No te ne kemin

No te ne kemin, em crioulo estamos a caminho, centra-se num estudo partilhado sobre uma metodologia de actuação em assentamentos informais na cidade do Mindelo, Cabo Verde, nomeadamente no Alto de Bomba e suas áreas anexas, elaborada com os alunos do primeiro ano das disciplinas de Antropologia do Espaço e Teoria Geral de Organização do Espaço dos cursos de Design, Artes Visuais e Arquitectura do M_EIA – Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura.

Após um trabalho de cartografia crítica, previamente elaborado na Ilha da Madeira - outra área da cidade - onde se consolidou uma base teórica sobre o tema, ampliou-se o campo de actuação ao recorrer-se a uma estrutura educativa aberta e experimental, que se propõe a desafiar as gerações mais jovens a construir um pensamento divergente do “main stream” e a perseguir novas utopias.

Esta experiência permitiu, ainda, reflectir sobre a política de habitação popular de Cabo Verde, bem como, sobre a pertinência de testar a utilização de metodologias de intervenção urbana nas suas áreas informais, já experimentadas nas favelas do Rio de Janeiro.

O M_EIA e os assentamentos informais do Mindelo 

Situado num arquipélago localizado no Oceâno Atlântico, entre Europa, África e América do Sul, Cabo Verde é constituído por nove ilhas habitadas, Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Sal, Boavista, Maio, Santiago, Fogo, Brava e uma desabitada, Santa Luzia.O M_EIA, Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura, foi fundado em 2004, permitindo ao Atelier Mar, organização não governamental promotora do M_EIA, registar e evoluir um campo de acção e pesquisa nas áreas do Design, das Artes Visuais e da Arquitectura.

No ano lectivo de 2014/2015, decorridos dez anos de vigência dos cursos de Design e de Artes Visuais e um ano do curso de Arquitectura, o M_EIA propõe-se a uma mudança no seu modelo de gestão curricular e administrativa para melhor se alinhar com os desafios futuros. A nova fase organiza os cursos sob um formato designado por Campos de Estudo (CE), a iniciar no mesmo ano lectivo, por um período experimental de dois anos, no qual se propõe a existência de três CE que podem aglutinar diferentes disciplinas e se organizar em três diferentes unidades de estudo: teórico-cientifico, artístico e tecnológico.[1]

Para a implementação de uma metodologia centrada no desenvolvimento endógeno capaz de se sustentar nas características ecológicas, culturais, históricas, humanas e políticas da sociedade a investigação aplicada torna-se central, porém, a cidade do Mindelo assume-se como o laboratório onde os projectos são executados. Urge salientar, conforme explicado no capítulo anterior, que o seu território tem sido palco privilegiado para a génese de assentamentos informais que, em países latinoamericanos como o Brasil, abriram caminho a alicerçar a cidade partida. (Ventura, 1991).

Continuando o estudo dos assentamentos informais do Mindelo, já abordado noutros trabalhos desde o ano lectivo de 2011/2012, sobretudo na área de Alto de Bomba, subjacente a um dos bairros mais populosos da cidade, Montessossego, o ano lectivo de 2014/2015 aprofunda o tema, através de um exercício de mapeamento colectivo na Ilha da Madeira e de um exercício metodológico para actuação urbana em assentamentos informais. Ambos os trabalhos, para melhor interpretar o formato dos CE, associam diferentes disciplinas dos três cursos e constituem o tema base de debate da M_EIA Semana do Urbanismo que permite uma discussão alargada durante três dias entre a comunidade escolar e os diferentes actores sociais.

Da Ilha da Madeira ao Alto de Bomba: outro caminho para a política pública de habitação popular das cidades caboverdianas

Tanto o crescimento territorial das cidades cabo-verdianas, como o demográfico de Cabo Verde, acompanharam a tendência das cidades africanas, provocando a proliferação dos assentamentos informais e a descontinuidade do tecido urbano e das infraestruturas, entre núcleos consolidados e periferias onde se concentra uma parte significativa da população dos principais aglomerados, Mindelo e Praia. Como no Brasil, Chile ou Colômbia, interpretar estas áreas de forma a melhor as conectar com a cidade formal, procurando uma maior equidade urbana, exige conceber intervenções que incluam a produção de novas formas de pensar a habitação e o urbanismo. 

No arranque da segunda década do sec. XXI, momento de grande incerteza fruto da crise económica mundial, em Cabo Verde torna-se imperativo reflectir sobre o seu futuro económico, social, político e urbano, procurando novas estratégias, apoiadas por um pensamento crítico sobre a cidade, que visem garantir um espaço de produção, consumo, trocas culturais e convívio, saudável e seguro para todos.

À M_EIA Semana do Urbanismo, após concluídos os trabalhos a seguir apresentados, coube o desafio de, com a participação dos alunos do primeiro ano, lançar um olhar sobre o recente crescimento dos assentamentos informais das cidades cabo-verdianas, especificamente da cidade do Mindelo, contribuindo assim para pensar o seu papel e o seu futuro. Para isso, estruturou-se o período lectivo das disciplinas do primeiro ano de Antropologia do Espaço e de Teoria Geral de Organização do Espaço[2], tendo como base os seguintes trabalho académicos:

  • construção de mapas críticos sobre a área da Ilha da Madeira no bairro de Ribeira Bote;
  • construção de uma metodologia de intervenção urbana para Alto de Bomba e suas áreas anexas.

O bairro de Ribeira Bote, onde se localiza toda a área da Ilha da Madeira, constitui uma das primeiras extensões urbanas dos primórdios da cidade do Mindelo. Actualmente, encontra-se muito conectado com o centro histórico e cercado pelas vias de maior tráfico. Ao longo do tempo, abrigou uma população cuja actividade económica principal se associou à pesca e aos trabalhos portuários. É um bairro consolidado, com relativas carências no padrão construtivo das moradias, mas com um enorme potencial de capacitação. Assim, a área da Ilha da Madeira, nomeadamente a Rua de Salga Morte[3], foi seleccionada para o trabalho de cartografia crítica devido à já longa fama de zona estigmatizado, à sua condição de reduto de migrantes vindos de outras ilhas e, outrora, de São Tomé e Príncipe, bem como, pela condição de anfitriã da recente actuação efectuada pela Fundação Sonvela[4] que se assume, actualmente, como uma das associações mais actuantes e activas da cidade.

Os trabalhos de cartografia crítica desenvolvidos na Ilha da Madeira, além de objectivarem romper com os preconceitos vigentes, pretendiam extrair de cada um dos cinco grupos de alunos constituídos, através de uma comunicação gráfica livre e por cada um decidida, a construção de mapas mentais e críticos capazes de gerar a elaboração coletiva de narrativas e interpretações que refletissem as lógicas e processos instalados.  

Aula na Ilha da Madeira, Foto Nuno Flores 					           Aula na Ilha da Madeira, Foto Nuno Flores

Este tipo de representação (mapas mentais), provém de trabalhos participativos com objectivos e resultados diversos. Essa ferramenta consolidou-se pelo trabalho de organizações sociais, ONG`s e fundações, em contexto rural ou urbano, sobretudo em países da América do Sul. (Iconoclassistas, 2013).

Aula no M_EIA, Foto Nuno Flores              			         Aula no M_EIA, Foto Nuno Flores

Assimilado e concluído o trabalho, considerou-se adquirida uma nova interpretação sobre a representação social, física e identitária do lugar, tanto por parte dos moradores, como por parte dos alunos. A opinião da aluna Catherine Borja, quando entrevistada pela Radio Cabo Verde, na inauguração da exposição dos trabalhos que abriu a M_EIA Semana do Urbanismo, “…ir à Ilha da Madeira, despiu-me de preconceitos…”, reflectiu estar o grupo preparado para desenvolver a metodologia de intervenção urbana para Alto de Bomba e suas áreas anexas. Importa salientar que no programa inicial que havia sido desenhado, previa-se apenas elaborar um levantamento expedito do seu tecido antropológico, físico, social. No entanto, o desempenho apresentado pelo grupo e a apreensão dos conteúdos revelada até aqui suscitou alterar os objectivos e propor elaborar a já referida metodologia de intervenção.

Devido ao elevado grau de complexidade da área em estudo, à exiguidade temporal e ao conhecimento das metodologias de trabalho em favelas no Rio de Janeiro, juntou-se ao grupo o arquitecto urbanista Manoel Ribeiro, coautor deste artigo e autor vários projectos de referência de reabilitação urbana de favelas em cidades brasileiras. Além de presente na sala de aulas, constaria também como palestrante na M_EIA Semana do Urbanismo, cujo programa apresentou a seguinte estrutura:

  • exposição dos trabalhos de cartografia crítica realizados na Ilha da Madeira, bairro de Ribeira Bote;
  • ciclo de conferências e mesa redonda sobre assentamentos informais em Cabo Verde e no mundo, abordando aspectos da área técnica, politica e cidadã[5];
  • apresentação da metodologia de intervenção urbana, realizada no Alto de Bomba e suas áreas anexas.

O Bairro de Montessossego, onde se ubica a área de Alto de Bomba, representa uma extensão mais tardia da cidade que data dos anos 60 e que, neste momento, constitui um dos bairros mais populosos da cidade com 5102 habitantes.[6]. A sua topografia possibilitou a génese de assentamentos informais onde é inexistente qualquer infraestrutura urbanística e levou ao aparecimento de uma tipologia urbana e habitacional igualmente precária. Nos seus limites localizam-se áreas com identidades diferenciadas como Alto de Bomba, Cavoc Brumedje, Cova, Alto de Caixa de Água, entre outros.

Deste modo, ressalva-se que a parcela seleccionada para área de estudo é apenas uma delimitação arbitrária, determinada pelo prazo exíguo e pelas possibilidades oferecidas por três estágios diferentes de consolidação, a partir da franja da cidade formal. Numa intervenção futura e realizável, exigir-se-á considerar aspectos históricos e antropológicos que permitam entender, com mais rigor, o seu processo de fundação[7] e desenvolvimento.

Iniciados os trabalhos, introduziram-se os conceitos teóricos sobre o significado dos “assentamentos irregulares” e sobre o facto desta denominação não considerar a sua gênese e razão de ser, focando somente a questão da não observação das regras legais estabelecidas para a cidade formal. Nesse quadro teórico ressaltou-se que estes assentamentos representam a expressão urbanística de uma dívida social histórica e, hoje, são parte das estratégias de sobrevivência dos mais pobres, que não conseguem encontrar no mercado soluções habitacionais adequadas às suas condições específicas. 

Assim, definiram-se os seguintes princípios metodológicos:

  • identificar as tipologias de problemas e de deficiências recorrentes: infraestruturais, habitacionais, geológicas e topográficas;
  • verificar a adequabilidade das soluções adotadas nas áreas mais consolidadas e suas possibilidades de melhoria e de replicação em áreas em fase de consolidação ou a consolidar;
  • verificar a possibilidade de prestar assistência técnica aos moradores, para implantação das melhorias urbanísticas e habitacionais pretendidas, bem como recuperar as suas práticas culturais e aperfeiçoar as suas aptidões profissionais.

Nas primeiras aulas em campo, treinou-se o olhar dos alunos para identificar detalhes de pequena ou grande escala, nos diversos aspectos setoriais: práticas construtivas; tipologias habitacionais; materiais utilizados e formas de implantar as habitações; características naturais como linhas de águas e seus caminhos ou áreas de risco; e graus de consolidação urbanística, entre outros.

À esquerda Aula no Alto de Bomba, Foto Manoel Ribeiro, À direita Estética e identidade das habitações, Foto Bruno Oliveira À esquerda Aula no Alto de Bomba, Foto Manoel Ribeiro, À direita Estética e identidade das habitações, Foto Bruno Oliveira À esquerda Tipologia habitacional de moradores vindos de Santo Antão, Foto Manoel Ribeiro À direita Blocos de betão em muros de suporte, Foto Bruno Oliveira                                                                   À esquerda Tipologia habitacional de moradores vindos de Santo Antão, Foto Manoel Ribeiro À direita Blocos de betão em muros de suporte, Foto Bruno Oliveira À esquerda Blocos de betão em stock na construção de moradias, Foto Nuno Flores À direita As árvores e suas sobras são valorizadas nos espaços públicos, Foto Manoel RibeiroÀ esquerda Blocos de betão em stock na construção de moradias, Foto Nuno Flores À direita As árvores e suas sobras são valorizadas nos espaços públicos, Foto Manoel Ribeiro

Nem bem concluída a análise física, já se identificavam vestígios de manifestações culturais locais, fragmentos de tradições populares - velhas e novas – e trajetórias pessoais que iam revelando a origem dos moradores.

 O Hiphop - manifestação cultural emergente, Foto Bruno Oliveira O Hiphop - manifestação cultural emergente, Foto Bruno Oliveira

De acordo as actuações do M_EIA na ilha de Santo Antão, estudou-se o território partindo da identificação dos problemas recorrentes: criando soluções urbanísticas de baixo custo, empregando tecnologias de domínio público capazes de utilizar a mão de obra local. No plano imaterial, fomentou-se apoiar a recuperação e/ou o desenvolvimento dos acervos culturais tradicionais encontrados, como o grupo de tamboreiros que aceitou promover a criação de uma escola de música para crianças do Alto de Bomba, dando continuidade à tradição do São João. Fomentou-se igualmente a preservação dos acervos culturais contemporâneos emergentes como o hiphop, que se constitui como “mídia” jovem e um instrumento de recolha de preocupações, queixas e anseios, mas também numa alternativa profissional. O esquema seguinte representa os diversos níveis de degradação e consolidação do assentamento:

Área consolidada                          Em processo de consolidação          A consolidar

Esquema de localização de níveis de degradação relacionado com fotos do existente Foto Manoel RibeiroEsquema de localização de níveis de degradação relacionado com fotos do existente Foto Manoel Ribeiro

Constatava-se que o quadro das carências e potencialidades encontrado no Alto Bomba encaixava-se, na generalidade, no curriculum dos cursos do M_EIA. Pouco a pouco, os alunos dominavam o método de observação proposto e criavam alegremente padrões de urbanização adequados aos problemas identificados. Percebiam o paradoxo da concomitância entre a fragilidade organizacional/comunitária e a fragmentação social resultante dos fluxos migratórios identificados (Senegal, Guiné, São Tomé, Angola, Santo Antão e outras ilhas), com a riqueza da diversidade cultural associada. Identificava-se a existência de pequenas áreas de convívio precárias e dispersas, bem como, a importância da sombra como fator de conforto ambiental e, sobretudo, de agregação social, através da prática da micro-sociabilidade. Percebia-se que uma programação de eventos culturais poderia ser determinante na aquisição de um espaço público mais amplo, o que poderia ajudar a criar oportunidades pontuais de geração de emprego nas actividades dominantes: pesca, construção, artesanato e alimentar.

As percepções dos alunos, revelavam estar entendida a dificuldade de relacionamento entre moradores e poder público, no encaminhamento de demandas e sugestões para fortalecer a cidadania e a participação democrática. Revelavam uma rápida sensibilidade para entender os estágios de urbanização, num gradiente decrescente de qualidade, desde o sopé ao ponto mais alto da área em estudo. Percebiam o processo espaço/tempo da sua progressiva ocupação e que o entendimento desse processo, espontâneo e informal, fornece a chave de uma ação de melhoria progressiva das condições urbanísticas e habitacionais de uma comunidade assente numa encosta. Como corolário dessa ideia, despontou o reconhecimento de que a principal carência local era infraestrutural e que os problemas habitacionais poderiam ser corrigidos através de uma assistência técnica que o próprio M_EIA pode prestar.

No quadro analítico que aqui se apresenta, sintetizam-se as potencialidades e características de exclusão, divididas em dois grupos: as físicas, centradas na exclusão, infraestrutural, habitacional e ambiental e as imateriais, centradas na exclusão económica, cultural e comunitária.

Categorias

Problemas

Características

MATERIAIS

Infraestruturais

Deficiências na acessibilidade; saneamento básico (água, esgotos e drenagem); iluminação pública; contenções

Habitacionais

Implantação de casas encaixadas no terreno; ocorrência da casas de lata;

Ambientais

Lançamentos de lixo; terrenos instáveis; áreas públicas escassas e desaparelhadas;

IMATERIAIS

Económicos

Capacitação deficiente; mercado local frágil; pouco acesso a empregos;

Culturais

Tradições enfraquecidas,

Comunitários

Fragmentação social;

Potencialidades

. Diversidade cultural

. Tecnologias construtivas de domínio público

. Materiais baratos e em parte disponíveis no local

. Núcleos detentores de antigas e novas “tradições”

Quadro1: Características de exclução[9]

Concluída a fase de análise e de observação, procedeu-se à construção das soluções urbanísticas e arquitectónicas que visam solucionar os problemas identificados nas áreas selecionadas.

À esquerda Padrão encontrado para caminho público                            À direita Solução proposta Foto Manoel Ribeiro À esquerda Padrão encontrado para caminho público À direita Solução proposta Foto Manoel Ribeiro À esquerda Padrão encontrado para contenção de encostas À direita Solução proposta Foto Manoel Ribeiro À esquerda Padrão encontrado para contenção de encostas À direita Solução proposta Foto Manoel Ribeiro À esquerda Padrão encontrado para espaço público                                            À direita solução proposta Foto Manoel Ribeiro À esquerda Padrão encontrado para espaço público À direita solução proposta Foto Manoel Ribeiro À esquerda Padrão encontrado para contenção de encostas À direita Solução proposta Foto Manoel RibeiroÀ esquerda Padrão encontrado para contenção de encostas À direita Solução proposta Foto Manoel RibeiroÀ esquerda Padrão encontrado para área a consolidar                         À direita Solução proposta Foto Manoel RibeiroÀ esquerda Padrão encontrado para área a consolidar À direita Solução proposta Foto Manoel Ribeiro

1-     Fonte pública

2-     Fossa Séptica comunitária

3-     Muro de protecção

4-     Canaletas

5-     Escadarias drenantes

6-     Talude

7-     Muro de Contenção

8-     Escada de peões

Solução proposta urbanização mínimaSolução proposta urbanização mínima

A metodologia apresentada, ambiciosa e ousada, delimita uma área piloto, onde se podem elaborar projectos de urbanização e programas de desenvolvimento sócio-cultural, constituindo um novo paradigma na questão habitacional e de urbanização dos assentamentos informais do Mindelo, para além das questões meramente físicas. Propõe, ainda, a criação de um posto avançado do M_EIA na comunidade, com o intuito de integrar diversas disciplinas da Escola - arquitetura e urbanismo, design, música, engenharia, entre outras – num contexto de investigação aplicada que mobilize e apoie as populações locais na implantação de uma urbanização mínima e de seu desenvolvimento comunitário, cultural e económico. A ousadia e confiança dos alunos permitiu desenhar uma metodologia, que pode ser estendida a outras ocupações de São Vicente e de outras ilhas com problemáticas semelhantes. 

Apresentação do trabalho na M_EIA Semana do Urbanismo, Foto Rita Raínho  Apresentação do trabalho na M_EIA Semana do Urbanismo, Foto Rita Raínho

No último painel da M_EIA Semana do Urbanismo, num powerpoint sintético e claro, a apresentação pública do trabalho surge como um documento importante e inesperado. Importante porque retoma o debate sobre as questões urbanísticas e habitacionais do Mindelo. Surpreendente porque apresenta uma proposta, elaborada por alunos do primeiro ano dos três cursos do M_EIA, a partir de um contacto directo e participativo com o verdadeiro “cliente”, os moradores do Alto Bomba.

Concluído o evento, lendo a Revista ECAJ.10 – Reabilitação Urbana do Mindelo, editada em 2007, o docente convidado, já no avião de regresso ao Brasil, encontra num texto de Walter Rossa, “Algumas reflexões sobre o que já se sabe”, referências premonitórias sobre a questão urbanística de São Vicente, envolvendo as “ocupações irregulares”.

            “No Mindelo, as periferias tem a agressividade com que os slums do terceiro mundoencercam as zonas mais consolidadas. Só que aqui, não são slums, pois de uma forma geral as construções tem padrões dignos e (…) são dotados de uma harmonia internaque evoca uma gradual empatia estética.”

E acrescenta: “O que os desqualifica (os assentamentos) é a desurbanidade do espaço público, a escassa e caótica infraestruturação. Falta-lhe uma rede de redes que os suportem e lhes dêem consistência urbanística e paisagística. Na ausência do desenho prévio urge um desenho posterior”.

No plano das proposições, Rossa avança: “A preexistências é uma incontornável parceira nos jogos de transformação urbana, um inevitável sustentáculo de qualquer processo de desenvolvimento sustentável”.

Diz ainda:“… o Mindelo é um excelente caso laboratório para qualquer arquiteto. Mas melhor seria se ocorresse uma súbita tomada de consciência e os investimentos (fossem) canalizados para ações integradas, muito provavelmente de maior rentabilidade final”.

Verifica-se, então, que os dois eventos acadêmicos – 1º SIRUM (2007) e M_EIA Semana do Urbanismo (2015) - assumiram a mesma perspectiva conceitual e ofereceram ao trabalho dos alunos os fundamentos teóricos que justificam e suportam a viabilidade da sua implementação.

A possibilidade de realização desta “utopia”, acaba por chegar com a decisão da direção do M_EIA de adotar a proposta como tema de um dos Campos de Estudo a iniciar-se no ano lectivo de 2015/2016. Assim, abriu-se caminho para repensar o processo e acertar os detalhes que, numa ação conjunta que experimentará o “modelo de processo” proposto, permitirá urbanizar a encosta ocupada do Alto Bomba e valorizará a “cultura disponível” local.

Por fim, a discussão promovida permitiu-nos, também, reflectir sobre um possível contributo à política pública de habitação popular das cidades cabo-verdianas:

  • O instrumento da política habitacional cabo-verdiana é o Programa Casa Para Todos (CPT);
  • O modelo de implementação do CPT é centrado em operações de crédito e em projetos arquitectónicos elaborados por escritórios privados na Cidade Praia ou mesmo no estrangeiro, sem considerar as diferenças culturais e as diferentes tipologias habitacionais demandadas pelas condições encontradas em cada ilha;
  • Segundo o Vereador de Urbanismo da Câmara Municipal de São Vicente – Rodrigo Martins -  o Programa poderia continuar com a gestão financeira centralizada, mas deveria atribuir às Câmaras Municipais a gestão do processo e, sobretudo, a gestão da atribuição da elaboração dos projetos de forma a produzir um processo endógeno e participado;
  • De facto o planeamento e controle do uso do solo deve ser uma atribuição do nível de poder mais próximo da vida quotidiana de uma cidade. Nesse aspecto, deverá ser: evitada a extensão das áreas urbanizadas e respectivas infraestruturas, enquanto houver “vazios” urbanos ou em processo de urbanização de modo a rentabilizar a infraestrutura instalada ou em processo de instalação; fomentada a criação ou fortalecimento de subcentros ou eixos de comércio e serviços, distribuindo equanimemente as áreas de convívio público e equipamentos sociais;
  • Que o Programa CPT poderá acrescer a dimensão urbanística na sua actuação, produzindo, não somente habitações, mas também “cidade”;
  • Por outro lado, grandes parcelas da população, aquelas mais carentes, não têm condições de assumir as prestações mensais que amortizam os empréstimos ou que compõe o aluguer;
  • Sugere-se ampliar o instrumental da política habitacional para poder estender os seus benefícios aqueles que se encontram carentes, sem emprego ou renda regular;
  • A partir da experiência de urbanização do Alto Bomba, debater as possibilidades de atender a um amplo arco social: da demanda solvável à carência estrutural.

O quadro proposto pode ser assim esquematizado:

 

São Paulo: Editora SulinaDe LIMA, Aluísio Ferreira (2012).  Psicologia Social Crítica: Paralaxes do Contemporâneo

PAIVA, José Carlos; RAÍNHO Rita (2012). Sobre o campo da irreverencia de uma Escola Artística na renovação da educação artística. Disponível em: http://www.buala.org/pt/vou-la-visitar/sobre-o-campo-de-irreverencia-de-uma-escola-artistica-na-renovacao-da-educacao-artist Acesso em: 20/11/2015

SANTOS, Boaventura de Sousa (2007). ‘Para Além do Pensamento Abissal: Das Linhas Globais a uma Ecologia de Saberes’. In: Revista Crítica Ciências Sociais (78), out/07, pp. 03-46.

SANTOS, Maria Emília Madeira; ALBUQUERQUE, de Luis (1991) Historia Geral de Cabo Verde, Vol I

Lisboa, Praia: Instituto de Investigação Científica Tropical – Lisboa e Direcção Geral do Património Cultural de Cabo Verde

SANTOS, Milton (2001). Por uma Outra Globalização: do Pensamento Único à Consciência Universal. 

Rio de Janeiro: Record.

SILVA, António Correia (2000). Nos tempos do Porto Grande do Mindelo.

Praia: Centro Cultural Português

ROSSA, Walter (2007). Reabilitação Urbana – Mindelo.

Coimbra: Serviço Editorial do Departamento de Arquitectura Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra

VENTURA, Zuenir (1994). Cidade Partida.

São Paulo: Companhia das Letras

Notas 


[1] Retirado do documento “CAMPOS DE ESTUDO ‐ Estratégia para a reorganização do funcionamento, gestão curricular e administrativa dos cursos instituídos no M_EIA”

[2]Alunos que participaram no trabalho: Anderson Lima; Bruno Kenny; Carlos Ramos; Catherine Borja; Dailene Neves; Danilo do Rosário; Dulce Assunção; Elaine de Pina; Erickson Fortes; Grace Ribeiro; Jandira Rocha; Jonathan Duarte; Jucelma Veríssimo; Kleiton Ribeiro; Natísia Fonseca; Rafael Pires; Ravy Soares; Stephanie Fortes; Vadylene Nunes; Vanina dos Santos; Willy dos Santos

[3] Consta nos registos verbais dos morados da Rua de Salga Morte que este nome vem da relação conturbada entre um ex morador e a restante vizinhança. Assim que desaparecido, passando na rua a caminho da cerimónia fúnebre,os restantes moradores pulverizaram o caixão de sal com o fim de não voltarem a ter má vizinhança na rua.

[4] A fundação Sonvela é uma organização de direito cabo-verdiano com sede no Mindelo que trabalha com comunidades pobres da cidade do Mindelo, através de obras de pintura nas fachadas das casas, como instrumento de empowerment comunitário. Sonvela vem da aglutinação da palavra Soncent (São Vicente em crioulo) e favela (denominação para os assentamentos humanos informais da cidade do Rio de Janeiro)

[5]Os palestrantes integraram a M_EIA semana do Urbanismo são: Fredy Gomes, Presidente da Fundação Sonvela; José Maria Semedo, Geografo; Manoel Ribeiro, Arquitecto Urbanista; Rodrigo Martins, Vereador do Urbanismo da Camara Municipal de São Vicente.

[6]Dados dos Censo de 2011 do Instituto Nacional de Estatística de Cabo Verde.

[7]Durante as visitas a campo verificou-se haver uma indefinição dos moradores relativamente ao que é Alto de Bomba e suas áreas anexas. Cova, Alto de Caixa de Agua, Alto de Bomba, por exemplo, não eram lugares com a mesma delimitação física, com a mesma representação, para os diferentes grupos de cidadãos que habitam o lugar.

[8] Esquema elaborado  pelo o grupos de alunos para a apresentação pública na M_EIA Semana do Urbanismo

[9]Ibdem

[10]Ibdem

[11]Ibdem

[12]Ibdem

[13]Ibdem

[14]Ibdem

[15]Ibdem

[16]Esquema feito sobre a proposta dos alunos na apresentação publica da M_EIA Semana do Urbanismo

por Nuno Flores e Manoel Ribeiro
Cidade | 23 Fevereiro 2016 | arquitectura, Cabo Verde, ensino, Mindelo, urbanização