Lisboa e a Memória do Império Património, Museus e Espaço Público

Este livro é baseado num conjunto de textos que publiquei em revistas e em livros entre 2011 e 2017 sobre as representações da memória do império colonial português no espaço público da cidade de Lisboa[1]. O seu objectivo é o de analisar várias instâncias pelas quais são construídas e reproduzidas “imagens” de memória associadas à história imperial de Portugal, entendida este enquanto eixo articulador fundamental da identidade nacional portuguesa. O foco está, portanto, dirigido a uma “memória-imagem”, ou a uma memória-representação, chancelada pelo Estado, pelas corporações e pelas instituições de cultura pública, e não tanto uma memória-hábito, transmitida no âmbito das sociabilidades quotidianas, ou uma memória-lembrança, contada através do relato oral. A memória que neste livro se pretende analisar é, assim, uma memória que se verte publicamente, construída tanto por códigos interpetativos que definem objectos como por elementos sensoriais que potenciam o seu “afecto”, e que toma a experiência imperial portuguesa como parte integrante do ethos nacional, independentemente das posições contra ou a favor do império que possam hoje existir no plano ideológico.

              Este livro foca-se preferencialmente no tempo pós-colonial, procurando analisar a reorganização da memória imperial da nação portuguesa no período que corresponde à estabilização democrática do país após as descolonizações. No entanto, enfatiza também as muitas linhas de continuidade representacional que se traçam no que toca à imaginação mnemónica sobre a história do império português, estendendo-se desde o Liberalismo e a I República até ao tempo pós-colonial, especialmente a partir de meados dos anos 1980, quando, no contexto da negociação de novos posicionamentos simbólicos de Portugal no espaço europeu e no mundo lusófono, uma memória do império começa a ser rearticulada no espaço público nacional.

Focando-me no caso de Lisboa, pretendo evidenciar o lado estrutural destas continuidades, embora reconheça evidentemente as muitas descontinuidades que atravessam também todo este processo, e que resultam das plurais possibilidades representacionais que são asseguradas no período democrático. Ainda assim, tal como o demonstram outros estudos sobre antigas metrópoles imperiais, como Londres ou Paris[2], também aqui se considera que a impressão social e material do colonialismo no espaço urbano vai muito além do fim formal do colonialismo para continuar a condicionar a forma como os antigos centros imperiais são colocados nos novos arranjos de poder global na época pós-colonial[3]. As cidades globais[4] do mundo contemporâneo são herdeiras de arranjos espaciais e de morfologias sociais institucionalizadas pelo colonialismo moderno. Os legados do colonialismo continuam a exercer uma influência sobre as culturas e relações sociais não apenas nos países que tiveram um império colonial, como foi o caso de Portugal, mas em toda a Europa, que foi, como refere Benoit De L’Estoile, moldada objectivamente e subjectivamente, pela experiência colonial:

O passado colonial está presente no nosso mundo de muitas maneiras, algumas conspícuas, alguns despercebidas. Na Europa, como nos países anteriormente colonizados em todo o mundo, está incorporado na cultura material, em monumentos, na arquitectura, bibliotecas, arquivos e colecções de museus, na dieta alimentar, nos códigos vestuários e na música, mas também nos fluxos contínuos de bens, imagens e pessoas. Em formas talvez menos tangíveis, mas não menos cruciais, molda a política, a economia, a vida artística e intelectual, as práticas linguísticas, as formas de pertença ou as relações internacionais. Informa a retórica e as categorias mobilizadas quando os europeus lidam com migrantes de outros continentes, define padrões de boa governança e está na concepção de projectos de desenvolvimento, ou quando as pessoas fora da Europa lidam com turistas, empresários, trabalhadores de ONGs ou antropólogos europeus[5].

Traduzindo estes pressupostos, os estudos pós-coloniais e da história imperial têm vindo crescentemente a reconhecer o facto de que a existência de impérios, bem como as relações por eles estabelecidas, afectaram tanto os colonizados quanto afectaram os colonizadores, reconhecendo, seguindo Homi Bhabha, que há uma interdependência e uma construção mútua de subjectividades entre colonizadores e colonizados[6]. Assim sendo, é preciso, como defendeu Eric Wolf, trazer o império para “casa” para entender não só as interrelações complexas entre colonizadores e colonizados, mas, mais precisamente, para entender como , apesar – ou talvez devido – das suas diferentes relações de poder, ambos são constituídos como sujeitos coloniais[7]. Além disso, o contexto discursivo geopolítico a que chamamos Europa não pode ser plenamente compreendido se não levarmos em consideração a sua história imperial. Como Barbara Bush observou, “a história europeia há demasiado tempo está divorciada do seu contexto imperial vital”[8].

Ao considerar-se que as histórias dos centros imperiais europeus estão inevitavelmente ligadas às das suas periferias coloniais, dissolve-se o binário idealizado metrópole/colónia, colocando-se ambos os contextos dentro da mesma estrutura analítica. Este não é um problema novo, pois há já muito que estudos académicos enfatizam a importância das conexões entre os impérios, as redes estabelecidas entre as colónias e o significado dos centros de poder imperiais. Tais estudos desenvolvem-se especialmente a partir das contribuições de autores como Sidney Mintz[9] e Eric Wolf[10] que, ao insistir na importância de se identificarem as conexões entre pessoas de diferentes partes do mundo, as relações de poder que existem entre elas e os circuitos de produção, distribuição e o consumo em que vivem, procuram superar a dicotomia dominante/dominado e, como consequência, a divisão doméstico/imperial. Esta divisão também tem sido repensada por um grande número de pesquisas produzidas nos últimos 50 anos, sobretudo nos campos das representações literárias e visuais[11], fortemente influenciadas pela teoria pós-colonial e pela teoria feminista. Frantz Fanon[12] teve uma influência decisiva aqui (com a sua insistência nos sistemas racializados do domínio imperial e o reconhecimento das várias maneiras pelas quais a “Europa” foi criada pelo colonialismo), bem como Said[13] (insistindo que o colonial está no centro da cultura europeia) ou Foucault[14] (que trouxe novos entendimentos sobre a natureza do poder e as tecnologias da governança).

O pressuposto da interconectividade entre o império e a metrópole levaria a uma apreciação mais contundente da importância que as representações do império tiveram na formação das identidades nacionais nos centros de poder imperial europeus. As primeiras e mais importantes contribuições advêm da literatura anglo-saxónica, sendo de referência obrigatória a série “Studies in Imperialism” da The Manchester University Press, uma colecção editada por John MacKenzie e fundada em 1985 com o título Propaganda and Empire, a qual abriu uma discussão acerca dos impactos do império na metrópole[15]. Grande parte dos volumes da colecção publicados até agora aborda aspectos da cultura imperial britânica na metrópole, contribuindo para uma mudança significativa nos parâmetros de conhecimento sobre a relação dinâmica entre as esferas doméstica e imperial. Trata-se de um corpo de trabalho que sustenta o argumento central de MacKenzie, expresso no contexto de uma série de debates sobre a cultura metropolitana e imperial escrita para a Oxford History of the British Empire, segundo o qual “o império constituiu um aspecto vital da identidade nacional e da consciência racial, mesmo que complicado pelos contextos regionais, rurais, urbanos e de classe” [16].

Da mesma forma, Linda Colley destaca o vínculo entre uma identidade nacional britânica distinta e o tema do império[17], e Andrew Thompson, num estudo sobre o impacto do imperialismo na Grã-Bretanha, sugere, tal como MacKenzie, que, embora os efeitos do imperialismo na metrópole possam ter sido relativamente leves, “em certas áreas da vida pública britânica, estavam intimamente ligados às outras influências e impulsos para se internalizar completamente” [18].

É precisamente essa dimensão de internalização que deve ser investigada, argumentam Catherine Hall e Sonya Rose pois, segundo as autoras, o que importa afinal não é tanto perceber se o império exerceu ou não uma influência sobre a metrópole (assumindo-se que o fez), mas tentar entender como e de que modo foi internalizado e experienciado através de práticas quotidianas, não no sentido das afiliações políticas a favor ou contra o império, nem mesmo como algo especialmente apreciado, mas sim como parte, dizem elas, de um nacionalismo banal, conforme definido por Michael Billig[19].

Devemos ter em mente que os impérios nunca morrem inteiramente. Enquanto estruturas de poder e influência que cobrem amplos espaços geográficos, os impérios podem terminar formalmente, mas eles têm uma pós-vida que se manifesta através de toda uma série de práticas, subjectividades e discursos. Importa, assim, transportar os impactos duradouros do império para a paisagem pós-colonial europeia para, a partir desse lugar, colocar um conjunto de questões centrais: o fim da dominação colonial foi capaz de dissolver as representações e as práticas associadas ao imperialismo? Ou, em vez disso, essas representações e práticas sobreviveram ao fim do império? Que mudanças ocorreram nas auto-representações nacionais dos antigos centros de poder imperial com o fim dos seus domínios imperiais e durante o processo de se tornarem nações pós-imperiais? Essas questões são tanto mais necessárias, já que a relação entre o império e a metrópole não pode mais ser pensada dentro de um paradigma imperial. É necessário um paradigma diferente, que atravesse o problema das representações do passado imperial com o quadro das migrações globais, com as tensões raciais na antiga metrópole imperial, com a reafirmação dos nacionalismos, ou com o surgimento de os Estados Unidos como um império global[20]. Tal pressupõe considerar também os impactos da descolonização na vida política e nas identidades nacionais das antigas metrópoles. Nem sempre evidentes, e com frequência descurados pelos estudos académicos, que genericamente concluem que estes impactos não foram significativos, os impactos da descolonização influem de forma poderosa nas formas como o passado imperial é recordado em tempos pós-coloniais nos antigos centros imperiais europeus[21].

Com este quadro conceptual em mente, este livro procura considerar o significado das representações do império na construção retórica da portugalidade, transportando estas representações da época colonial para o tempo pós-colonial. A relação de Portugal com o seu passado imperial, a própria permanência desse passado no presente, bem como as suas consequências no que toca às relações de cidadania com os antigos sujeitos pós-coloniais, são algumas das questões centrais a um campo de estudos tenso, ambivalente, nostálgico e investido com forte carga emocional, ele próprio expressão do relacionamento do país com o seu passado imperial[22]. Cruzando-se com os estudos pós-coloniais (como são chamados no contexto anglófono), ainda que não se subsumindo a eles, o estudo dessa pós-colonialidade lusófona exige considerar a especificidade da experiência imperial portuguesa, das suas ficções, mitos, práticas e trânsitos para, de seguida, os cruzar com a maneira particular como a transição para a democracia e o concomitante processo de descolonização foram operados e com os efeitos da globalização e a posição dos imigrantes (de ex-colónias ou de outros lugares) na arena nacional.

Tal pressupõe reconsiderar a suposição comum de que o fim do império não teve sérias consequências domésticas em termos do impacto nos domínios social e cultural, não tendo causado uma crise de identidade digna de referência[23]. É preciso, contudo, sublinhar que a maioria dos estudos que lidam com esses impactos concentram-se sobretudo nas opções políticas das elites e são conduzidos no âmbito da ciência política, da economia internacional ou das relações internacionais[24].  Contudo, no campo social, os impactos do fim do império português revelam-se em formas menos transparentes: alimentando antigas e novas fantasias imperiais, fazendo persistir antigas categorias coloniais e classificações raciais, influenciando ideologias e nostalgias pós-imperiais, condicionando memórias e re-articulando os mitos da identidade nacional portuguesa ao longo da linha de descontinuidade/continuidade histórica aduzida pela transição do colonial para o pós-colonial[25].

Procurando atender a estas permanências, no centro deste livro está uma concepção de memória colectiva enquanto processo social activado (por via da prescrição de uma narrativa oficial) e incorporado (mediante práticas partilhadas). Ou seja, uma concepção de memória que resulta da intersecção entre o público e o privado, e que não sendo fixa nem monolítica, retém representações e práticas do passado que se recompõem à luz das exigências do presente. O que coloca a questão da permanência e ou recomposição de representações e práticas dos passados imperiais nas ex-metrópoles europeias no quadro de uma conceptualização de memória enquanto passado que perdura, embora actualizando-se.

Como em Halbwachs[26], a memória é, portanto, coisa do presente: uma reconstrução selectiva do passado vivido a partir dos “quadros” de recordação do presente. Não se trata de recapturar o passado “tal como aconteceu”, mas de apreender os variados e complexos “determinantes” sociais, históricos e ambientais que enquadram a recordação (presente) do passado. Neste sentido, o que importa analisar é o contexto – bem como as ações que nele se desenvolvem – em que os eventos do passado são recordados – ou seja, activados enquanto memória – bem como os “horizontes de expectativa” para os quais essas recordações se projectam. Estes últimos são, por sua vez, profundamente condicionados pela forma como a história oficial enquadra, fixa e selecciona as memórias colectivas. Os actos da memória são inevitavelmente actos políticos, motivados por leituras ideológicas do passado e a elas se remetendo constantemente. Neste sentido a memória é, como nas palavras de Richard Terdiman, “o mecanismo pelo qual a ideologia se materializa”[27]. Mas a memória é também, e sempre, “reivindicada, negociada, mas também repudiada, selectivamente aceite, falsificada ou desafiada”[28], sendo passível de revisão e actualização, à medida que novos actores sociais negoceiam – e conflituam – novos significados para o passado[29].

Do ponto de vista analítico, a utilização desta perspectiva pressupõe identificar os diversos agentes, práticas, objectos, discursos e investimentos afectivos, bem como os múltiplos cursos de acção, negociações, conflitos e contradições envolvidos na activação memorial. Se, tal como consagrado na literatura sobre o tema, a memória e os seus objectos são construídos e moldados por interesses político-ideológicos[30], esta abordagem permite atender aos diferentes agentes e agendas da activação mnemónica bem como às diferentes formas memoriais que daí emergem. Evidenciam-se os elevados níveis de arbitrariedade, e de indeterminação, que acompanham estes processos, já que muitas vezes os cursos de acção não são os esperados. Além disso, são também evidenciados momentos de invenção e de novidade, a par com as acções padronizadas e continuidades representacionais.

Este livro tem também uma atenção particular dirigida à materialidade da memória, e à forma como esta é formalizada no espaço público através do património e dos museus[31], considerando-se esta materialidade como sendo especialmente produtiva do ponto de vista social: o património selecciona a memória – através de políticas de conservação e de musealização; organiza-a e torna-a visível – no espaço e através de narrativas expositivas; compõe as paisagens mnemónicas; valida os interesses de grupos particulares. Neste processo, converte o conhecimento sobre o passado em lugares-comum do presente, incorporados em formas de “nacionalismo banal”[32] que, embora não motivem posicionamentos políticos extremados, subsistem na vida quotidiana da nação como uma “condição endémica”[33], servindo de suporte retórico a discursos políticos, na produção cultural e na cultura popular. Estes lugares-comuns são, também, sempre abertos à revisão à medida que as necessidades de cada momento forem forçando a sua reactualização[34]

Estes processos são particularmente expressivos e visíveis nas paisagens urbanas europeias modernas, que são paisagens saturadas de produtos da memória colectiva: sítios patrimoniais, museus, placas comemorativas, lugares monumentais. Lugar-fétiche da modernidade, a cidade torna-se um espaço retrospectivamente definido com base nas ideologias sacralizadoras dos passados regionais ou nacionais, enquanto, simultaneamente, se presentifica como o lugar de avant-garde do progresso científico e tecnológico, da indústria, do consumo. Aí são criadas formas materiais e técnicas de oficialização de uma memória colectiva, desenhadas para simbolizar a unidade nacional e para legitimar o controlo administrativo do Estado[35], bem como a sua inserção no sistema-mundo capitalista. O museu, o monumento, a exposição internacional, são as tecnologias institucionais de eleição empregues na reprodução de um ideário composto por termos aparentemente contraditórios, como universalismo e particularismo cultural ou progresso e historicismo. O político associa-se ao cultural, compondo cenários de exaltação nacional e de fruição cultural, tomando o passado como objecto-mercadoria com valor de afirmação política no quadro geopolítico internacional e com valor de troca nos circuitos dos consumos culturais em que se inserem os novos sujeitos da acção política. 

Foi esta a “febre da história” que caracterizou o período que transcorreu entre meados do século XIX e primeira metade do século XX[36]. Correlata da afirmação de uma nova ordem política instrumental à inserção e ao funcionamento dos Estados-nação numa economia capitalista global, esta “febre” não será muito diferente da “doença da nostalgia” que caracteriza a relação que os colectivos mantêm com os respetivos passados na actualidade, e cuja configuração mais específica deve ser encontrada na tendência iniciada na Europa nos finais dos anos 1970, e que se acentuou nos finais do século XX e início do XXI, no sentido de um renovado investimento simbólico nos passados colectivos[37]. Em comparação com o anterior, este período caracterizar-se-á sobretudo pela intensificação: patrimonialização extensiva dos mais variados referentes culturais, crescimento exponencial de colecções e de museus públicos e privados e progressivo aproveitamento comercial dos bens patrimoniais por via da sua inclusão no mercado turístico e nos circuitos de lazer. Esta crescente “objectificação” do passado[38], assente em práticas culturais organizadas e institucionalizadas de mediação mnemónica, é o resultado do crescimento de uma “indústria da nostalgia” que, por seu turno, contribui para que os museus, os monumentos e as comemorações históricas ganhem uma popularidade sem precedentes[39]. É neste particular que o período actual se distinguirá do anterior. 

Em ambos os momentos, porém, a distinção dos lugares e das suas identidades está frequentemente associada a uma tematização do espaço com base em referências do passado. Mas se a tematização do espaço com base em narrativas históricas diferenciadoras tem por objectivo a distinção relativamente a espaços – e a mercados – competidores, ironicamente, esta mesma tematização produz uma similitude de espaços, ainda que diferentemente localizados, por via da adopção de estratégias e técnicas de produção do passado similares. Tal resulta na sincronização dos diferentes elementos temporais do espaço, bem como numa combinação de diferentes componentes paisagísticos e monumentais. Assim, como na conceptualização de Benjamin[40] segundo a qual Paris é constituída por vários níveis de “restos” de passados acumulados, na “cidade da memória colectiva”[41] o novo convive com o velho, o local com o global e múltiplos passados e múltiplos presentes misturam-se, produzindo uma imagem ideal feita de inúmeros componentes. 

É este o entendimento que se pretende dar ao conceito de “complexo de memória”[42] tal como se emprega neste livro: mais do que uma narrativa linear, a memória de um determinado evento passado é um aglomerado de conteúdos, um conjunto relativamente aberto e dinâmico de partes ou tendências, que constantemente se presentifica e actualiza através da sua auto-performance em cada momento: um “repositório perpetuamente mutável de apresentação do passado para os fins do presente”[43]. Os seus conteúdos são combinados de forma mais ou menos arbitrária, formando estruturas maleáveis que oferecem formas de compreensão e de experiência tomadas como certas. Dito de outro modo, são os “complexos de memória” que nos fornecem as ideias de senso-comum sobre o passado as quais, sendo profundamente resistentes à mudança, são também altamente maleáveis e adaptáveis a novas exigências representacionais. Neste sentido, os “complexos de memória” sustentam identidades bastantes estáveis, pois ainda que a sua estrutura possa ser relativamente solta, os elementos que a compõem detêm uma tonalidade emocional comum, que é referida a uma identidade, se bem que não a uma unidade[44].

Enquanto “complexo de memória”, Lisboa concentra no seu espaço físico um conjunto de elementos simbólicos e materiais que remetem para uma representação e para um “afecto” da cidade enquanto detentora de uma particular historicidade associada à expansão marítima e ao império português. Esta historicidade está impressa na materialidade da paisagem construída da cidade, na sua organização espacial, nos maneirismos exóticos da sua arquitectura, na linguagem afectiva do seu enquadramento natural, na sua ornamentação vegetal através de espécies tropicais, na presença quotidiana de populações oriundas (ou descendentes delas) das antigas colónias, na representação fornecida por museus e por monumentos. Por vezes de forma explícita e por outras de forma latente, através de formas mnemónicas inertes e/ou não declaradas, a memória do império colonial português estrutura a imaginação da cidade de Lisboa enquanto antiga capital do império agora concebida como cidade global pós-colonial. Uma imaginação que, tal como procurarei evidenciar ao longo deste livro, tem a sua própria genealogia e constantemente se reinventa ao longo do tempo. Neste processo, o mito estruturante das definições identitárias da cidade vai sofrendo alterações à medida que as exigências representacionais de cada momento assim o determinam. Ora colonial, ora ultramarino, o império memorializado no espaço da cidade adapta-se às contingências da história e às agendas próprias das instituições culturais e dos actores sociais. É contestado, debatido, apropriado e consensualizado.  É combinado com outros elementos da cultura erudita e popular através de formas inovadoras e criativas. E, neste processo circular, vai mantendo a sua continuidade representacional, reproduzindo no espaço físico e simbólico da capital do antigo império os mesmos mitos e ficções da nação imperial, num “complexo de memória” que, embora maleável, se revela profundamente resistente à crítica da história.

Este livro tem por objectivo abordar estas questões, através de uma exploração de um conjunto de casos não exaustivos que compõem o “complexo de memória” do império no espaço público da cidade de Lisboa. A análise deste complexo não se esgota, porém, nos casos apresentados nem na abordagem que aqui se persegue. Falta, entre outras coisas, considerar a recepção dos produtos da cultura pública por parte dos seus usuários e públicos, a transmissão de uma subjectividade pós-imperial através de práticas do quotidiano não institucionalizadas e o papel de acções de memorialização contra-hegemónicas que se afirmam no campo das formas culturais alternativas, muitas vezes pela mão daqueles que são eles próprios objecto das estratégias representacionais das políticas e das isntituições. Mas estas são intenções que não cabem cumprir neste livro.

 

 


[1] Os textos que aqui se apresentam não são, contudo, reproduções integrais dos originais, mas são retrabalhados e editados de acordo as exigências de um projecto editorial que se pretende coerente. Por outro lado, outros textos que publiquei neste período não são aqui reproduzidos, embora trechos deles estejam integrados no texto publicado, quando assim se considerou necessário para completar a narrativa.

[2] David Gilbert e Felix Driver, (eds.), Imperial Cities. Manchester: Manchester University Press, 1999; David Gilbert e Felix Driver, “Capital and Empire: Geographies of Imperial London”, GeoJournal, 51 (1/2), 2000, pp. 23-32.

[3] Anthony King, Global Cities: Post-Imperialism and the Internationalization of London. Nova Iorque: Routledge, 1990; Jane M. Jacobs, Edge of empire: postcolonialism and the city. Londres e Nova Iorque: Routledge, 1996; John Eade, Placing London: From Imperial Capital to Global City, Berghahn Books, 2001.

[4] R. B. Cohen, “The new international division of labor, multinational corporations, and urban hierarchy”, in Michael Dear and Allen J. Scott (eds) Urbanization and Urban Planning in Capitalist Society. Londres e Nova Iorque: Methuen, 1981, pp. 287–315; John Friedmann e Goetz Wolff, “World city formation: an agenda for research and action”, International Journal of Urban and Regional Research 6, 1982, pp. 309–44. contribute New York:e, 1990b; Jane M. Jacobs, onial times, o condition how former imperial centres are placed in the umphs and d

[5] Benoit De L’Estoile, “The past as it lives now: an anthropology of colonial legacies”, Social Anthropology, 16 (3), 2008, pp. 267–279, p. 267.

[6] Homi Bhabha, The Location of Culture. Londres: Routledge, 1994.

[7] Patrick Wolfe, “History and Imperialism: A Century of Theory, from Marx to Postcolonialism”, American Historical Review, 102, 1997, pp. 406-409.

[8] Barbara Bush, Imperialism and Postcolonialism. Harlow: Pearson, Harlow, 2006, p. 3.

[9] Sidney Mintz, Sweetness and Power: The Place of Sugar in Modern History. Nova Iorque: Viking, 1985.

[10] Eric Wolf, Europe and the People Without History. Berkeley: University of California Press, 1982.

[11] E.g. Antoinette Burton, Burdens of History: British Feminists, Indian Women and Imperial Culture, 1865-1915, Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1994; Annie E. Coombes, Reinventing Africa: Museums, Material Culture and Popular Imagination in Late Victorian and Edwardian England, New Haven e Londres: Yale University Press, 1994; Mrinalini Sinha, Colonial Masculinity: The ‘Manly Englishman’ and the ‘Effeminate Bengali’ in the Late Nineteenth Century. Manchester: Manchester University Press, 1995; Philippa Levine, Prostitution, Race, and Politics: Policing Venereal Disease in the British Empire. Londres: Routledge, 2003; Sonya O. Rose, Which People’s War? National Identity and Citizenship in World War II Britain. Oxford: Oxford University Press, 2003.

[12] Franz Fanon, The Wretched of the Earth. Nova Iorque: Grove Press, 1967.

[13] Edward Said, Orientalism. Nova Iorque: Vintage, 1979.

[14] Michel Foucault, La ‘Gouvernementalité’. In Dits et Écrits (1976-1979). Paris: Gallimard, 1978.

[15] Esta colecção inclui, entre outros: John MacKenzie, Propaganda and Empire. Manchester: Manchester University Press, 1984; John MacKenzie (ed.) Imperialism and Popular Culture. Manchester: Manchester University Press, 1986; Jeffrey Richards (ed.), Imperialism and Juvenile Literature, Manchester: Manchester University Press, 1989; Kathryn Castle, Britannia’s Children: Reading Colonialism Through Children’s Books. Manchester: Manchester University Press, 1996; Stuart Ward (ed.), British Culture and the End of Empire. Manchester: Manchester University Press, 2001; Bill Schwarz (ed.), West Indian Intellectuals in Britain. Manchester: Manchester University Press, 2003.

[16] John MacKenzie, “Empire and Metropolitan Cultures”, in Wm. R. Louis (ed.), The Oxford History of the British Empire, 5 vols., vol. III: The Nineteenth Century. Oxford: Oxford University Press,1998-9, p. 292.

[17] Linda Colley, “Britishness: an Argument”, Journal of British Studies, 31 (4), 1992, pp. 309-329; Linda Colley, Captives: Britain, Empire and the world, 1600-1850. Londres: Pantheon Books, 2002.

[18] Andrew Thompson, The Empire Strikes Back? The Impact of Imperialism on Britain from the Mid-Nineteenth century. Harlow: Pearson, 2005, pp. 5-6.

[19]  Michael Billig, Banal Nationalism. Londres: Sage, 1995.

[20] Bill Schwarz, “The Only White Man in There: the Re-racialization of England, 1956-1968”, Race and Class, 38 (1), 1996, pp. 65–78, p. 65.

[21] Bill Schwarz, The White Man’s World (Memories of Empire, Volume 1). Oxford: Oxford University Press, 2013. 

[22] Miguel Vale de Almeida, “Comemoração, Nostalgia Imperial e Tensão Social: O Desenvolvimento Portugal-Brasil: Comentário às Análises de Imprensa”, Psicologia, 17 (2), 2003, pp. 381-384; Miguel Vale de Almeida, “Longing for oneself: Hybridism and Miscegenation in Colonial and Postcolonial Portugal”, Etnográfica, 6 (1), 2002, pp. 81-200.

[23] António Costa Pinto e Nuno Severiano Teixeira, “From Atlantic Past to European Destiny: Portugal”, in Wolfram Kaiser e Jurgen Elvert (eds), European Union Enlargement. A Comparative History. Londres: Routledge, 2004, pp. 112-130, p. 127.

[24] António Costa Pinto e Stewart Lloyd-Jones, The Last Empire. 25 years of Portuguese Decolonization. Bristol: Intellect, 2003.

[25] Margarida Calafate Ribeiro, Uma História de Regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-colonialismo. Porto: Edições Afrontamento, 2004; Nuno Domingos e Elsa Peralta (orgs.), Cidade e Império: Dinâmicas Coloniais e Reconfigurações Pós-coloniais. Lisboa: Edições 70, 2013; Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira, O Adeus ao Império: 40 anos de Descolonização Portuguesa. Lisboa: Nova Veja, 2015; Elsa Peralta, Bruno Góis e Joana Oliveira (orgs.), Retornar: Traços de Memória do Fim do Império. Lisboa: Edições 70, 2017.

[26] Maurice Halbwachs, On collective memory. Chicago: The University of Chicago Press, 1992. 

[27] Richard Terdiman, Present Past: Modernity and Memory Crisis. Nova Iorque: Cornell University Press, 1993, p. 33.

[28] Benoît de L’Estoile, “The past as it lives now…, p. 269.

[29] Sobre a forma como as memórias colectivas nacionais são selecionadas e definidas por diferentes agentes políticos em constante negociação veja-se John Bodnar, Remaking America: public memory, commemoration, and patriotism in the twentieth century. Princeton: Princeton University Press, 1992. 

[30] e.g. Raphael Samuel, Theatres of memory: past and present in contemporary culture. Londres e Nova Iorque: Verso Books,1996.

[31] Ver Sharon Macdonald, “Reassembling Nuremberg, reassembling heritage”, Journal of Cultural Economy, 2 (1-2), 2009, pp. 117-34.

[32] Michael Billig, Banal nationalism… 

[33] Idem, p. 6. 

[34] David Lowenthal, The Past is a Foreign Country. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. 

[35] O período que medeia entre 1870 e 1914 foi, como atesta Eric Hobsbawm, especialmente profícuo em produção em massa de tradições inventadas como resultado das rápidas transformações ocorridas neste período. Eric Hobsbawm e Terence Ranger (org.), The invention of tradition. Cambridge: Cambridge University, 1983. Ver também José Manuel Sobral, “A formação das nações e o nacionalismo: os paradigmas explicativos e o caso português”, Análise Social, XXXVII (165), 2003, pp. 1093-1126.

[36] Jeffrey K. Olick (org.), States of memory: continuities, conflicts, and transformations in national retrospection. Durham: Duke University Press, 2003. 

[37] O que ficou designado como “fenómeno da memória”. Wolf Kansteiner, “Finding meaning in memory: A methodological critique of collective memory studies”, History and Theory, 41 (2), 2002, pp. 179-197, p. 183. 

[38] Richard Handler, “On sociocultural discontinuity: nationalism and cultural objectification in Quebec”, Current Anthropology, 25 (1), 1984, pp. 55-71. 

[39] Andreas Huyssen, Twilight memories: marking time in a culture of amnesia. Londres e Nova Iorque: Routledge, 1995. 

[40] Walter Benjamin, “Paris – the capital of the nineteenth century”, in Walter Benjamin, The arcades project. Harvard: Harvard University Press, [1935, 1939] 1999. 

[41] M. Christine Boyer, The City of Collective Memory: Its Historical Imagery and Architectural Entertainments. Cambridge, MA: MIT Press, 1996.

[42] Sharon Macdonald, Memorylands: Heritage and Identity in Europe Today. Londres: Routledge, 2013.

[43] Duncan S. A. Bell, “Mythscapes: memory, mythology, and national identity”, British Journal of Sociology, 4 (1), 2003, pp. 63-81. 

[44] Este entendimento da noção de complexo é similar à noção de assemblage na forma como tem sido utilizada em anos recentes na teoria social e cultural. Refere-se a um qualquer número de “coisas”, ou pedaços de “coisas”, reunidos num único contexto. A fluidez, a permutabilidade, e as múltiplas funcionalidades são enfatizadas, ao invés de totalidades orgânicas. Gilles Deleuze e Felix Guattari, A Thousand Plateaus: Capitalism and Schizophrenia. Trad. Brian Massumi. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007; Manuel De Landa, A new philosophy of society: assemblage theory and social complexity. Londrea e Nova Iorque: Continuum, 2006. 

por Elsa Peralta
Cidade | 20 Junho 2018 | espaço público, Memória do Império, Museus, património, políticas de memória