Tintin Akei Kongo (2015)

Tintim no Congo (1931) é o segundo álbum da famosa série de BD do autor belga Hergé. Foi-lhe encomendada pelo jornal conservador Le Vingtième Siècle e conta a história do jovem repórter Tintim e o seu cão Milú enviados para o então Congo belga para escrever sobre acontecimentos nesse território. Embora tenha reconhecido sucesso comercial e tornado-se derradeiro para definir a indústria de BD franco-belga, este álbum tem recebido duras críticas pela sua atitude racista e colonialista perante os congoleses, retratando-os como atrasados, preguiçosos e dependentes dos europeus. Hergé é sobretudo acusado de persistentemente alinhar a sua visão com o mais baixo denominador comum sem se questionar do racismo explícito ou das políticas coloniais que já eram criticadas por artistas e intelectuais francófonos do seu tempo. Ler aqui a crítica de Pedro Moura. 


Tintin Akei Kongo é uma tradução de Tintin au Congo em lingala, a língua oficial do Congo. A tradução foi comissariada por um artista e foi feita em colaboração com um tradutor oficial durante a sua residência artística na ilha de Ukerewe na Tanzânia. Esta tradução faz parte da linhagem de detournements como Katz [livro destruído por alterar o famoso Maus de Art Spiegelman], Noirs [os Estrumpfes Negros ficam todos azuis] ou Riki Fermier [em que o Petzi desaparece da sua própria BD], livros apontados de autoria provável ao grego Ilan Manouach. O artista, consciente das propriedades materiais da edição original, cheia dos seus potenciais significados, tornou explícitos os aspectos formais do objecto: o novo livro é um fac-simile da edição original e manteve os padrões de produção industriais das BDs “clássicas”. O objectivo desta aventura não é somente a reinterpretação do trabalho do autor para reinventar as intervenções possíveis sobre uma obra comissariando uma tradução, nem enfatizar a importância do discurso e da auto-referência para indicar a BD simultaneamente como linguagem e lógica de sistema. 
O objectivo é não só “reparar” um erro histórico tornando acessível este trabalho na língua daqueles que lhes interessa, os oprimidos, os insultados. Revela as escolhas tácticas de quem traduz obras. Não é de surpreender que afinal na África pós-colonial ainda se use o francês ou o inglês como línguas oficias para questões de Educação, Legislação, Justiça e Administração? Tintin au Congo reflecte as opinião da burguesia belga dos anos 30. Esta concepção do povo do Congo ou pura e simplesmente de qualquer negro visto como uma grande criança é uma parte da História do Congo tal como Os Protocolos dos Sábios de Sião fazem parte da falsa propaganda anti-semita na História dos Judeus. O Tintim no Congo tinha de ser traduzido para lingala!
Uma identidade nacional não é só criada por um processo interno de cristalização, de consolidação constante do que é a sua cultura nacional, mas também é definida pelas pressões oferecidas pelo exterior. Tintim no Congo, a versão original na língua francesa é ainda uma das BDs mais populares na África francófona. O facto de ainda não existir uma edição congolesa, fará lembrar ao leitor de Tintin Akei Kongo que a promoção cultural não é só governada por lucro ou outros valores de mercado. Ao juntar lingala às 112 línguas traduzidas no Império Tintim, Tintin Akei Kongo revela pontos cegos na expansão dos conglomerados da edição. 
Tintin Akei Kongo será apresentado no Festival de BD de Angoulême.

5ª Situacionista

Aproxima-se Angoulême e já se anuncia-se - como podem ver no “post” anterior - um novo golpe “situacionista” da 5eme Couche! Excelente pretexto para fazer um resumo do que eles têm feito nos últimos anos para tornar a nossa vida muito mais excitante nesta luta eterna contra o aborrecimento da vida contemporânea.
Em 2006 saiu o primeiro “detournement” de Ilan Manoauch - Vivre Ensemble em que um álbum inteiro do Petzi foi digitalizado e o Petzi bem como a maior parte das personagens desapareceram da BD - ficando apenas o pelicano com os cenários, “coisas” e sobretudo balões de fala a boiarem numa solidão desconcertante. Um exercício OuBaPo que deveria ter saído pela L’Association se estes não andassem frouxos nesta altura… Mais tarde, em 2012 em pleno ano de Art Spiegelman no Festival de Angoulême, sai outro “detournement”, oKatz (todos os animais da BD foram substituídos por cabeças de gatos) que teve um destino cruel porque a edição foi destruída. Mas tudo bem em 2013 saiu logo o Meta Katz para “ladrão que denuncia ladrão, mil anos de perdão!” Depois disto tudo eis que aparece no ano passado, o álbum Les Schtroumpfs Noirs na mesa do 5éme Couche! Uma edição que reproduz na integra o álbum Os Strumpfes Negrosmas todo impresso a azul!!! Originalmente editado em 1959 pela Dupuis, esta BD mete os pequenos homens azuis com um problema a lembrar uma praga de zombies, ou seja, o Strumpfe que for mordido por um Strumpfe negro (que foi picado por uma mosca negra marada qualquer), fica também negro, a saltitar, a gritar “gnap gnap gnap” feito um selvagem. Foi uma BD que foi considerada racista, sobretudo nos EUA, chegando a ter, por aquelas bandas, uma versão em que o negro foi substituído pelo roxo. Com esta “nova” versão pirateada, que o editor Xavier Löwenthal afirma publicamente que não sabe como surgiu – no Libération afirma que um rapaz da DHL chegou lá ao stand e entregou-lhes uma caixa cheia destes livros azuis – mas dizia, com esta nova versão acaba o racismo!!! Porque todos os Strumpfes, azuis ou negros, estão impressos a azul! Mais extremo ainda é que todo o álbum original foi “rapinado”, ou seja, não há depósito legal ou ISBN a acusar quem o fez, o nome da editora original (um gigante do mercado da BD que detêm o Spirou, por exemplo) está impresso na capa. Mais, o álbum original é constituído por três aventuras dos Strumpfes (“O Strumpfe voador” e “O ladrão de Strumpfes”) que também são reproduzidas no “álbum azul”. A única coisa (fora esse hilariante azul omnipresente) que “falha” é uma página (a página 54) que não foi impressa - na BD “O Ladrão de Strumpfes”, o que tem a leitura que tem…

Mas o melhor trabalho para abalar o sistema de crenças da BD foi o caso Judith Forrest! Em 2009 foi editado o livro desta autora, 1h25, que teve grandes resenhas críticas pela imprensa, chegando-se a afirmar que este seria a BD autobiográfica que atingia a maior sinceridade dentro desse género. A autora foi convidada para entrevistas na rádio e TV e o livro teve algum sucesso comercial. No ano seguinte saiu Momon em que explica porque a autora após uma “one night stand” com Xavier, este não se lembrava dela no dia seguinte - os homens são uns porcos, né? Mas a razão por Xavier não se lembrar de ter ido prá cama com a autora é porque a autora não existia… Nas páginas de Momon, Xavier e os autores William Henne e Thomas Boivin numa viagem de carro vindos de um festival de BD perguntam-se porque a 5éme Couche, sendo uma editora tão boa não tem impacto mediático… Alguém sugere que lhes falta uma autora de BD autobiográfica que conte histórias de ir ao cu. Alguém se lembrou que porque não se edita uma autora dessas? “As nossas autoras são artistas, pá, nunca fariam histórias de ir ao cu…”. Alguém conclui: “Bem, então porque não fazemos nós isso e assinamos como se fossemos uma?”
Chili Com Carne 


05.02.2015 | por martalanca | 5eme Couche, BD, racismo, Tintim no Congo