A situação colonial: uma abordagem teórica

1Um dos acontecimentos mais marcantes da história recente da humanidade é a expansão da maior parte povos europeus pelo mundo. Trata-se de uma expansão que conduziu à submissão – quando não ao desaparecimento – da quase totalidade dos povos ditos atrasados, arcaicos ou primitivos. A acção colonial, ao longo do século XIX, foi o aspecto mais importante da expansão europeia e aquele que teve maiores consequências. Abalou brutalmente a história dos povos que submeteu; ao estabelecer-se, impôs a esses povos uma situação muito particular. Este facto não pode ser ignorado. Não só condiciona as reacções dos povos ‘dependentes’, mas também explica certas reacções dos povos recentemente emancipados. A situação colonial coloca problemas ao povo submetido que reage a estes problemas de acordo com a margem de ‘jogo’ que lhe é concedida, à administração que representa a nação, por assim dizer, tutelar (defendendo os interesses locais desta última) e ao Estado recém-criado sobre o qual pesa todo um passivo colonial. Esta situação actual ou em processo de liquidação acarreta problemas específicos que devem suscitar a atenção do sociólogo. O pós-guerra salientou a urgência e a importância do problema colonial na sua totalidade. Caracteriza-se por morosas tentativas de reconquista, por emancipações e concessões mais ou menos condicionais e anuncia uma fase técnica da colonização que se segue à fase político-administrativa.

Há alguns anos apenas, uma estimativa grosseira, embora significativa, lembrava que os territórios coloniais cobriam então um terço da superfície do globo e que setecentos milhões de indivíduos, dos dois biliões que perfaziam a sua população total, constituíam povos subjugados2. Até muito recentemente, a maior parte dessas populações não pertencentes à raça branca, à excepção da China e do Japão, só conheciam um estatuto de dependência controlado por uma das nações europeias coloniais. Todos estes povos dominados, distribuídos pela Ásia, África e Oceânia, relevam de culturas ditas ‘atrasadas’, ou ‘não-mecanizadas’; são eles que compõem o campo de pesquisa no interior do qual operaram – e operam – os antropólogos ou etnólogos. E o conhecimento de carácter científico que temos dos povos colonizados deve-se, em grande medida, aos estudos por eles realizados. Tais trabalhos não podiam (ou não deviam), em princípio, ignorar um factor tão importante como a colonização que, desde há um século ou mais, impõe um determinado tipo de evolução às populações subjugadas. Parecia impossível não ter em conta as condições concretas em que a história recente desses povos se desenrolou. No entanto, a atenção concedida pelos diversos antropólogos a este contexto preciso, que envolve a situação colonial, foi muito desigual; tivemos ocasião de o afirmar num trabalho actualmente em curso. De um lado, existem os investigadores obcecados com a busca da pureza etnológica, do facto inalterado e miraculosamente conservado na sua primitividade ou ainda aqueles que, exclusivamente ávidos de especulação teórica, reflectem sobre o destino das civilizações ou sobre a origem das sociedades; de outro, existem os investigadores envolvidos numa multiplicidade de investigações práticas, de âmbito restrito, contentando-se com um empirismo cómodo que não ultrapassa o nível de uma técnica. A distância entre estas duas posições extremas é grande – conduz-nos dos confins da antropologia dita ‘cultural’ aos da antropologia dita ‘aplicada’. De um lado, a situação colonial é rejeitada por ser perturbadora ou por não ser encarada como uma das causas das transformações culturais; do outro, é considerada apenas em alguns dos seus aspectos – os que se relacionam de forma evidente com o problema abordado – e que não se manifestam agindo enquanto totalidade. Contudo, qualquer estudo actual sobre as sociedades colonizadas que vise um conhecimento da realidade presente e não uma reconstituição de carácter histórico, que vise uma compreensão que não sacrifique a especificidade ao comodismo de uma esquematização dogmática só pode ser efectuado, tendo como referência esse conjunto que denominámos de situação colonial. É isto justamente o que pretendemos afirmar; mas, primeiro, importa traçar as linhas essenciais do sistema de referência que acabámos de evocar.

De entre os trabalhos recentes realizados em França, somente os de O. Mannoni atribuem um papel essencial à noção de situação colonial3. Mas, preocupado em restringir-se ao plano psicológico e psicanalítico, Mannoni limita-se a definir esta última de uma forma muito imprecisa; apresenta-a como uma “situação de incompreensão”, “como um mal-entendido” e, consequentemente, analisa os complexos que caracterizam o “colonial” e o “colonizado” e que permitem compreender as relações entre os dois4. Isto é insuficiente. O. Mannoni parece reconhecê-lo, quando refere que não “subestima a importância (capital) das relações económicas”, reconhecendo, de resto, ter escolhido voluntariamente um aspecto pouco característico da situação colonial. Em contrapartida, assumiremos a defesa da totalidade, pensando que se faz alguma batota quando se considera apenas uma das implicações desta situação.

É possível compreender a situação criada pela expansão colonial das nações europeias ao longo do século passado, a partir de diferentes pontos de vista. Estes incluem tanto abordagens particulares, como iluminações com diferentes orientações realizadas pelo historiador da colonização, o economista, o político e o administrador, o sociólogo preocupado com as relações entre civilizações estrangeiras e o psicólogo ligado ao estudo das relações raciais, etc. E, para arriscar uma descrição do conjunto, parece indispensável analisar aquilo que se pode reter de cada um destes contributos específicos.

O historiador encara a colonização de acordo com as diferentes épocas e em função da nação colonial. É ele que permite que nos apercebamos das mudanças ocorridas nas relações entre esta e os territórios dependentes; é ele que nos mostra como o isolamento dos povos colonizados foi quebrado pela acção de uma História sobre a qual estes últimos não tinham qualquer influência; é ele que evoca as ideologias que, em diversos momentos, justificaram a colonização e permitiram a constituição do ‘papel’ adoptado pelo colonial, a discrepância entre a doutrina e os factos; é ele que nos apresenta os sistemas administrativos e económicos que garantiram a ‘paz colonial’ e permitiram a rentabilidade (para a metrópole) do empreendimento colonial; em suma, é o historiador que nos permite compreender como a presença da nação colonial se foi introduzindo, gradualmente, no seio das sociedades colonizadas. Desta forma, o historiador fornece ao sociólogo um primeiro conjunto indispensável de referências, lembrando-o que a história da sociedade colonizada foi feita em função de uma presença estrangeira e evocando, ao mesmo tempo, os diferentes aspectos que esta última assumiu.

 

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MALHAS QUE OS IMPÉRIOS TECEM. TEXTOS ANTI-COLONIAIS, CONTEXTOS PÓS-COLONIAIS 2

Índice

Manuela Ribeiro Sanches, Viagens da teoria antes do pós-colonial

Agradecimentos

I – Viagens transnacionais, afiliações múltiplas

W. E. B. Du Bois, Do nosso esforço espiritual

Alain Locke, O novo Negro

Léopold Sédar Senghor, O contributo do homem negro

George Lamming, A presença africana

C. L. R. James, De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro

Mário de (Pinto) Andrade, Prefácio a Antologia Temática de Poesia Africana

II – Poder, colonialismo, resistência trans-nacional

Michel Leiris, O etnógrafo perante o colonialismo

Georges Balandier, A situação colonial: uma abordagem teórica

Aimé Césaire, Cultura e colonização

Richard Wright, Tradição e industrialização

Frantz Fanon, Racismo e cultura

Kwame Nkruhmah, O neo-colonialismo em África

Eduardo Mondlane, A estrutura social – mitos e factos

Eduardo Mondlane,  Resistência - A procura de um movimento nacional

Amílcar Cabral, Libertação nacional e cultura

 

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  • 1. “La situation coloniale”, Cahiers internationaux de sociologie, vol. 11, 1950, Paris, Les Presses Universitaires de France, pp. 44-79. Revisão de Manuela Ribeiro Sanches e Maria José Rodrigues.
  • 2. R. Kennedy, “The colonial crisis and the future”, The Science of Man in the World crisis, Éditions R. Linton, 1945, p. 307.
  • 3. O. Manonni, Psychologie de la Colonisation, Éditions du Seuil, 1950. Este autor não é, aliás, o inventor desta expressão que já se encontra, com significados diversos, em obras anteriores, nomeadamente, em trabalhos de investigação do sociólogo americano L. Wirth sobre a tipologia das minorias.
  • 4. Permitimo-nos aqui remeter para a homenagem à obra de O. Mannoni por nós publicada nos Cahiers Internationaux de Sociologie, vol. IX, 1950, p. 13-186.
Translation:  Marina Santos

por Georges Léon Émile Balandier
Mukanda | 1 Julho 2011 | civilização, colonial, colonialismo