Uma criança à janela disparando uma pistola de plástico

Começa assim o último livro da escritora sul-africana Nadine Gordimer, No Time Like the Present: “Houve uma Era do Gelo, uma Era do Bronze, uma Era do Ferro. Parecia que uma Era tinha terminado. Certamente, nada menos do que uma Nova Era, em que a lei não é promulgada em pigmento e qualquer pessoa pode viver, viajar e trabalhar em qualquer sítio num país como se fosse dela. Algo com o título convencional de  “Constituição” abriu estas portas de par em par. Só um vocabulário grandioso pode dar esse sentido aos milhões que não tinham reconhecido os direitos que estão sob a palavra Liberdade. As consequências são imensas nos aspetos das relações humanas que costumavam ser restringidas por decreto.”

Seria difícil encontrar uma forma mais breve e simultaneamente mais clara para definir o estado actual da África do Sul, 23 anos depois da libertação de Nelson Mandela, 19 anos depois do fim do apartheid e da eleição do primeiro negro como Presidente desta república fundada por ingleses, colonizada por holandeses, com 50 milhões de habitantes, 11 línguas oficiais, com uma elite intelectual sofisticada, uma tecnologia de vanguarda na Medicina (lembremo-nos do primeiro transplante de coração feito pelo cirurgião Dr. Christiaan Barnard em 1967), na Biologia, na Astronomia, sujeita durante 46 anos a um regime segregacionista e renascida desse período inumano da sua história com um líder que se tornou uma referência mundial como líder político e, sobretudo, como a referência mais humanista ao fundar uma nova ética baseada na possibilidade efectiva do perdão, constituindo todo o processo de reconciliação e de justiça através do lema “Perdoar, mas não esquecer” .

Contudo, a par desta Era de que fala Nadine Gordimer, uma outra se desenha no presente; na verdade, os mais pessimistas consideram que ela já se iniciou embora para os mais optimistas ela esteja apenas a anunciar-se, sendo ainda possível contê-la. Trata-se da Era do Apocalipse.

Não é novidade que um país é uma constelação de cidades: metrópoles, cidades pequenas ou de média dimensão, todas elas ligadas entre si por sinapses que são os transportes, meios para deslocar pessoas e produtos de outro modo distanciados nos seus modos de vida, na sua riqueza, na sua vocação que pode ser mais globalizante ou mais provinciana. É assim também na África do Sul.

Joanesburgo, a capital financeira e cultural da África subsariana, é a cidade do frenético espírito empreendedor, dos investimentos nacionais e transnacionais, dos homens e mulheres sem medo de investir e de arriscar, dos artistas sem medo de experimentar, etc. Todos eles, porém, com medo de não fechar o portão, com medo de não fechar a janela, com medo de parar no semáforo vermelho. Joanesburgo é uma capital do medo. E uma das poucas capitais no mundo que não tem nem rio nem lago, que não está cercada por nenhum oceano.

Joanesburgo, fotografia de Marta Lança Joanesburgo, fotografia de Marta Lança

Sobre essa secura foi construída a cidade que detinha no seu subsolo o brilho dos diamantes e dos metais raros. Para isso, a essa secura juntou-se a energia da população que o fim do apartheid permitiu misturar: negros, indianos, brancos, paquistaneses, mulatos. Com o fim do apartheid não chegou o fim da pobreza ou a diminuição do enriquecimento obsceno de muitos; afinal, a cidade nasceu dos minerais preciosos, nasceu dividida entre os explorados e os exploradores e hoje divide-se entre os muitos ricos, os ricos, os pobres e os muito pobres.

Claro que existem duas cidades em Joanesburgo. Das seis da manhã às cinco da tarde, quatro milhões de habitantes agitam-se num formigueiro constante. Das cinco da tarde ao amanhecer, pouco mais de três milhões de habitantes estão silenciosos, acantonados nas suas casas. Nas ruas vivem os deserdados que se lutam por comida, por um cartão para dormir, por uma presa para assaltar. Os que trabalham chegam a passar 14 horas fora de casa, entre o percurso para o emprego e o regresso do emprego. Assim, filas de gente ocupam a cidade, filas gigantescas de trabalhadores à espera dos transportes, pedindo boleia ou caminhando apressados pelas ruas, já que a rede de transportes públicos não é funcional, apesar de algumas melhorias feitas aquando do Mundial de Futebol.

Durante o dia Joanesburgo tem mais um milhão de habitantes que durante a noite. Pese embora os 24, 5% de desempregados na África do Sul, segundo as estatísticas oficiais. Mas a percepção é de que este número seja o dobro. E muitos destes quatro milhões de pessoas, não tendo trabalho, ocupam o espaço público porque têm de estar em movimento; é assim na mentalidade calvinista que enforma parte da cultura do colonizador: a ideia de que o trabalho dignifica e honra o homem e é por ele que o homem tem razão de ser. Não fazer nada revela não só uma atitude não-produtiva como também rebelde, pelo que deve desenvolver em quem não trabalha um sentimento de culpa e de incapacidade. Não ter trabalho, neste contexto, é da responsabilidade individual, mesmo para os desempregados.

discoteca Joburg na Cidade do Cabo, fotografia de Marta Lança discoteca Joburg na Cidade do Cabo, fotografia de Marta Lança

Daí que a cidade, ao domingo, dia em que o lazer é permitido, seja a cidade livre. Os restaurantes e as lojas estão fechados, os transportes são ainda mais raros, o tráfico é mínimo, as ruas principais estão desertas. Mas os parques estão cheios de pessoas. Nada disto evita que o crime continue.

Um recente anúncio num jornal sul-africano apresentava uma jovem fechando a porta de casa com cinco fechaduras; a legenda dizia: “Se isto não for suficiente, faça o seu seguro de vida”. Este anúncio da real possibilidade do crime é uma paradoxal normalidade, como o são as grades nas portas dos prédios e, dentro dos prédios, nas portas dos apartamentos e, dentro dos apartamentos, nas janelas. Como é normal os quartos terem alarmes. Ou que seja preciso atravessar três portões e o mesmo número de seguranças para ir jantar a um restaurante no centro de Joanesburgo. A diferença entre estacionar o carro a 5 ou a 10 metros de casa pode ser a diferença entre não ser ou ser assaltado. E assim também os condomínios crescem nos subúrbios como fortificações, na mesma proporção em que cresce a indústria de segurança privada.

Todo o exército e a Polícia sul-africana não totalizam o número de guardas privados registados pelas 9000 empresas de segurança existentes. É esse o maior exército no país, com mais de 400 000 “guardas” que usam diferentes fardas e respondem a patrões privados, não ao Estado. Este o espelho pervertido da criminalidade, mas também da ausência de um investimento estatal na Polícia, apesar de toda a retórica contra o crime.

Kalahari, fotografia de Marta Lança Kalahari, fotografia de Marta Lança

A democracia e o ANC (Congresso Nacional Africano — na verdade uma coligação de partidos e sindicatos), tendo sido o Partido que melhor encarnou a justiça social, a igualdade e a fraternidade, não foi capaz de acabar com a criminalidade, de criar emprego e de distribuir mais equitativamente a riqueza nacional.  O ANC é, por isso mesmo, a grande decepção do que teria sido uma boa política de esquerda em África.

Representando, em 1994, os 80% da população que não cumprira, no tempo do apartheid, um requisito simples – ter a cor de pele certa —, o ANC foi eleito e a sua agenda contemplava não a rebelião mas a construção e a governação. Era também o Partido da justiça social, da igualdade e da fraternidade. Não tendo herdado esses valores directamente de uma Revolução francesa, não tendo um ideário de paz universal Kantiano ou um iluminismo, tinha todavia recebido destes movimentos europeus o seu lado mais indiferente ao colonialismo — e teve manifestos de liberdade e de justiça como os de Franz Fanon, ideários como os de  Willian E. B. Du Boi, Amílcar Cabral,  Cheikh A. Diop, Julius Nyerere, entre outros.

O ANC conhecia o sentimento de um ser humano ficar sem a sua língua, sem um lugar, sem identidade, caso não fosse branco. Porém, e como em outras situações e depois de passado o sonho revolucionário dos anos de Mandela, o ANC apropriou-se do Estado e optou por se confundir com ele, conforme afirmam os seus críticos, de Desmond Tutu a Mamphela Ramphele (ex-activista do ANC que fundou um novo Partido político — o Agang, que significa “Construir” na língua Sesotho e que concorre às eleições de 2014 com o objectivo de fazer frente ao ANC que, segundo a sua líder, está a destruir a maior economia do continente africano). Mas o Partido carrega de tal forma os seus trunfos de um passado de luta que ainda continua a ter um lugar exclusivo na sociedade sul-africana, em especial junto da comunidade negra e dos antigos activistas. Apesar dos escândalos de corrupção de que têm sido acusados alguns dos seus líderes, é difícil que toda uma comunidade de gente que construiu a sua cultura a partir do eixo do ANC dele se afaste. Porque, se há muito que o ANC deixou de ser o farol da mudança, na verdade ele é como um velho e outrora glorioso clube de futebol de que os militantes-adeptos não se querem despedir, nem contemplam a hipótese de mudar de clube.

Mas, além da acima referida Mamphela Ramphele, outras opções vão surgindo. Julius Malema, por exemplo, ex-Secretário-geral da Juventude do ANC, expulso do Partido há dois anos acusado de corrupção e de lavagem de dinheiro, anuncia agora a criação de um partido político, The Economic Freedom Fighters (EFF), cujo programa é nacionalizar a Economia sul-africana. De contornos obviamente populistas, segue o estilo de Robert Mugabe e a publicidade, as camisolas e os barretes vermelhos que usava Hugo Chávez.

E é neste apocalipse que surge um teatro de marionetas – a Handspring Puppet Company — que se apropriou dos mitos europeus, de Fausto a Ulisses, tornando-se uma companhia de referência para a cena artística mundial, e que obriga a cumprir todos os protocolos de segurança a quem quiser ir ver a sua última criação num armazém da baixa. E existem escritores como Ivan Vladislavic, existe um novo cinema “colourde”, existe música e dança, sempre muita.

Tudo isto é consequência da energia vital destas pessoas e de uma política comum de autores anónimos em que tudo combina com tudo: o amarelo com o verde, o verde com o azul, o quadrado com o triangular, o redondo com o esquinado, a poesia com o cinema, a tradição xozé com a escultura contemporânea, o gordo com o magro, as lojas de tecidos indianos com os penteados exuberantes das mulheres negras em dias de festa (e os dias de festa são tantos…).

livraria na Cidade do Cabo, fotografia de Marta Lança livraria na Cidade do Cabo, fotografia de Marta Lança

Vindo de Joanesburgo de carro, quase a chegar à cidade de bom gosto que é Cape Town, passa-se ao lado de Khayelitsha, uma township onde vivem 300 mil pessoas, na sua maioria negros. Ali fala-se zulu, xhoza, afrikaner, inglês, suali, etc. Aquelas são as pessoas mais pobres de Cape Town e as que não têm lugar no desenho da Cidade do Cabo. Aquelas pessoas são o seu fantasma permanente, que nenhum político gostaria de ter à porta da sua cidade. Ali, as casas são blocos de argamassa com telhados de zinco e para cada vinte casas há uma retrete pública. Khayelitsha está separada da auto-estrada por muros altos que são verdadeiramente uma fronteira.

A África do Sul está, aliás, cheia de fronteiras. No passado, as fronteiras erguiam-se no apartheid. No presente, há fronteiras visíveis e invisíveis, separando por vezes apenas uma rua de outra. Paralela a uma rua escura, coberta por gente sem-abrigo deitada sobre cartões, outra rua exibe bancos, néons e lojas de comida “muito saudável”. A rua segura pode cruzar-se com a rua onde ser assaltado é o mais provável.

edifício na Cidade do Cabo, fotografia de Marta Lança edifício na Cidade do Cabo, fotografia de Marta Lança Se se discute a questão racial? É um problema académico, e isto porque há ainda uma divisão invisível entre os brancos e os não-brancos da classe média; convivem civilizadamente, mas é muito rígida, forçada a sua coabitação.

Pode dizer-se que o apocalipse de Cape Town é um apocalipse feliz. A segunda maior cidade da África do Sul revela sofisticação nas suas fachadas, casas vitorianas, cenários para filmes western em Woodstock, casas coloridas no bairro muçulmano Waterkant ou de decoração afro na Longstreet. Tem o privilégio de – como o Rio de Janeiro ou Hong Kong — ter sido construída em plena beleza natural: de frente para o oceano azul, de costas para essa escultura natural que é a Table Mountain. Aqui apetece viver para sempre. Tudo parece fácil: as pessoas vestem-se informalmente, os contactos são fáceis, o tráfego é intenso porém organizado, o mar está perto, está perto a montanha, há o apelo a caminhadas e a uma vida saudável. Depois, é certo que no meio do trânsito uma criança à janela do carro dispara balas invisíveis de uma pistola de plástico sobre os transeuntes.

Também aqui as armas estão sempre presentes na vida da cidade: as armas, os cadeados, os vidros cortantes sobre os muros, as trancas nas portas dos estúdios dos artistas — e é vê-los, a eles, artistas, a criar algumas das obras mais incontornáveis da cena artística contemporânea. É ver os cineastas a fazer um novo cinema sul-africano ancorado nas contradições do país, na memória ancestral. É ver a história recente da pop sul-africana, ou da moda colorida tão bem documentada nas fotos de Lolo Veleka.

Para chegar a Cape Town vindo de Joanesburgo são três dias de viagem de carro atravessando savana, pernoitando em bed and breakfasts dirigidos por famílias afrikaners, rolando por estradas que parecem infindaveis, subindo montanhas e desfiladeiros, passando pelas várias cataratas, pelo Blyde River Canyon, por God’s Window , o desfiladeiro que termina nas nuvens. A estrada, como é em forma de serpentina, serpenteia por entre floresta e depois estepe rasteira e seca até alcançar o Blyde River Canyon, um dos maiores do mundo. Faz-se, em seguida, a descida para a planície, vendo os campos cultivados, as hortas de floricultura, as vinhas Stellenbosch. Tudo parece sereno.

Paul Theroux, que fez essa viagem mítica do Cairo a Cape Town, escrevia que em África a paz existe na natureza e o perigo só vem nas cidades. De facto, basta chegar a um lugarejo para que todos os sinais de alarme apareçam. É aqui que a bestialidade pode acontecer e vinda de qualquer raça.

Como na obra Desgraça de JM Coetze, em que pai e filha são assaltados, o pai é sovado e a filha violentada numa pequena casa no meio do campo e a filha fará queixa à Polícia do roubo e do assalto mas não da violação de que resultou uma gravidez e o nascimento de uma criança. Como o militante que não quer deixar o ANC para não ficar órfão, também aquela filha quer dar à luz porque lhe é insuportável a orfandade do violador. E é porventura essa recusa da orfandade o que tem adiado a Era do Apocalipse na África do Sul.

 

Uma versão mais curta deste texto foi publicada no suplemento Ípsilon do jornal Público no dia 22 de Novembro e esta versão no site do Próximo Futuro.

por António Pinto Ribeiro
Cidade | 27 Novembro 2013 | Africa do Sul, cidade, Joanesburgo, racismo, segurança