A caminho da luta

Mais um exercício de reconstituição da memória do que aconteceu há 50 anos! 1961 foi sem dúvida um ano especial, particularmente para os países africanos de expressão portuguesa. Já abordámos vários dos acontecimentos que fizeram esse ano ser tão importante. 1961 foi o ano dos massacres da Baixa de Kassanje, do 4 de Fevereiro, do 15 de Março, da criação da CONCP, e do avolumar das tensões entre Portugal e os seus tradicionais aliados, particularmente os Estados Unidos da América, na altura já sob a liderança de John Kennedy.

Angola, por ter sido palco dos acontecimentos que referimos, liderava a agitação política na comunidade de estudantes lusófonos de origem africana, que estavam em Portugal na altura. O facto de aqui se ter iniciado a luta armada, associada à decisão de Salazar de vir “para Angola, rapidamente e em força”, para combater o movimento independentista, e à obrigatoriedade de incorporação militar nas forças armadas coloniais dos jovens nascidos nas colónias, tudo isso, e o aumento da consciência política dos jovens estudantes que seguiam atentamente o movimento de auto-determinação dos povos africanos, através da independência dos seus países, tornaram o desejo de abandonar Portugal um imperativo. É assim que se viria a materializar esta memorável ‘fuga’ que permitiu engrossar num só acto e de forma significativa, o número de nacionalistas que, já desde o início da década de 50, vinham optando pelo abandono do espaço controlado por Portugal, para preparar as condições para a independência dos seus povos. Outras saídas se seguiriam, num movimento incontrolável de reforço das estruturas dos movimentos que emergiam, e ganhavam capacidade de luta. Elas viriam a crescer com as independências africanas não só em Portugal, como a partir de Angola, para os continentes americano, europeu, mas principalmente africano.

 António Santos Pinto; José Ferreira; Jorge Valentim; Mateus Neto; Maria Amorim António Santos Pinto; José Ferreira; Jorge Valentim; Mateus Neto; Maria Amorim

Em todo o espaço controlado por Portugal, em 1961, havia apenas três centros de ensino superior: Coimbra, Lisboa e Porto. Era assim natural que os jovens das ex-colónias tivessem que passar pela ‘metrópole’, como era chamado o Portugal continental da altura, para que pudessem prosseguir os seus estudos. Isso criou a oportunidade de juntar uma parte considerável da inteligência desses territórios, o que se fazia não apenas nas universidades, mas também no local de acolhimento mais preponderante, que era a Casa de Estudantes do Império (CEI). Era a situação ideal para a criação de uma consciência colectiva, muito bem aproveitada por aqueles que se preocupavam com a causa da independência dos seus países.

Necessitados de quadros para a luta, mas enfrentando dificuldades para os enquadrar, os líderes dos Movimentos de Libertação, então em Conakry e Leopoldville, ajudaram a fomentar a necessidade de sacrifício das carreiras pessoais dos que iam para Portugal ‘ser doutor ou engenheiro’, dedicando-as às causas dos seus povos. Em 1961, há 50 anos portanto, num mundo politizado e de grandes causas, com a guerra fria, e as independências dos países colonizados em África e Ásia nos processos que se seguiram à segunda guerra mundial, e que tiveram o seu auge entre 1947 e 1960, os estudantes africanos em Portugal estavam preparados para abraçar a causa da independência dos seus países. O início da luta armada em Angola foi o último sinal de clarim, sinal de urgência e exigência de definição.

É neste ambiente, com intensa guerra de repressão em Angola, particularmente no norte, corpos expedicionários a partir de Portugal para Angola, e a PIDE a procurar controlar os africanos que se encontravam a estudar em Portugal, que se dá este acontecimento extraordinário: em Junho de 1961 saem de Portugal cerca de cem jovens das ex-colónias africanas, uma parte significativa deles, em duas acções que os levaram a atravessar o rio Minho, e todo o norte de Espanha, rumo a França, e a uma participação activa na longa guerra de libertação nacional dos seus países, que os conduziu à independência. As peripécias, a organização, procuraremos descrever com mais detalhe nas peças que compõem este trabalho, o resultado foi a incorporação nos movimentos que lutavam pela independência de jovens que viriam a ser Presidentes, como Joaquim Chissano e Pedro Pires, Pimeiros-Ministros, como França Van-Dúnem e Pascoal Mucumbi, Generais e Ministros, como “Iko” Carreira, Jorge Valentim, Lopes Teixeira, Henrique Santos “Onambwe”, Jerónimo Wanga, Bento Ribeiro “Kabulo”, Osvaldo Lopes da Silva, José Araújo, Maria da Graça Amorim e Tomás Medeiros, médicos e intelectuais como Gentil Viana, João Vieira Lopes, Carlos Heineken “Katyana”, marcando a história em Angola, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, e desempenhando um papel decisivo na condução dos seus países.

A partir de Portugal, esta acção seria seguida por várias outras, já com maiores cautelas, tendo sido protagonizadas a pé ou de barco, por Espanha ou pelo Atlântico. De Angola, centenas de quadros abandonariam os seus estudos em Luanda e noutros pontos do país para, também de barco ou a pé, se juntarem aos Movimentos de Libertação, principalmente no Congo.

A Associação Tchiweka de Documentação, no quadro do seu trabalho em torno dos acontecimentos surgidos “Há 50 anos…” aproveita esta ocasião para apresentar alguns testemunhos recolhidos pelo projecto Angola – Nos Trilhos da Independência, de participantes na referida Operação.

 Fernando Chaves Rodrigues; Fernando França Van-Dúnem; Pedro V. Pires; Augusto T. Bastos; Higino P. Gomes; Francisco X. B. Rodrigues; Henrique Carreira; Africano Neto; Augusto Lopes Teixeira; Fernando C. Paiva; João Vieira Lopes; Henrique Santos; Salvador Ribeiro. Fernando Chaves Rodrigues; Fernando França Van-Dúnem; Pedro V. Pires; Augusto T. Bastos; Higino P. Gomes; Francisco X. B. Rodrigues; Henrique Carreira; Africano Neto; Augusto Lopes Teixeira; Fernando C. Paiva; João Vieira Lopes; Henrique Santos; Salvador Ribeiro.

A “FUGA DOS 100” NA VOZ DOS PROTAGONISTAS

De Portugal para o mundo, passando as fronteiras de Espanha e França, seguiram em 1961 cerca de 100 estudantes africanos. Destes, cerca de trinta actores da história reuniram-se de 29 de Junho a 3 de Julho de 2011 na cidade da Praia em Cabo Verde, para assinalar a efeméride e partilhar memórias. A ATD apresentou no evento, um trabalho em vídeo com depoimentos recolhidos no âmbito projecto ATD Angola - Nos Trilhos da Independência.

Com base em alguns desses depoimentos, reconstituímos o percurso guardado na memória dos que decidiram escolher os caminhos do mundo para chegar à luta de libertação nacional.

ORGANIZAÇÃO DA OPERAÇÃO:

Na Voz de Pedro Pires

Pedro Pires, fotografia de Mário Bastos Pedro Pires, fotografia de Mário Bastos Nós pensávamos sempre em sair pela via legal ou pela via ilegal. E uma outra coisa que é preciso ter em conta… nessa altura, nós não estávamos tão desinformados como as pessoas pudessem pensar. Nós seguimos o processo das independências africanas, sabíamos perfeitamente o que se passava no Senegal, não diria com toda a profundidade, mas o que se passava na Guiné Conakry, a independência da Guiné, tudo isso… acompanhámos isso… A independência do Ghana, um bocadinho menos, mas a personalidade do Kwame Nkrumah, também… Nós tivemos acesso a alguma informação sobre o Quénia, sobre o Jomo Kenyatta, sobre o livro no Sopé do Monte Kenya… quer dizer, tínhamos alguma informação. E mais do que isso, também líamos alguma literatura brasileira, o Jorge Amado, alguma literatura americana traduzida em português sobre a luta para os direitos cívicos… Olhe que o Luther King foi o nosso contemporâneo e toda a luta pelos direitos cívicos nos Estados Unidos, nós acompanhámos isso. (…) o John Kennedy (…) e o movimento da senhora Parker… Não estaríamos tão informados como os jovens de hoje, mas tínhamos informação. (…) E que se note, eu acho que também em Portugal e na Casa dos Estudantes do Império há dois outros factores ou elementos que também nos influenciavam um pouco. Um era a literatura, poesia, literatura, havia pessoal à volta da revista Imbondeiro e outras actividades, e havia a música. A música foi um grande factor de aproximação e alimentação, diria de alimentação emotiva… A música angolana particularmente, o Ngola Ritmos chegou a Portugal nessa altura e a gente cantava, tocava, etc. E então vivíamos esse ambiente… O assassinato de Lumumba, a independência do Congo, a guerra de Argélia… Portanto, com tudo isso não estávamos tão fora disso, pelo contrário, seguíamos com bastante atenção… Mas dizia, nós queríamos sair de toda a maneira.

Na voz de Edmundo Rocha

Edmundo Rocha, fotografia de Mário Bastos Edmundo Rocha, fotografia de Mário Bastos … eu, Vieira Lopes, Gentil Viana, Kabulo, Pedro Filipe e Graças Tavares que reuníamo-nos sob o nome de Movimento de Estudantes Angolanos. E foi esse Movimento de Estudantes Angolanos que recebeu a ordem de mandar lá para fora alguns elementos mais conscientes, mais mobilizados para ir reforçar o grupo de Conakry (…) E foi a partir dessa data que nós considerámos esse pedido e escolhemos o Graças Tavares e eu para irmos lá para fora organizar-nos. Entrámos em contacto com Conakry (…) Pediram-nos de Conakry para entrar em contacto com o Luís de Almeida que estava na Alemanha Federal. [… Foi o] Desidério que nos pôs em contacto com um bispo protestante, de Frankfurt o qual nos pôs em contacto com o Bispo em Genebra [o bispo Melvin Blake].

Charles Harper “Roy” (do CIMADE)

… Um dos organizadores do grupo, Pedro António Filipe, faz um apelo urgente ao Conselho Ecuménico das Igrejas [COE]. (…) Um bispo metodista americano, Melvin Blake, de passagem por Lisboa a caminho de Genebra, cumpriu o papel de mensageiro. (…) Respondendo a este apelo, o COE vira-se para o CIMADE, em Paris a pedir a organização da evasão destes homens e mulheres que queriam sair de Portugal. Na época, o holandês W.A. Visser’t Hooft era secretário-geral do COE. Madeleine Barot, ligada à direcção do CIMADE, exercia altas funções no COE (…). Era necessário agir rapidamente porque os passaportes de muitos deles tinham sido confiscados pelas autoridades portuguesas. (…) O Ministro francês dos negócios estrangeiros, Maurice Couve de Murville, foi avisado através do pastor Marc Boegner, presidente do CIMADE e da Federação Protestante de França.

(…) Eis o plano: haveria uma equipa no CIMADE [Paris] de plantão para assegurar as comunicações (…) Foram Véronique Laufer, André Rouverand, Yvonne Trocmé e Marie Meylan que asseguravam esta grande responsabilidade. Tania Metzel mantinha-se pronta para receber os estudantes em Hendaye [fronteira Espanha-França]. Em Lisboa, Jacques Beaumont dirige a operação comigo, Charles Harper [“Roy”], americano lusófono de origem brasileira e a equipa do CIMADE em Marselha (França). Um apoio indispensável em Lisboa foi Lewin Vidal ligado a um banco luso-francês (dois anos mais tarde seria preso em Lisboa pela sua participação na Operação). Para o trajecto em Espanha, (…) Bill Nottingham, americano do CIMADE recebia os trânsfugas com três compatriotas (…) encarregados de rapidamente e discretamente encaminhá-los para a fronteira francesa.

Para essa operação verdadeiros-falsos passaportes foram fornecidos em Paris pelas embaixadas do Gabão, Senegal, Níger e da Guiné (…) As fotos de identidade foram recebidas algumas em Portugal e outras feitas a estudantes africanos em Paris que se predispuseram para tal. 

(…) Uma Plymouth e um Peugeot conduzidos por Jacques e por mim seguiram com as nossas primeiras cargas de Lisboa. Para os outros, encontro em Coimbra e no Porto.

(Extracto da Carta enviada por Charles Harper aos “Trilhos” a 30/5/2011 e Conferência dada a 4/06/2010)

Na voz de João Vieira Lopes

João Vieira Lopes, fotografia de Mário Bastos João Vieira Lopes, fotografia de Mário Bastos Já nessa altura nós sentíamos que a coisa estava a ficar cada vez mais apertada. Aí já havia células do MPLA (…). De tal maneira que quando se desencadeia o 4 de Fevereiro, nós aí não tivemos dúvida nenhuma em lançar a palavra de ordem “todos para fora de Portugal”. Aí outra dificuldade se punha: saber quem é que devia sair e quem é que não devia sair. Só aqueles que nós considerávamos militantes do MPLA e tal… isso era muito pouco… por um lado, por outro lado porque a gente ia pôr em risco os outros que ficassem lá. Então dissemos “vamos levar o maior número possível”. E não foi fácil fazer a selecção. O certo é que ainda ficaram uma boa dúzia de estudantes que estavam connosco na Casa de Estudantes do Império mas que sei lá… nós tínhamos umas certas dúvidas, até que ponto é que eles estariam prontos a largar tudo (…). Uma boa parte de nós já estava praticamente no último ano dos cursos superiores, havia uma meia dúzia que já tinham mesmo terminado, entre angolanos, são-tomenses e cabo-verdianos, alguns de nós já tinham mulheres e filhos… largar aquilo para um desconhecido… isso é que nos fez pesar, até porque era muita responsabilidade até para nós, arrastarmos toda aquela gente para fora e depois o que fazer deles?

(…) A ideia que nos vinha é que eles queriam que alguns de nós saíssemos mas que o Movimento não tinha condições para suportar um grande número de indivíduos com mulher, filhos e tudo. Isso foi difícil e foram semanas difíceis entre nós que estávamos na cúpula a decidir isso mas resolvemos de qualquer modo que era preciso fazer sair o maior número possível porque os que ficassem iam ser vítimas de perseguição.

(…) O Mário de Andrade, Lúcio Lara e Eduardo dos Santos estavam ao corrente da nossa fuga para o exterior. O Desidério [Costa] e o Edmundo Rocha estavam na Alemanha e havia um outro angolano que estava na Holanda que também estava ligado ao Desidério e ao Edmundo Rocha. Eles foram os principais influentes junto dos protestantes.

O PRIMEIRO GRUPO (Partida a 16 de Junho – Destino final – Suíça)

Na voz de Jorge Valentim

O mano Daniel [Chipenda], ele não falou, não perguntou, ele usou só a sua autoridade patriarcal e disse: «Amanhã, Jonjo, ou Jorge, e tal, você arranca. Silva [Mateus] você, até hoje, você arranca! A situação exige. Você arranca. Como vocês vão encontrar fulano de tal e tal aí na baixa, em Coimbra, no café mais frequentado vão encontrar um americano, (…) cabelo curto, (…) atlético. (…) ele vai vos dar o sinal com a cabeça.» Era um americano pastor missionário branco.

(…) Lá arrancámos, passámos pelo Porto, entrámos já por aquelas aldeias do Minho até à fronteira [de Portugal com a Espanha] e encontrámos mais um outro elemento de ligação. (…) Nós éramos dois e de repente só vimos outros a chegar, e outros a chegar, e na travessia o grupo tornou-se maior. Não sei donde estavam a sair, uns saiam daqui, outros saiam dacolá. Porque eram horas diferentes, não era uma caravana assim a seguir que vão para uma festa. (…) De manhã, ao amanhecer, outros carros encostavam. (…) Viagem cómoda. Eram carros grandes, carros de respeito. Mercedes. Carros mesmo bons, grandes, sólidos daqueles carros em que nós éramos turistas. (…) Até ao anoitecer chegámos a San-Sebastian. (…) Então quando chegou o turno que era favorável, eles disseram «Agora mesmo que é partir. Metam-se nos carros. Porque os outros [elementos do CIMADE] estão do lado francês. E a parte mais difícil é o lado espanhol» (…). Passámos. Quando chegámos ao outro lado, abraços, «estão livres!». (…) Depois da fronteira tivemos que ir até Paris. Chegámos a Paris e ainda passámos lá a noite. (…) Em Paris encontrámos ele [Jonas Savimbi], o mais velho Andrade, Mário de Andrade. (…) Ficámos pouco tempo [em Paris]. (…) Disseram-nos: «Eh pá, como os outros estão a vir, vocês vão ser espalhados em outros países». Dividiram o grupo em vários cantões. Enviaram-nos para um cantão de expressão alemã, onde não há ninguém que fala francês que aparece lá. Era o cantão de Aarau, na Suíça. O lugar específico onde nós estivemos - Seegen.

O SEGUNDO GRUPO (Partida a 23 de Junho – Destino França)

Na voz de França Van-Dúnem

Fernando França Van Dunnem, fotografia de Mário Bastos Fernando França Van Dunnem, fotografia de Mário Bastos Eu fugi (…) quando o Rui de Carvalho me pergunta se eu queria ir passar férias. (…) Deram-me as instruções para ir à estação de Santa Apolónia comprar um bilhete, se por acaso encontrasse alguém de Angola que não falasse com ele e nem dissesse nada. (…) Então fugimos de Lisboa.

Quem nos contactou quando nós chegamos ao Porto foi o Manuel Lima de Azevedo… (…) No dia seguinte saiu de Lisboa o maior grupo daqueles estudantes todos, acontece que havia muita gente, muita gente na estação lá do Porto (…). Não era só festa, porque havia um batalhão expedicionário português que partia para Angola, então havia muita gente… (…) Então foi aí que apanhámos um carro, no Porto, apanhámos duas limusinas, aqueles carros compridos que havia na presidência antigamente, carros Mercedes grandes com três filadas de bancos… e nós partimos. Eu sei que num carro iam muitas pessoas, 12 ou 13 pessoas confortavelmente sentadas em dois carros. (…) Ordens estritas de não levarmos nada que nos pudesse identificar como angolanos.

PRISÃO EM IRÚN

Na voz de França Van-Dúnem

Fomos até à fronteira, esperámos pela passagem, aí já a passagem foi feita de barquinho e atravessámos para o outro lado. E tivemos que esperar em Espanha numa quinta onde havia muitas laranjeiras, para não sermos vistos pela guarda civil foi-nos dito para ficarmos numa cabanazita, aquilo cheirava a estrume que era o fim do mundo. Como refeição deram-nos laranjas e queijo. Passámos todo o dia assim naquele casebre. Estávamos em fins de Junho, estava muito quente, passámos mal, mal mesmo. Nessa altura já tinham passado outros grupos que iríamos encontrar em Espanha. Nós, por exemplo, fomos presos em Irún. Há um festival qualquer de cinema acho que em São Sebastião… bem… Nós fomos já presos em Irún quando estávamos já prontos para dar o salto. Fomos presos. O Roy e os outros dois tinham passado por outro sítio.

Em Irún (…) fomos encontrar um outro grupo de angolanos que estava na casa desse pastor protestante, um espanhol. (…) Fomos presos, ficámos dois dias na guarda civil… não tínhamos documentos. (…) Pela primeira vez eu tive algemas na minha mão. Eu estava algemado ao João Vieira Lopes no trajecto de Irún para São Sebastião. (…) Nós dizíamos todos que éramos senegaleses porque tínhamos um papel a dizer que éramos senegaleses.

NO CIMADE (FRANÇA)

Na voz de Desidério Costa

Eu estava na Alemanha, o grupo fugiu de Portugal, eu recebo um telegrama, num Sábado, que dizia para eu ir imediatamente para Paris. Encontrei-me com o Luís Almeida num café, esse café ficava perto da casa de um moçambicano escritor, [Castro] Soromenho. (…)

Então, é o Pedro Filipe que lidera com gente da CEI, mas o Pedro Filipe era o principal, e esse grupo tinham sido retirados de Portugal para reforçar a UPA. Mas a maior parte dos estudantes em Portugal eram católicos, os protestantes eram uma meia dúzia. Quando me enviam um telegrama para a Alemanha e eu vou ao encontro do Viriato, Gentil, Eduardo dos Santos, Videira e eles põem-me o problema dizendo que havia um grupo que tinha saído de Portugal e tal e que eles queriam fugir para África mas que não havia harmonia no grupo. (…) Então vou para o CIMADE e converso com os protestantes e apercebi-me que não havia hipótese, a solução era mesmo o grupo não protestante sair. (…) Levou uns três dias a ver aquilo mas vimos que não valia a pena perder tempo então o grupo sai…  

A PARTIDA PARA O GHANA

Na voz de Jacques Vergés (advogado francês)

“Em França, quando chegaram, foram-lhes recebidos os documentos e foram alojados numa vivenda nos arredores de Paris enquanto esperavam bolsas de estudo para países ocidentais.

Foi nesta altura que eu recebi a visita de um destes estudantes… era o Viana que me disse “nós não queremos ficar a espera de bolsas para ir para a Holanda ou a Bélgica, mas gostaríamos de ir ter com os nossos amigos em África e especialmente no Ghana (…). Fui então ver  o embaixador do Ghana e expus-lhe  a situação (…) Ele diz-me “Posso entregar já 50 passaportes.” (…) Sugeri que fosse a embaixada de Londres a fazer os passaportes porque os ghaneses em Londres não necessitavam de visto e os franceses não teriam porque se interrogar como é que o Ministério do Interior em Londres tinha de repente dado 50 vistos a ghaneses. (…) Fui então procurar um produtor de espectáculos que foi a Londres contactar com a embaixada de França informando que tinha uma equipa de músicos e dançarinos ghaneses extraordinários, que estava na Europa, que deveria deslocar-se para a Alemanha e que seria uma pena não poderem fazer alguma representação enquanto atravessassem a França. O francês ficou convencido e lá entregou um visto colectivo.

Portanto, os estudantes estavam em França com um visto proveniente de Londres e um visto colectivo da embaixada de França na Inglaterra. E com estes documentos deveríamos então seguir para a Alemanha onde um avião deveria estar a espera para os transportar para Acra.

(…) Aluguei, na Avenida da Opera, um grande autocarro de turismo (…) e paguei esta viagem com dinheiro da embaixada do Ghana. Portanto, foi alugado o autocarro em Paris e eu disse-lhes para não levarem bagagens, mas simplesmente as coisas mais essenciais que demonstram que é uma equipe de jovens artistas, de fulas, que levassem instrumentos de música e deveriam partir num sábado, dia mais utilizado na Europa e mais prático.

(…) Por volta da uma hora da manhã telefonaram-me informando que já tinham chegado à Alemanha. Telefonei ao embaixador [do Ghana em França]. Apanhámos o avião no dia seguinte para os esperar em Bona, na embaixada do Ghana. Dissemos à companhia de Turismo que lhes oferecíamos o resto da viagem e eles apanharam o avião para o Ghana.

Na voz de França Van-Dúnem

(…) E depois dali a embaixada ghanesa em Bad Godesberg [Alemanha Federal] fez com que nós pudéssemos sair da Alemanha. Aí cada um escolheu o sítio onde estudar, a maior parte dos angolanos foram para Acra (…) onde fomos acolhidos durante os primeiros dias num hotel que se chamava Lisbon Hotel mas tinha o nome naquela altura de Airport Hotel (…). Depois disso fomos transferidos para o Achimota College onde ficámos algum tempo.

(…) Acontece que quando nós estamos em Acra nós desrespeitámos uma directiva que nos tinha sido dada pelo senhor Barden (…) de não aceitar ir para os EUA mas o Armindo Fortes, Tadeu Pereira Bastos e o tal John Kakumba, aproveitaram uma bolsa. Não sei como é os americanos souberam porque na verdade nós fugimos de Serve [CIMADE] mas quando chegámos a Acra fomos visitados pelo cônsul americano, um mulato grandalhão, já sabia que nós estávamos lá. E foi esse que conseguiu sacar em menos de três dias o Tadeu, o Fortes e o tal João Gabriel Marques que se veio a revelar depois John Kakumba. (…) Transferiram-nos para um motel em Neongua a caminho de Porto de Tema. Aí ficámos muito tempo. E sempre com as nossas incursões às embaixadas para ver se havia alguma possibilidade de sairmos. (…) O Mário de Andrade disse que não podíamos ficar, então fomos escolhendo os sítios para estudar. (…) E nós, alguns de nós, ficámos por ali durante um tempo até que conseguimos arranjar bolsas de estudo.

 Joaquim Chissano; Francisco X. B. Rodrigues (?); Fernando Chaves. De pé: Iko Carreira; Ilda Carreira; Kim Jones (condutor do CIMADE); Zacarias Cardoso; (?); (?); Fernando Paiva. Joaquim Chissano; Francisco X. B. Rodrigues (?); Fernando Chaves. De pé: Iko Carreira; Ilda Carreira; Kim Jones (condutor do CIMADE); Zacarias Cardoso; (?); (?); Fernando Paiva.

Na Voz de João Vieira Lopes

E houve muitos que ficaram em Paris, daquele grupo de cento e tal, metade é que nos acompanhou até Acra. (…) Nós também estávamos de acordo que nem todos devíamos ir para Leopoldville porque não havia condições, por um lado, e por outro lado eram muito jovens e deviam continuar os seus estudos. Assim é que quando nós chegamos a Acra uma das preocupações que pusemos ao Nkrumah foi de facto que havia, dentro do nosso grupo, pessoas que queriam ir estudar e ele deu-nos luz verde, deu-nos plena liberdade para contactar quem quiséssemos quer do leste quer do ocidente, e foi assim que alguns dos nossos estudantes que estavam integrados foram parar aos EUA partindo de Acra. (…) O grupo maior, conseguimos com que fosse parar à União Soviética, aos países do leste e um pequeno grupo conseguimos com que viesse para Leopoldville.

A maior parte dos que, há 50 anos, integraram os grupos que em Junho começaram a sair de Portugal, seguiram os caminhos do mundo com destino à luta armada dos respectivos países. Trilhos que seguimos com o intuito de preservar a memória dos que podem contar a História dos caminhos percorridos.

 

Extractos das entrevistas ao Projecto “Angola - Nos Trilhos da Independência” 

Edmundo Rocha - 17/05/2011

João Vieira Lopes - 2/08/2010

Jorge Valentim - 24/02/2011

Fernando França Van-Dúnem - 10/06/2011

Desidério Veríssimo da Costa - 1/03/2011

Jacques Vergés - 12/5/2011

Autocarro que transportou os estudantes em FrançaAutocarro que transportou os estudantes em França

CONTEXTO CRONOLÓGICO

1958

8 DE JUNHO – Eleições Presidenciais em Portugal. Humberto Delgado é derrotado.

SETEMBRO E OUTUBRO – Chegada a Portugal de bolseiros metodistas vindos de Angola. Entre eles: Jonas Savimbi, Jerónimo Wanga, Jorge Valentim, Desidério da Graça, Pedro Felipe, Ruth Neto.

20 DE OUTUBRO – Agostinho Neto termina o seu doutoramento em medicina e casa com Maria Eugénia Neto em Lisboa.

1959

MARÇO – Lúcio Lara, da direcção do MAC, deixa Portugal e vai para a Alemanha com a família.

MARÇO – Início das prisões em Luanda que darão origem ao “Processo dos 50”.

MAIO OU JUNHO – Detenção de Ilídio Machado em Lisboa e sua transferência para Luanda.

JULHO – Passagem de Kwame Nkrumah por Lisboa. Detenção de estudantes africanos presentes no aeroporto para o saudar.

AGOSTO OU SETEMBRO – Carlos Rocha abandona Portugal e refugia-se na Alemanha. Contacta com o MAC por recomendação de Agostinho Neto.

SETEMBRO OU NOVEMBRO – Jonas Savimbi abandona clandestinamente Portugal e segue para a Suíça depois de uma passagem pela França.

NOVEMBRO – Agostinho Neto profere uma palestra na Casa dos Estudantes do Império.

22 DE DEZEMBRO – Partida de Agostinho Neto de Portugal para Angola.

1960

INÍCIOS DO ANO – Criação clandestina do Movimento de Estudantes Angolanos em Portugal com J. Vieira Lopes, AP Felipe, Bento Ribeiro, Graça Tavares, Edmundo Rocha em Lisboa, Daniel Chipenda e Manuel Videira em Coimbra e Lima de Azevedo no Porto. 

JUNHO – Prisão em Luanda da primeira direcção do MPLA com Agostinho Neto, P. Pacavira, C. Costa, J. Silas, A. Sebastião, JP Andrade e outros, seguido por uma revolta da população de Catete. 

30 DE JUNHO – Independência do ex Congo-Belga. Joseph Kasa-Vubu é o novo Presidente e Patrice Lumumba o 1º Ministro.

9 DE JULHO – Designado o Comité Director do MPLA em Conakry. Entre os seus conselheiros estão estudantes em Portugal como J. Vieira Lopes, C. Pestana, G. Viana, E. Rocha, T. Medeiros, G. Tavares e outros.

15 DE OUTUBRO – Agostinho Neto, depois de ter sido transferido de Luanda para a cadeia de Aljube em Lisboa, é desterrado para Cabo Verde. Manifestação de solidariedade dos estudantes à sua partida. Alguns são posteriormente detidos pela PIDE.

6 DE NOVEMBRO – Chegada a Portugal de J. Chissano e P. Mucumbi para estudos de Medicina.

24 DE NOVEMBRO – Detenção de José Luandino Vieira em Lisboa.

1961

17 DE JANEIRO – Assassinato de Patrice Lumumba. Generalização de uma onda de protestos a nível internacional.

20 DE JANEIRO – Tomada de posse de John F. Kennedy, novo Presidente dos EUA.

21 DE JANEIRO – Eduardo Mondlane, a convite de Adriano Moreira efectua uma visita a Moçambique onde permanecerá até Maio.

22 DE JANEIRO – Desvio do paquete Santa-Maria por Henrique Galvão que ameaça dirigir-se para Angola.

FEVEREIRO E MARÇO – Inicio da luta armada em Luanda e no norte de Angola. As notícias chegam a Portugal. A vaga de recrutamento militar estende-se aos estudantes africanos.

MARÇO OU ABRIL – J. Savimbi adere à UPA depois de longos contactos com o MPLA.

20 DE ABRIL – 15ª Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, incluindo os EUA, aprova resolução contra a política colonial de Portugal.

25 DE ABRIL – Joaquim P. Andrade é transferido de Príncipe para Aljube em Portugal.

ABRIL-MAIO – Edmundo Rocha e Graça Tavares seguem de Lisboa para França e Alemanha onde procedem ao contacto com organizações ecuménicas para a organização da saída de estudantes africanos de Portugal.

MAIO – O Pastor Jacques Beaumont do CIMADE estabelece contactos em Portugal para a organização da designada “Operação Angola”.

 

10 SUGESTÕES DE LEITURA

 

“CAMINHOS CRUZADOS EM HISTÓRIA E  ANTROPOLOGIA”, HOMENAGEM À JILL DIAS.  Lisboa, ICS (Instituto de Ciências Sociais), 2010. 

CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DA GÉNESE DO NACIONALISMO MODERNO ANGOLANO. Edmundo Rocha. Lisboa, Edição do autor, 2003.

DEPOIMENTOS PARA A HISTÓRIA. Helder M. Barber D. Santos & Drumond A. J. Mafuta. Luanda, Ed. Autores, 1999.

ESPERANÇA. ÉPOCA DE IDEIAS DA INDEPENDÊNCIA E DIGNIDADE (1954-1975). Jorge Alicerces Valentim. Luanda, Nzila, 2005.

HISTÓRIA DO MPLA, Centro de Documentação e Investigação Histórica do CC do MPLA. Luanda, CDIH, 2008, vol. 1.

MEMÓRIAS. Iko Carreira. Luanda, Nzila, 2005.

O MEU TESTEMUNHO. UMA LUTA, UM PARTIDO, DOIS PAÍSES. Aristides Pereira. Lisboa, Notícias Editorial, 2003.

PARTICIPEI, POR ISSO TESTEMUNHO. Sérgio Vieira. Maputo, Ndjira, 2010.

UM AMPLO MOVIMENTO – ITINERÁRIO DO MPLA ATRAVÉS DE DOCUMENTOS DE LÚCIO LARA (Vol. I: até Fev. 1961; Vol. II: 1961-1962), Lúcio Lara. Luanda, 1997-2006.

VIDAS, LUGARES E TEMPOS. Joaquim Alberto Chissano. Maputo, Texto Editores, 2010.

 

publicado originalmente no Novo Jornal, Luanda 30/7/2011

por Associação Tchiweka de Documentação
Mukanda | 2 Agosto 2011 | 1961, angola, diáspora, guerra colonial, Independência