Pedra, algodão ou petróleo

           — Veja aqui, veja! Era o que estávamos a dizer.

          Dedos ávidos a abrir à força a boca do saco, a incliná-lo para mim, a arrancar às mãos-cheias o algodão avermelhado, sujo de terra. O saco vomita uma pedra, depois outra. Um tijolo de adobe. Há risadas. O chefe de brigada manda procurar os outros sacos que têm o mesmo nome escrito por fora. Já tinham sido pesados e postos na camioneta.

            — São três sacos. Este e mais dois. Faltam dois.

            O carregador não demora a encontrá-los. Arrasta um saco até à borda da caixa, segura-o ali como se agarrasse pelos ombros um prisioneiro de mãos atadas atrás das costas, dá-lhe um empurrão e recua um passo. O saco vacila, cai com um estampido. O outro carregador começa logo a esvaziá-lo, atira o algodão para o chão aos punhados. Também este saco contém um âmago de terra castanha e pedras, dir-se-ia um mundo em miniatura, um núcleo de matéria mineral rodeado por uma faixa delgada de matéria orgânica, tudo cingido e aprisionado por um artefacto humano, o saco de juta. O carregador estende na mão aberta as provas do delito, pergunta-me: «Quer fotografar?» Toda a gente nos rodeia, grita-se «Eeeh!» a cada nova pedra que vem à tona. Fotografo, todos olham para mim. Na periferia do meu campo visual, o terceiro carregador debruça-se sobre o terceiro saco assim que este tomba e crava-lhe no ventre, como quem apunhala um inimigo caído, um ferro aguçado, que depois examina, dir-se-ia em busca de sangue.

            Pergunto como é que descobriram, o chefe da brigada diz-me:

            — Nós temos uma técnica. Quando os sacos saem da balança e são atirados para o chão, se tiverem areia e pedras não saltitam. Há quem molhe o algodão. O saco fica seco por fora ao fim de dois ou três dias, mas muito mais pesado. Se o algodão estiver molhado, não saltitam. (Ele diz «salpicam» e eu anoto.) É assim que descobrimos. (Ele está a dizer-me que a verdade é leve, etérea, ao passo que a mentira é pesada. Será isso?) Foi uma boa observação, não acha?

            Uma mulher e um rapaz perfilam-se diante dos destroços como alunos cábulas, apanhados a copiar. O chefe de brigada gesticula, repreende-os.

            O rapaz aproximou-se de mim sem que eu o ouvisse chegar, os pés descalços são leves na terra nua.

            — Estou a pedir, fala com eles, para escolher.

            Quer que eu interceda por ele, quer separar sem demora a terra e as pedras do algodão, apartar o mineral do orgânico, purificar-se, lavar o pecado da contaminação. Quer vender a sua produção anual hoje mesmo, transformá-la em dinheiro, três mil meticais, talvez (são quarenta euros). Digo-lhe que sou amigo do director da fábrica, que só vim tirar fotografias. Que não me posso meter no trabalho da brigada, senão o director zanga-se comigo. Vim ver como é a vida dos pobres. Esta parte não digo. Vim ver de onde vem o algodão das minhas peúgas. Também não digo isto. Vim à procura de uma verdade qualquer.

            — Eu estou a pedir.

            Repiso os meus argumentos, a minha recusa. Não posso ser juiz, sou um branco no Niassa, não me cabe perdoar, interceder. Estou fora desta verdade e desta mentira, não sei orientar-me aqui. Ele desiste, volta para ao pé da mulher. Não tocam nos sacos caídos, esperam, de mãos cruzadas diante do ventre, cabeça baixa.

            Começa a chover. As primeiras gotas levantam uma nuvem de poeira vermelha do chão, depois vem a bátega e a lama. As pessoas abrigam-se sob a copa da árvore, entram uma a uma no casinhoto onde se fazem as contas, saem com as notas dobradas na mão. O rapaz e a mulher agacham-se, começam a apanhar do chão encharcado os novelos dispersos de algodão sujo, metem-nos de novo nos sacos. O rapaz parte com um saco na traseira da bicicleta, a mulher vai a pé pela estrada fora. As pedras e os tijolos ficam onde caíram.

            — Quem estava aqui era uma mãe e o filho. Ela disse que foi o marido que fez aquilo, não foi ela. Mas já fechámos o documento, não se pode pesar mais algodão. Já estamos a pagar.

            Pergunto porque é que toda a gente se riu.

            — Sabem que amanhã vão ser eles a fazer o mesmo. Muita miséria, muitas dificuldades.

Muaua | 2017 | Paulo Faria (cortesia do autor)Muaua | 2017 | Paulo Faria (cortesia do autor)

            Os sacos de algodão apertados na camioneta, numa alta muralha, escorrem água em fio. A carga já não pesa somente oito toneladas, pesa bem mais, mas as contas estão feitas, agora pouco importa. Na minha camisola, nas minhas peúgas, as fibras de algodão entrelaçam-se em fios de petróleo. Se a verdade é leve e a mentira pesa chumbo, o camião, a bambolear-se a dez à hora pela estrada ensopada, traz agora no dorso uma grande carga de mentira. Mas talvez seja ao contrário, a mentira leve e a verdade pesada. Nas oito horas que passei na aldeia, o preço do barril de petróleo desceu um dólar.
 
Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias,financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Eu

por Paulo Faria
Mukanda | 24 Novembro 2018 | algodão, petróleo