americana. É um rótulo para qualquer coisa que não seja cantada em inglês e que não encaixe, num determinado ano, no universo pop anglo‐ocidental. (Ao Ricky Martin, portanto, é permitido que saia do gueto da world music – por pouco tempo, em todo o caso. No próximo ano, logo se vê. Se fizer um disco de plena, talvez tenha de regressar às prateleiras de salsa e às pequenas lojas de discos.)

É uma forma não muito subtil de reafirmar a hegemonia da cultura pop ocidental. Guetiza a maioria da música mundial. Uma jogada corajosa e audaz, homem branco! Faz‐se muita música espantosa um pouco por todo o mundo. Com efeito, há mais música, em termos meramente quantitativos, habitualmente definida como world music do que de qualquer outro género.

Não me refiro apenas a géneros musicais, mas também ao volume de gravações. Quando falamos de world music estamos a falar de 99 por cento da música do planeta. Seria estranho imaginar, como parecem fazer muitas empresas multinacionais, que a pop ocidental detém os direitos de autoria sobre a criatividade musical. Não, a verdade é que a pop ocidental é o fast food da música e que há mais produção musical criativa e excitante a acontecer no seu exterior do que dentro das suas fronteiras. Há tanto som incrível a acontecer que nunca conseguiremos esgotá‐lo. Há, por exemplo, bandas de guitarras em África que podem ser, se as deixarem, tão inspiradoras e entusiasmantes como qualquer género de rock, pop, soulfunk ou disco com que tenhamos crescido. E o que para mim é excitante é que elas desmontaram elementos da música global (ocidental?), examinaram as peças para perceberem quais seriam úteis e, de seguida, reinventaram e reagruparam as partes para os seus próprios fins, criando, por conseguinte, algo inteiramente novo. (Femi Kuti deu há dias um grande espectáculo que era em parte Coltrane, em parte James Brown e em tudo africano, tal como o seu pai, Fela Kuti, o grande mentor musical nigeriano.)

A malta branca teve de ver o Leadbelly atrás das grades para sentir que conseguia captar verdadeiramente o espírito. Precisa de ter a certeza que os rappers estão a ser «autênticos», precisa que os seus músicos cubanos sejam velhos e ternurentos, que os seus artistas orientais e asiáticos sejam «espirituais». Os mitos e os clichés dos traços nacionais e culturais florescem no marketing musical. Há o mito do não instruído, do sábio inocente cuja poesia contém raras pérolas de sabedoria Zen – o mito de que a música «tradicional» exótica é mais honesta, tem mais alma e está mais em contacto directo com os sentimentos reais e verdadeiros do povo do que os putos que vestem jeans ou o último grito da moda desportiva na televisão mexicana. Há uma necessidade perversa de ver os artistas estrangeiros com a sua indumentária nativa, e não com as t‐shirts e a roupa casual que vestem fora do palco. Não queremos que se pareçam muito connosco, uma vez que, se assim for, passamos a assumir que a sua música é premeditada, mercantil, impura. Deus nos livre, pelo menos, que eles ganhem a mesma consciência do mundo que nós temos. Toda ela poderia ser verdadeiras mas, mais importante, a sua maior consciência poderia também ser relevante para a sua música, o que poderia, por sua vez, ligá‐la às nossas vidas e circunstâncias. Deus nos livre!

La nueva generación

Nos últimos anos, têm sido publicados inúmeros artigos em jornais e revistas acerca da forma como a música latina, em particular, se tornaria finalmente bastante mais popular nos Estados Unidos. Metade – sim, metade – do actual top 10 de singles no Reino Unido, esse país quente e tórrido, está de alguma forma preenchido com música latina. Isto se considerarmos latino o «Mi Chico Latino», de Geri Halliwell – e porque não?

Os outros são versões suavizadas de hits de Perez Prado dos anos 1950 e 1960. O disco do Buena Vista Social Club é o mais vendido, em todas as categorias, na Alemanha funky. Os Les Nubians, um grupo franco‐africano, tocam nas rádios urbanas (leia‐se «negras») da América. Então, isto é ou não uma tendência? Será que são mais do que novas canções de Verão para os anglos? Vamos mesmo aprender a dançar ou estaremos perante uma aberração?

E o que dizer das bandas de latino alternativo que cada vez mais fazem digressões pelos Estados Unidos e pela Europa? A banda colombiana Bloque (que, confesso, está na minha editora) foi considerada a melhor banda do ano por um crítico de Chicago; os Los Fabulosos Cadillacs receberam um Grammy no ano passado. Ambas as bandas, e muitas, muitas outras, misturam os grooves da sua zona com os sons e atitudes das canções norte‐americanas com as quais também cresceram. São uma geração com uma dupla herança, e a sua música expressa‐o.

É duro, para estes grupos, furar o mercado americano: nem sempre são fofinhos, seguros ou exóticos. A sua música é muitas vezes mais inovadora do que a dos seus homólogos, o que intimida. E, por mais porreiros que sejam, insistem em cantar na sua língua, para uma audiência que se identifica completamente com eles, o que torna por isso mais difícil ganhar espaço nos Estados Unidos. Essas bandas são o equivalente musical de uma geração de escritores latino‐americanos, como Gabriel García Márquez, Isabel Allende, Jorge Amado ou Mario Vargas Llosa, que foi designada como o boom. Esses músicos estão a definir a sua geração, a encontrar uma voz singular, e influenciarão muitos outros fora dos seus países de origem. É aqui, acredito, que a mudança acontecerá. Apesar de não venderem ainda muitos discos, esses e outros (estão a ocorrer fenómenos análogos um pouco por todo o lado, em África, em Marrocos, na Turquia) lançarão as sementes e, enquanto me divirto a ouvir o merengue de Ricky Martin, eles mudarão a minha vida.

 

The New York Times, 3 de Outubro de 1999

 

debate a partir deste texto no Festival de Músicas do Mundo de Sines, promovido pela Unipop 

Translation:  Fernando Ramalho - Unipop

por David Byrne
Mukanda | 20 Julho 2012 | catalogação, indústria musical, música popular, ocidente, world music