O começo e o final de uma semana a p&b em Viena; notas de Maria Vlachou

Chego a Viena numa sexta à noite. A cara do taxista diz-me que o seu país de origem poderá ser algures no Médio Oriente. Não fala inglês, por isso, não podemos falar. Alguns minutos mais tarde atende uma chamada. Oiço-o falar turco. “So, you´re from Turkey?”, pergunto quando desliga. Olha para mim através do retrovisor surpreendido e pergunta-me (provavelmente): “Percebe turco?”. Digo-lhe “Yunanistan” (“Grécia” em turco). Olha para mim ainda mais surpreendido e exclama: “You?! Yunanistan?!”. E continua em inglês: “Me, you, no problem, no problem.” Sorrio: “No problem”, digo-lhe. Quando chegamos ao hotel, agradeço-lhe em turco. Parece estar contente. 

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Estou em Viena para um workshop sobre racismo e consciência cultural, financiado pelo Grundtvig, o programa da União Europeia de aprendizagem ao longo da vida – começa na segunda. A formadora principal é uma mulher preta que parece ser dinâmica e muito autoconfiante. Os participantes vêm da Bulgária, Roménia, República Checa, Polónia, Alemanha, Irlanda, Holanda, Reino Unido, Espanha e Turquia. Pessoas pretas e brancas – ou uma espécie de pretas e uma espécie de brancas – muitas originárias de países diferentes daqueles onde hoje residem, pessoas de várias idades e áreas, reunidas em Viena para debaterem o racismo.
É-nos pedido para falarmos das nossas expectativas face ao workshop. Digo-lhes que espero que as minhas ideias sobre o racismo sejam desafiadas, que o meu pensamento se desenvolva, porque sei que nenhum de nós se considera racista, mesmo assim, poderíamos ficar surpreendidos.
Um pouco mais tarde, é-nos dada pela formadora uma definição do racismo: “Racismo é discriminação com poder numa sociedade dominada pelos brancos.” Esta definição não me deixa confortável.
- “Vê o racismo hoje em dia como algo que apenas os brancos fazem contra os pretos?”, pergunto. - “Não sou eu que o estou a dizer”, responde a formadora, “é assim que tem sido definido.”
E nesse momento, com aquele género de resposta, sei que a semana que temos pela frente será mais complicada e menos interessante do que tinha antecipado. Mas desafiante, mesmo assim.
São várias as razões porque esta experiência me deixou profundamente preocupada e desiludida, para além de me fazer sentir desconfortável.
Em primeiro lugar, ao longo da semana, fomos bombardeados com afirmações (algumas delas sendo sérias imprecisões históricas), raramente, ou melhor nunca, fazendo referência a qualquer fonte bibliográfica e sem espaço para serem discutidas: assim, foi-nos dito que deveríamos esquecer os filósofos Gregos antigos e o seu contributo para a cultura europeia e mundial, porque tinham sido vistos no Egipto (só isso, “tinham sido vistos”); que Heródoto tinha feito a descrição de Cleópatra como tendo traços africanos (como, se viveu cinco séculos antes dela?); que Alexandre o Grande incendiou a biblioteca de Timbuctú (bem, acho que não se aventurou por esses lados); que os médicos hoje fazem um juramento escrito por um médico egípcio (mmm… será de Hipócrates que estamos a falar?).
Em segundo lugar, havia uma determinação em fazer calar qualquer pessoa, preta ou branca, que estaria a tentar colocar o racismo numa perspectiva mais contemporânea, mais ampla. Era-nos dito que este não era o tema do workshop ou os nossos comentários e questões provocavam risos irónicos ou respostas agressivas, uma vez que o nosso desejo para haver debate era visto como uma tentativa de minimizar a seriedade do racismo dos brancos contra os pretos a fim de lidarmos com a nossa “culpa de brancos”. Os argumentos para apoiar esta tese continuavam a chegar. Num passeio pela cidade (chamado “Black Vienna” no programa do workshop), uma jovem mulher preta – que vive na Áustria desde os 2 anos e que tem hoje nacionalidade austríaca – partilhou a história da sua participação numa peça de Tennessee Williams, fazendo de empregada (um papel típico reservado a actores pretos, disse-nos). Sentiu-se desconfortável com o uso da palavra “nigger” (preto) no texto de Williams. Queria que fosse substituída (vamos ver: teria ficado satisfeita se tivesse mudado um texto escrito nos anos 50 que apresentava uma história no sul dos EUA, onde um personagem branco (provavelmente racista) que queria rebaixar um preto usasse talvez o termo “african american” em vez de “nigger”? E talvez a criada devesse ser interpretada por uma actriz branca? A sério, é assim que se vai combater o racismo?). Depois disto, continuando o nosso passeio, fomos levados ao parque da cidade e foi-nos mostrado o local onde um jovem preto tinha sido atacado pela polícia com enorme gravidade (presumivelmente por ser preto), onde a ambulância demorou séculos para chegar, resultando o incidente na morte do jovem (umas semanas antes tinha ocorrido em Salónica, na Grécia, um incidente bastante parecido, quando a polícia não gostou do aspecto “anarquista” de um jovem – branco…).

A aparente incapacidade da comunidade preta de Viena em se organizar para lutar pelos seus direitos e para partilhar de forma mais ampla as suas preocupações com a sociedade vienense deixou-me também apreensiva e algo surpreendida. Foi-nos contada a história de Angelo Soliman, um homem preto que chegou a Viena no século XVIII e era muito respeitado pela sociedade local e um companheiro do imperador pela sua inteligência e vastos conhecimentos e até se casou com uma mulher branca… para depois da sua morte ser embalsamado e exposto no Museu de História Natural. Uma exposição do Museu de Viena sobre Soliman uns anos atrás foi severamente criticada pela nossa guia, pela forma como representava as pessoas de África, mas, aparentemente, não houve nenhuma reacção oficial da comunidade preta (mais sobre a exposição aqui). Mais tarde, quando perguntámos que tipo de associações tinham para serem representados na sociedade austríaca e nas suas relações com o Estado austríaco, foi-nos dito que este género de associação não era possível, uma vez que a maior comunidade africana era da Nigéria e as pessoas pertencem a tribos diferentes e no passado rivais… Como pode ser que sejam todos “um” (“pretos” ou “africanos”) quando atacados ou discriminados, mas que as tribos se metam no caminho quando é suposto organizarem-se?
Por último, uma outra razão de preocupação: a óbvia raiva e igualmente óbvia incapacidade (ou falta de vontade) de colocar as coisas numa perspectiva diferente. Quando foi mencionado o caso de Zimbabwe, e concretamente a forma como os brancos tinham sido tratados pelo governo de Mugabe, foi-nos dito que tinha sido feita justiça. Os pretos viviam lá desde sempre, os brancos chegaram depois, por isso, mesmo que nasçam e cresçam naquele pedaço de terra há décadas, não lhes é permitido chamá-lo “seu”… Por outro lado, jovens que hoje em dia são oficialmente Austríacos (pretos) – depois de terem vivido durante alguns anos no país – reclamam furiosos contra o racismo e a discriminação austríacos. Estão convencidos (ou preferem pensar, para poderem continuar a alimentar a sua raiva) que qualquer coisa que aconteça a um preto é porque é preto.
Não estou a negar este género de racismo – ao contrário, se o estivesse a fazer, não teria ido a Viena -, mas nas suas repetidas tentativas de nos fazer ver uma vítima preta, alguns de nós víamos simplesmente uma vítima: um pobre, uma mulher, um homossexual, um cigano… Fiquei muito impressionada quando um participante do Senegal, que vive hoje em Barcelona, nos disse que, quando um rapaz do Senegal foi assassinado por ciganos (que estavam a gritar “mata o preto”…), a comunidade recusou-se a ver este incidente como um crime racial e concentrou-se no crime, no homicídio que deveria ser punido. Tinha sido uma opção consciente para evitar virar uma comunidade contra a outra. O homicídio tinha sido visto como um homicídio.
E sinto que este poderá ser o caminho. Considerando que existe apenas uma raça, a raça humana, o racismo hoje em dia para mim só pode ter um significado metafórico. É discriminação com poder (independentemente da cor do discriminado e de que detém o poder). Numa entrevista com Mike Wallace, Morgan Freeman considerou o Black History Month “ridículo”, recusando-se a ver a sua história reduzida a um mês. Quando o jornalista lhe perguntou “Então, como vamos ver-nos livres do racismo”, simplesmente respondeu: “Parem de falar sobre isso Vou parar de te chamar branco e vais parar de me chamar preto. Sou Morgan Freeman para ti, e és Mike Wallace para mim.”
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No final da semana, esperando pelos nossos voos no aeroporto – quatro de nós, pretas e brancas de diferentes origens – estamos a falar de viagens e depois das companhias low cost e dos seus serviços. Uma de nós, preta, conta-nos a história da sua tia que vinha para a Europa com a Easyjet e foi-lhe dito para esperar algures para fazer o check-in, tendo sido “esquecida” propositadamente e obrigada a comprar um bilhete novo. “Estão a ver, é o que fazem aos Africanos”.

Maria Vlachou

 

02.04.2013 | por candela | consciência cultural, Maria Vlachou, racismo, Viena