CARTA A ANGOLA pelos órfãos da associação M27

Compatriotas, irmãs e irmãos angolanosSomos filhos de vítimas do 27 de Maio de 1977. Sofremos todos uma dor incurável, misto de perda, de ausência e de incerteza sobre as condições em que os nossos pais perderam a vida.Vivemos toda a nossa vida ou grande parte dela privados da companhia dos nossos pais. Alguns de nós tiveram ainda o privilégio de privar com os pais, de experimentar a sensação única e insubstituível de viver o amor paternal. De aprender pela sua mão a andar, a correr, a nadar, a enfrentar os medos e os perigos…Outros conhecem os pais apenas por fotografias, algumas tão antigas e desbotadas que não se consegue reconstituir os traços da sua fisionomia. Nunca ouviram a sua voz, nem tiveram a sorte de conviver com eles na infância ou na idade adulta. Os nossos pais não puderam aconselhar-nos sobre os nossos percursos académicos, sobre as nossas escolhas profissionais, sobre as mais importantes decisões que tivemos de tomar na vida.Também não puderam conhecer os nossos filhos.

Foram bruscamente arrancados de nós, quando pensavam estar a construir um país digno e próspero para todos nós, os seus filhos e os filhos de todos os outros pais.

Mesmo não tendo privado com eles, mantivemos sempre intacto, sempre vivo, o amor pelos que nos deram a vida. Cremos ser isso que qualquer pai espera dos filhos.Sabemos que eram nacionalistas. Que devotaram os seus melhores anos à luta por uma Angola independente, onde todos os angolanos, livres e iguais, pudessem ter uma vida digna, com acesso à educação, à saúde, ao trabalho e a pão para colocar na mesa dos filhos. Uma Angola verdadeiramente independente em que coubesse um lugar para todos. Muitos deles sofreram na pele a repressão da polícia política do colonialismo, a PIDE, e enfrentaram a prisão e o degredo, por lutarem pela liberdade e pela independência do nosso povo.

São Paulo, São Nicolau, Tarrafal, são nomes de cadeias e de campos de concentração que associamos à sua vida de militantes anticolonialistas e combatentes da liberdade.Nunca compreendemos como foi possível serem presos, torturados e sumariamente executados, sem direito a um julgamento justo e imparcial, na Angola independente que ajudaram a construir…

Há seguramente ainda muito por desvendar sobre o que aconteceu no dia 27 de maio de 1977, sobre os acontecimentos que o precederam e sobre a barbárie que se lhe seguiu​​.Todos nós fomos condenados a viver como filhos de sombras. De nomes que não se podia pronunciar em voz alta, sob pena de se ser considerado inimigo da nação. De almas cujos corpos as famílias não mais viram e cujos restos mortais jazem depositados em lugares que fomos privados de conhecer. Nunca pudemos dar uma sepultura digna aos nossos pais, como corresponde aos nossos costumes e qualquer filho quer fazer.As nossas mães, viúvas que nunca viram nem receberam os cadáveres dos companheiros, conheceram a perseguição, o opróbrio, o ostracismo e, em alguns casos, foram condenadas à miséria.

Muitos de nós enfrentaram sérias dificuldades adicionais, por serem filhos de mortos à mão de um Estado que se recusou a reconhecê-los e, por isso, nunca emitiu as certidões de óbito. Vivemos anos e anos num limbo…Porém, subitamente, há ano e meio, vimos uma luz no fundo deste longo túnel e essa luz trouxe esperança para muitos de nós.

O Presidente João Lourenço, pela primeira vez na história de Angola independente, reconheceu os excessos do Estado nos acontecimentos que se seguiram ao 27 de maio, prometeu justiça e dignidade para os mortos, paz e reconciliação entre os vivos.

Admitiu publicamente as mortes de cidadãos às mãos do Estado, comprometeu-se com a emissão das correspondentes certidões de óbito, a identificação e entrega dos restos mortais às famílias, para a realização das exéquias fúnebres.

Esse gesto, olhado inicialmente com desconfiança, por ser inédito, por ter lugar em ano anterior ao de eleições, porque esperámos tanto tempo que já tínhamos desesperado, acabou por ser reconhecido por todos nós como o primeiro sinal genuíno de busca pública da VERDADE e de intenção de reconciliação. Foi criada uma comissão, sob a égide do Ministro da Justiça – A CIVICOP – que ficou encarregue de dar execução aos procedimentos necessários à execução do programa definido pelo Presidente da República.

Questionámos sempre a metodologia seguida pela CIVICOP – porque envolvia pessoas intimamente ligadas à repressão em Maio de 1977, que nenhum interesse terão na reposição da verdade; porque não incluiu representantes das vítimas; porque nunca tornou claros os procedimentos que estava a seguir na localização e identificação dos cadáveres.

Paralelamente, foi criada toda uma máquina de propaganda que poderia garantir tudo, menos um trabalho rigoroso e um resultado sério. Foram exibidas na televisão imagens de um técnico brasileiro com um aparelho que serviria para localizar corpos; imagens de equipamentos semelhantes a retroescavadoras, que estariam no local a remover restos mortais; chegou-se ao ponto de anunciar publicamente a possível localização de cadáveres de pessoas cujos nomes foram publicitados nas televisões, enquanto se exibiam esqueletos humanos, reavivando sentimentos de profunda comoção e sofrimento nas famílias.

Ouvimos pronunciar o nome dos nossos pais e o de pais de companheiros nossos, órfãos também na sequência daqueles massacres. Ali estavam os restos mortais, que encerrariam um capítulo da história.Foram entregues corpos em cerimónias públicas amplamente televisionadas, em véspera de eleições presidenciais. Foram realizadas cerimónias fúnebres. O país viu. Todo o país viu e viveu esse momento como um tempo de verdade e reconciliação.Porém, nem todos recebemos acriticamente os restos mortais que nos foram indicados como pertencentes aos nossos pais. Alguns de nós pediram a realização de testes de ADN para confirmar a identidade dos cadáveres.

E foi com espanto e dor que feitos os exames se concluiu que NENHUMA das amostras corresponde à de cadáveres dos nossos pais…!Incrédulos, perguntamos porquê que nos fazem isto? Porquê que nos fizeram isto? Não chegou terem-nos imposto uma vida familiar amputada, sempre marcada pela tristeza da perda dos nossos pais? Não bastou o Estado ter demorado mais de 40 anos – mais do que a idade da maioria das vítimas – para tentar assegurar às vítimas o direito à identidade?

Objetivamente, aquilo a que assistimos foi um exercício de crueldade, em que se reavivaram gratuitamente sentimentos de perda, de dor e de mágoa, com objetivos que nada têm de nobre. E se nenhum dos restos examinados corresponde às pessoas a quem se disse pertencerem, o que se passará com os restos mortais já entregues às famílias e enterrados sem exames prévios?

As autoridades dirão agora que foi um erro. Um engano que pode ser reparado, com novas pesquisas e indagações.E nós perguntamos: Quantas mais pesquisas e indagações serão necessárias para se chegar à verdade? Quantas mais amostras de cadáveres nos serão entregues, em vão?A VERDADE – sabemo-la todos – é que estão vivos e identificados muitos dos responsáveis e participantes na repressão. E a questão que colocamos, legitimamente, é a de saber porquê que, com total transparência, essas pessoas não são chamadas a indicar, sob juramento, os locais onde foram enterrados ou lançados os corpos a que tiraram ou mandaram tirar a vida.45 anos é tempo suficiente para se encarar a VERDADE e para o País enfrentar os seus traumas.

A VERDADE ilumina e reconcilia.

A VERDADE não é apenas um direito nosso enquanto filhos, ou um direito das famílias. A VERDADE é um imperativo nacional. Não conseguiremos ultrapassar esta tragédia e aprender com ela se continuarmos a recusar-nos a enfrentar verdadeiramente os factos.E é por ser este o nosso convencimento que vimos publicamente exprimir a decepção com todo este processo e nos dirigimos ao povo angolano e ao país pedindo que se una na busca da VERDADE, porque esta é a única que nos pode verdadeiramente permitir acertar contas com o passado e construir um futuro liberto de mágoas e de ressentimentos.

Os órfãos da associação M27

23.03.2023 | por martalanca | 27 maio 1977, angola, morte, MPLA, reparação, repressão

Descentrar o Império, Reparar o Futuro

Programa integrado no Ciclo Impérios com curadoria de Liliana Coutinho. Curadoria da sessão: Inês Beleza Barreiros, Patrícia Martins Marcos, Pedro Schacht Pereira e Rui Gomes Coelho

04 NOV 2022 16:00 – 18:00: Descentrar o Império

Em contexto português, as visões mais críticas do colonialismo centraram o seu estudo no último ciclo imperial, no período contemporâneo, também chamado de “império Africano”. Até tempos recentes, esta dinâmica tem sido pautada pelo pouco envolvimento com a história do imperialismo moderno, enclausurando o seu estudo em visões nacionalistas, ancoradas no protagonismo narrativo do espaço e dos agentes da metrópole portuguesa. Ao tomar Portugal como epicentro da história, o contributo de processos e agentes não-metropolitanos tem sido minimizado sistematicamente. No ano em que se assinalam os 200 anos da independência do Brasil, esta mesa-redonda procura densificar a perspetiva histórica a partir de um olhar de longa duração sobre a formação do maior país da América Latina, considerando processos de dimensão transoceânica e trans-hemisférica. Deste modo, é lançado um desafio a paradigmas historiográficos de feição lusotropicalista e que, teimosamente, continuam a sobreviver à implantação da democracia tanto no Brasil, como em Portugal.

Luiz Felipe de Alencastro, Escola de Economia de São Paulo/FGV e Sorbonne Université

Patrícia Martins Marcos, University of California, San Diego

Victor de Barros IHC, Universidade Nova de Lisboa

Moderação: Pedro Schacht Pereira, The Ohio State University

18:30 – 20:30: Reparar o Futuro

A história do império é inevitavelmente a história das reparações. O labor das reparações começou no momento de expropriação e nunca realmente terminou. Não se trata apenas de acautelar os direitos dos descendentes de espoliados e escravizados, trata-se também de interromper a renovação dessa violência inicial e assegurar o direito a um mundo plural e diverso. Nesta mesa pensa-se a questão das reparações históricas, a partir do contexto português, em articulação com os debates que ocorrem noutros contextos, nomeadamente os da memorialização da Escravatura, da restituição de objetos, do desmantelamento de estátuas racistas ou da produção de contra arquivos.

Ana Lucia Araujo, Howard University

Cristina Roldão, Escola Superior de Educação de Setúbal

Rui Gomes Coelho, Durham University

Moderação: Inês Beleza Barreiros, ICNOVA, FCSH-UNL

28.10.2022 | por martalanca | colonialismo, império, memória, Portugal, reparação

Memória pública da escravidão e reparações: um debate internacional com uma história longa e atual

MESA-REDONDA + CONFERÊNCIA I  18 de março de 2019, 09h30 I  Sala 1, CES | Alta

Esta iniciativa, no âmbito do programa de doutoramento de Patrimónios e com a colaboração do projecto CROME e do programa de doutoramento de “Pós-Colonialismos e Cidadania Global”, visa apresentar o trabalho da historiadora Ana Lúcia Araújo a que seguirá um espaço de pergunta e resposta, sobre a história das reparações da escravatura no longo curso e de um ponto de vista global.

A conferência será precedida de uma mesa-redonda que versará sobre “História e legados da questão colonial na sociedade portuguesa”, onde participarão os investigadores do CES: Miguel Cardina, Bruno Sena Martins, Marta Araújo, Raquel Lima e José Pedro Monteiro. Também esta mesa redonda terá um breve espaço de interacção com o público. Moderação: Walter Rossa.

Nota biográfica
Ana Lúcia Araújo: “I am a social and cultural historian, working on the history and public memory of the Atlantic slave trade and slavery and their social and cultural legacies. I was born and raised in Brazil. I completed a BA in Fine Arts in 1995 (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) and an MA in History of Brazil in 1997 (Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). Trained as a historian and as an art historian, I obtained a PhD in Art History in 2004 (Université Laval, Canada) and a PhD in History and Social and Historical Anthropology (Université Laval and École des Hautes Études en Sciences Sociales) in 2007.

In the last fifteen years, I authored and edited over ten books and published nearly fifty articles and chapters on these themes. I have lectured in English, Portuguese, French, and Spanish in the United States, Canada, Brazil, Argentina, France, England, Portugal, Germany, the Netherlands, and South Africa. Currently, I am Professor of History at the historically black Howard University in the capital of the United States, Washington DC.

In 2017, I was honored to join the International Scientific Committee of the UNESCO Slave Route Project. I am also a proud member of the Editorial Board of the British journal Slavery and Abolition and of the Editorial  Board of Black Perspectives.  Currently, I am the editor of the book series Slavery: Past and Present, by Cambria Press and a member of the Executive Committee of the Brazilian Studies Association, the most important association of Brazilian studies in the world.

My most recent book is Reparations for Slavery and the Slave Trade: A Transnational and Comparative History. The book examines from a transnational perspective the history of the demands of reparations for slavery and the slave trade in the Americas, Europe, and Africa.

Over the last years, I published a number of books. Brazil Through French Eyes: A Nineteenth-Century Artist in the Tropics (2015) is a revised, updated, and expanded English version of my book Romantisme tropical (2008). I explore the idea of “tropical romanticism,” a vision of Brazil with an emphasis on the exotic. I examine the travelogue Deux années au Brésil by the French artist François-Auguste Biard, by situating his work in the context of the European travel writing of the time. The book shows how representations of Brazil through French travelogues contributed and reinforced cultural stereotypes and ideas about race and race relations in Brazil.

My book Shadows of the Slave Past: Memory, Heritage and Slavery (2014) examines the processes that led to the memorialization of slavery and the Atlantic slave trade in the second half of the twentieth century. I explore numerous kinds of initiatives such as monuments, memorials, and museums as well as heritage sites. By connecting different projects developed in  Europe, Africa, and the Americas during the last two decades, I discuss how different groups and social actors have competed to occupy the public arena by associating the slave past with other human atrocities, especially the Holocaust. I look at how the populations of African descent, white elites, and national governments, very often carrying particular political agendas, appropriated the slave past by fighting to make it visible or conceal it in the public space of former slave societies.”

Organização: Programas de Doutoramento «Patrimónios de Influência Portuguesa» e «Pós-Colonialismos e Cidadania Global», Camões - Instituto da Cooperação e da Língua e projetos de investigação «CROME - Memórias cruzadas, políticas do silêncio: as guerras coloniais e de libertação em tempos pós-coloniais» (ERC Starting Grant 715593) e «Os mundos do (sub)desenvolvimento: processos e legados do império colonial português em perspectiva comparada (1945-1975)».

01.03.2019 | por martalanca | Ana Lúcia Araújo, escravidão, reparação