Televisão brasileira em Moçambique

A recente afirmação do Brasil como potência emergente no cenário político mundial coloca o país em novas posições na hierarquia da geopolítica contemporânea. Dentre tantas faces através das quais se revela este fenômeno, uma delas é de particular interesse para aqueles que procuram identificar novas interconexões e fluxos humanos no ambiente cultural globalizado: a projeção hegemônica sobre países africanos, especialmente os de língua oficial portuguesa. Vejamos neste artigo, como este processo se dá em atualmente Moçambique, ex-colônia portuguesa tornada independente em 1975. Trata-se de um caso emblemático das possíveis novas configurações geopolíticas dadas por recentes mudanças à escala global. Mais ainda, o assunto aqui é o papel da cultura nesses processos, muitas vezes negligenciado quando se trata de fazer grandes análises sobre as dinâmicas macro-políticas atuais.

Dada a própria natureza do sistema colonial, os países africanos (no caso) são entidades políticas concebidas a priori em posição de subalternidade , como simples apêndices da Metrópole européia em todas as dimensões: política, econômica e cultural. Em relação a este último aspecto, temos como principal aspecto a incorporação da língua do colonizador na própria construção das identidades nacionais africanas. Para o nosso caso em questão, o português falado em Moçambique constitui-se em um patrimônio cultural genuíno, moldado e transformado pelos diferentes povos que compõem a diversidade cultural existente no país. Além disso, há também contribuições dadas pelas relações com os países vizinhos – todos ex-colônias britânicas – com quem os moçambicanos vem travando contato ao longo da sua recente história.

Já na atualidade, a entrada do Brasil neste quadro se dá na esteira da sua expansão político-econômica também recente, que por sua vez, vai encontrar um Moçambique em pleno processo de instauração de uma sociedade pretensamente democrática, a partir de meados da década de 1990 . O fato da língua comum faz deste país (assim como de Angola) uma área de influência privilegiada para a expansão brasileira, justamente pela condição única existente na região de estabelecer trocas que vão além da formalidade institucional. A particularidade destas trocas está no vasto campo que se abre para a inserção do notável capital humano brasileiro em várias áreas da sociedade moçambicana; via de regra, sobrepondo-se ao capital humano local, comparativamente menos qualificado. Note-se que estamos diante de uma relação flagrantemente desigual, em função das diferentes posições que os países ocupam no mundo contemporâneo.

Como expressão simbólica deste encontro de culturas, os meios de comunicação de massa exercem um papel fundamental no estabelecimento de valores e idéias que irão dar forma concreta à percepção social do fenômeno. Sem dúvida, dada a sua enorme capacidade de disseminar informações e visões de mundo, cabe principalmente à televisão o papel de atualizar os dados da realidade; longe de produzir uma imagem neutra dela, mas ao contrário, participando ativamente na construção da mesma. Enfim, um olhar sobre a inserção da televisão brasileira no cotidiano dos moçambicanos pode nos dar a dimensão exata deste quadro mais amplo que aqui se pintar.

Tele-visões: imagens à distância
Reflexo de uma “modernização” tardia que caracteriza a maioria dos países africanos, a atividade televisiva iniciou-se em 1981, com o surgimento da TVE (Televisão Experimental de Moçambique) . Desde então, ela foi se expandindo em termos de programação, de público e de cobertura, adentrando cada vez o dia-a-dia das pessoas num ritmo lento, porém suficiente para chegar a se massificar consideravelmente por todo o país. Neste início, deve se considerar o contexto político monopartidário - no qual todos os meios de comunicação estavam subordinados ao governo – que propiciou a hegemonia da TVM (Televisão de Moçambique, fruto do embrião TVE), a emissora estatal; como empresa pública, estava enquadrada no âmbito da política cultural oficial.

Já neste momento inicial, as telenovelas brasileiras eram destaque da programação, alcançando largo sucesso de público, primeiro com “O Bem Amado” em 1986 e “Roque Santeiro” no ano seguinte. Quatro vezes por semana e seis horas por dia, os moçambicanos iam incorporando personagens como Odorico Paraguassu, Zeca Diabo e Viúva Porcina ao seu imaginário. Daí para os dias de hoje, essa história só fez aumentar; com a ampliação da programação e o surgimento de outros canais nas décadas seguintes , tantos outros personagens e situações adentraram o universo cultural local, não de forma passiva, mas ao contrário, estabelecendo-se um diálogo criador de novos significados. 

Inadvertidamente, muitas das temáticas trazidas pelas telenovelas desencadearam interessantes dinâmicas em Moçambique, desde a adoção de um vestuário mais “abrasileirado” (mais informal, contrastando com a formalidade do vestir local) até a debates públicos sobre diferentes temas, como a prostituição (retratada em “Laços de Família” e “Paraíso Tropical”), a juventude emergente consumista (vista no seriado “Malhação”), a corrupção, etc. Outros subgrupos da sociedade moçambicana também viram alguns de seus elementos culturais abordados nas telenovelas como os indianos (em “Caminho das Índias”) e os muçulmanos (em “O Clone”). Neste sentido, não se pode deixar de falar sobre o impacto das representações sociais sobre os negros – afro-descendentes - na teledramaturgia brasileira, seja nas produções que retratam a escravidão (como em “Escrava Isaura” e “Sinhá Moça”) ou naquelas que sublinham as suas posições subalternas e à violência a que estão mais expostos na sociedade.

Sem sombra de dúvida, a influência mais sensível deste fluxo intercultural está no vocabulário. Por via das telenovelas, o português brasileiro foi ganhando enorme espaço no dia-a-dia, ampliando-se assim, o repertório do próprio português moçambicano. Enfim, estudos mais aprofundados deste impacto ainda estão por se fazer, sem que se perca de vista o sentido desigual desta relação: são os meios de comunicação brasileiros que entram no cotidiano local e o contrário não se verifica. Longe disso. Conforme dito acima, estamos diante de um processo de projeção hegemônica de um país sobre outro, dentro do qual determinadas trocas simbólicas jogam um papel decisivo na sua consolidação e legitimação.

Sintonia fina
Entretanto, desde há um bom tempo, o fenômeno não se restringe às telenovelas. Acompanhando a própria expansão do mercado interno de comunicações no Brasil, a partir de meados dos anos 1990, uma série de outros programas televisivos passa a adquirir a capacidade de alcançar Moçambique e outras paragens . Estes são trazidos sobretudo pela Rede Record, cuja expansão mundial está diretamente ligada à Igreja Universal do Reino de Deus, da qual é propriedade. E como tal, carrega naturalmente a visão de mundo subjacente a toda este corrente religiosa conhecida como “neo-pentecostalismo” (ou simplesmente “evangélicos”).

Comparada com as telenovelas da Rede Globo, a inserção da Rede Record em Moçambique é dotada de um caráter muito mais incisivo, não apenas por vir acompanhada da atividade religiosa em si , mas também pelo fato de em 1998, ter sido criada a TV Miramar (desde 2010, designada como Record Moçambique, é a líder de audiência no país) um canal local que retransmite parte programação original da TV Record, além de produções locais na mesma linha. Foi por esta via que programas de entretenimento como “Raul Gil” e “Eliana” tornaram-se sucesso de público no país. Para além destes, a veiculação de noticiário brasileiro acabou por expor mais ainda os moçambicanos a elementos da realidade brasileira.

É justamente a partir daqui que o processo como um todo começa a ganhar contornos mais complicados. Neste sentido, o caso mais emblemático foi a veiculação do célebre programa “Cidade Alerta”; trata-se de um noticiário policial sensacionalista, que aborda a questão da segurança pública de forma fragmentada e descontextualizada, onde o objetivo principal é atingir uma grande audiência a partir da espetacularização da já exacerbada violência das periferias brasileiras. Em Moçambique, este programa gerou um interessante caso de reflexividade, a ponto de em a sua exibição ter sido banida pelo governo, por supostamente estimular os criminosos locais a reproduzir técnicas e procedimentos “aprendidos” dos seus congêneres brasileiros. Aliás, é frequente os moçambicanos atribuírem problemas locais como a violência e “imoralidade” à influência dos programas de televisão brasileiros.

Entretanto, mais do que a simples veiculação das mazelas da sociedade brasileira – sendo a própria abordagem midiática em si uma dessas mazelas – ocorre hoje uma incorporação desse padrão estético nas próprias produções nacionais. É o caso do programa “Balanço Geral” , cujo formato originariamente brasileiro ganhou uma versão moçambicana, exibida pela TV Miramar. Trata-se de um programa de pretensa utilidade pública em que o apresentador faz as vezes de comentarista e de conselheiro diante das notícias, na sua maioria, sobre o cotidiano pobre e violento do chamado “povão”. Embora não apresente a violência de forma explícita, o programa segue a linha de antecessores como “Aqui e Agora”, “ratinho Livre” e o próprio “Cidade Alerta”, no sentido de incutir no telespectador uma visão bastante distorcida e conservadora da realidade social. Até mesmo o linguajar e a gestualidade do apresentador moçambicano remetem ao sensacionalismo original.

A imitação do padrão estético contida no “Balanço Geral” moçambicano acaba por reproduzir conceitos e pressupostos problemáticos para abordar questões sociais locais. Assim como ocorre no Brasil, é possível identificar afinidades entre o discurso noticioso (explícito na performance do apresentador) e o discurso religioso (subjacente, de inspiração “evangélica”). Neste caso, interessa transmitir ao público uma imagem de degradação humana, a partir da forma espetacular e banalizada com que os fatos são tratados; não se propõe reflexão ou diálogo aberto na abordagem de fenômenos complexos, mas pelo contrário, reforça-se o simplismo do senso comum para legitimar posições autoritárias . É justamente aí que o discurso religioso encontra campo fértil para se contrapor ao apocalipse social e levar a sua mensagem de “salvação”.

Outro exemplo vivo desta questão se deu recentemente, quando os moçambicanos tiveram a oportunidade de acompanhar – ao vivo - as operações das forças de segurança contra o narcotráfico no Complexo do Alemão (no Rio de Janeiro). Exposto à visão parcial dada pelos meios de comunicação brasileiros - pela Rede Globo e Record, basicamente - o público local acaba por ter como única referência a cobertura um tanto controvesa do tema. O dado preocupante aí é que trata-se desses mesmos grupos de mídia que investem pesado no mercado de comunicação moçambicano, ainda em expansão e extremamente aberto à influências externas.

Cenas do próximo capítulo…
Também em meados desta última década, a introdução do serviço de televisão a cabo ampliou ainda mais o leque de opções no mercado moçambicano, ainda que seja para uma elite bastante restrita. Além das já conhecidas TV Globo Internacional e Record Internacional (e o canal de notícias Record News) - que reproduzem quase que integralmente a programação brasileira – estão disponíveis também o canal de esportes PFC e a TV Brasil. Inclusive, esta última abriu escritório em Maputo no ano passado; e em termos de conteúdo, aparece como uma proposta mais interessante de diálogo intercultural.

Ainda em relação ao desenvolvimento da televisão propriamente moçambicana, há que se registrar o aparecimento da emissora privada STV, em 2002. De acordo com a percepção popular, a STV aparece como um fator de diversificação das fontes de informação, em contraposição à TVM, cada vez mais percebida no senso comum como uma caixa de ressonância do discurso oficial do governo . À medida em que se consolida, acaba por cumprir um papel importante no desenvolvimento da sociedade civil moçambicana, historicamente restrita por força de diversas contingências sociais e políticas. E uma vez que o cenário atual aponta para possíveis transformações no fazer televisivo moçambicano – seja em função de dinâmicas internas e pela pressão exercida pela qualidade técnica das produções externas (brasileiras, por exemplo) – mais do que nunca, impõe-se ao público moçambicano mais atenção com os conteúdos a que é exposto. Dada a condição de dependência externa e de vulnerabilidade que caracteriza o país, a televisão pode vir a ser um fator a mais do seu reforço. 

*Marílio Wane é sociólogo, mestre em Estudos Africanos e colaborador do Pambazuka News em língua portuguesa.

**Por favor envie comentários para editor-pt@pambazuka.org ou comente on-line em Pambazuka 

16.02.2011 | por martalanca | África-Brasil