Consciência de Humanidade

(12:33) Enquanto passava a mãe sentada na rotunda, visivelmente debilitava agarrava com firmeza o filho. Com tanta firmeza que quase sufocava a sobrevivência. Há uma força para além de nós próprias, que a ciência desconhece. As mães carregam um mostruário divino. Está para lá do espiritualismo, esvazia-nos e preenche-nos…, esta sensação sanguínea inquebrável. Naquela forma pálida e esquelética o «GRITO» de socorro invadia a cidade. (Luanda, que sensação de impotência!) O que acordava aquela mulher nos momentos em que o seu corpo padecia no «GRITO» de socorro (SOBREVIVÊNCIA) era o bater do coração do filho. Pulsante…, a criança sorria à inocência (…) entre  o «delírio» e a consciência, a mãe agarrava com firmeza o filho. Os filhos são a nossa continuidade — são eles que nos transmitem diariamente este olhar para além de nós próprios — para além da razão. E nós pais, para onde foi esta consciência de Humanidade? A mãe e o bebé foram acalentados e levados para um lugar seguro. E eu, na tentativa (utópica) de descontinuidade… apaguei-me por uns instantes! (…) TRUMP. “E O NOVO PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS: DONALD TRUMP”(…) «TRUMP». Trump é o novo Presidente dos Estados Unidos. TRUMP: NOVO PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS!!! – mais um canal anunciava. TRUMP vence Hillary, é o novo presidente dos Estados…, nas manchetes dos jornais. (…) “E já não há mais volta a dar, de acordo com os votos “TRUMP é o novo…”, ouvia-se na radio — TRUMP!? Um murro do estômago ao fígado. Amargo, circunvizinho do abismo. 

(04h55 - Lisboa) A IRRACIONALIDADE IDEOLÓGICA abarrotava as redes sociais. Discursos de ódio intensificavam-se como vírus. O efeito do murro no estômago (de novo). O fim Democrático e Civilizacional, materializado no feednews. (NERVOS)  O pacto social falhara, a Democracia desacreditada. Mas o pacto social existe de facto? Se és de esquerda ou de direita, quando a Democracia falha, falhamos todos! Se és ateu ou cristão se a crença na essência humana se corrói, perdemos todos! Perdemos sempre todos quando perpetuamos a nossa auto-destruição. TODOS. 

Como habitualmente ia de encontro à mercearia dos meus amigos ucranianos: — Acho bom! Chega de guerras, finalmente a relação Estados Unidos e Russia vai melhor. NÓS NÃO QUEREMOS MAIS GUERRAS… Foi a guerra que nos levou a imigrar, deixámos família, deixámos bens, deixámos uma vida, tudo e hoje com dois diplomas na mão tivemos que recomeçar… RECOMEÇAR! Não queremos mais guerras. - conta, olhando com dureza no olhar, deixa-me perplexa. 

Tinha a convicção que não havia motivo algum que me fizesse recuar das minhas convicções. Que bastava a minha opinião e de milhões de habitantes deste planeta terra. Como não mergulhar na pele do outro? Como não sentir empatia? (Outro murro no estômago). Deveria colonizar o ideal deles de paz? Dizer-lhes que estavam errados, que eu é que estava certa? Que este não era o caminho, que o que fora dito e feito era um retrocesso democrático. Mas a palavra RECOMEÇAR não me saía… Como deve ser recomeçar até alcançar uma nova esperança. E de facto, para os meus amigos ucranianos a eleição de Trump era uma esperança. Um sinónimo de «PAZ», a paz que tanto almejaram era a ausência de guerra. Uma paz provisória, mas era a paz que eles tanto esperaram…Que direito tinha eu de lhes tirar essa «PAZ»? A PAZ do regresso a casa. A «mitigada esperança»… que direito tinha? Disse um adeus e fui-me embora. 

Do outro lado da estrada vivia uma comunidade cigana. Ao lado o shopping onde tratava do cabelo. A senhora idosa do prédio vermelho ficava sempre à espreita de tocaia (sabia que passava sempre à mesma hora, 07h45) – Bom dia menina! Então o seu pequenote tá um crescido. Começávamos uma prosa, e como sabem  os mais velhos prolongam-se, principalmente quando estão tanto tempo sozinhos. O abandono machuca. Talvez sejam os mais velhos os nossos Deuses-guia. Enciclopédias a céu aberto. O marido tinha vivido em Angola, por sinal em Benguela (terra amada). Deixou um filho. A idosa, visivelmente abalada, contava-me que antes da sua morta prometera ao marido que ia encontrar este filho. Uma promessa que levava como uma maldição. Nunca permitiu que ele regressasse para o conhecer… um arrependimento «profundíssimo» na sua voz… enfim, o abandono machuca. Existem tantos “fantasmas” a circundar as história humanas. 

(Lobito - 13:48) A mulher na casa dos setenta regava as plantas, muitas, imensas imensamente verdes, eram mesmo muitas. Fora aconselhada, após o óbito do marido, a mantê-las. Mesmo assim a mulher tornou-se invisível. As plantas ajudaram-lhe a ver mais vezes (a sentir) o Sol. Regava-as no terraço dia sim, dia não. Aprendeu a «recomeçar» mesmo cinzenta. O marido lutou por Angola. E ela lutou ao lado cuidando dos outros, dos filhos, dela própria e do marido, das várias casas e abrigos ao longo desta difícil luta da clandestinidade. No dia da rega, senta na cadeira do marido (nunca teve muito este hábito de ler sob os raios de Sol). —  Oh, marido sai mazé deste sol, ainda ficas todo queimado! Queres-me trazer problemas, já não és mais aquele miúdo. Teimoso! Não lês aqui dentro porquê?!? Isso ainda vai-te fazer mal. - lembrava.

Sentou-se cinzenta, os raios de sol alimentaram-lhe a memória. Lacrimeja e recomeçou a leitura. Em nova quis ser escritora, mas naquele tempo haviam outros “perfis” de mulheres escritoras que não do “tom de pele” da mulher idosa. Será tarde para recomeçar? (…) 

(7:55, Lisboa) Ainda tentei saber mais…mas era difícil saber o paradeiro desse filho sem nome, sem morada, sem identidade como achá-lo? Benguela era tão grande e Angola maior ainda. A verdade por vezes não nos liberta. Nos acorrenta, mas é preciso aprender a perdoar e seguir em frente.

'Os operários' (1933), de Tarsila do Amaral'Os operários' (1933), de Tarsila do Amaral

“SHOPPING XX” Cabeleireiros africanos abundam na área. Desfrisos, chapinhas, mises, tranças, postiços, aplicações fio fio ou bainha… Perucas a x euros. Entrei. Recebo um sorriso caloroso. Tirava todos os “protocolos”, sentia-me em casa. Matava ali as saudades. Um cabeleireiro africano em qualquer outro continente é uma «embaixada de abraços e confraternizações». UM ABRAÇO PERIFÉRICO! Já vos conto tudo sobre o que é um abraço periférico.  A dona do salão era do Senegal, as outras meninas da Guiné e de Cabo Verde.

Ao longo da minha pequena trajetória de vida fui procurando “PROFETAS” (não à semelhança da Bíblia — os homens não fazem milagres), homens que pudesse seguir (na realidade também não existem!), que me mostrassem o caminho… mas que caminho, afinal? Não é a melhor pergunta para um best-seller, eu sei. E Lamento que no maior país da América Latina queiram acabar com a Filosofia, ela é mais do que necessária em tempos de colapso civilizacional. Será que estes profetas que idealizamos e nos representam mundialmente sabem os trilhos a seguir e as consequências dessas escolhas? (grande treta, não é assim que se faz uma reflexão filosófica, talvez, estamos é todos fodidos — lamento o palavreado, a literatura devia ser livre e ponto. Lamentavelmente sou de carne e osso. Tendencialmente mais humana do que sempre desde os primórdios da nossa existência. E os nossos líderes? São eles (por obrigatoriedade) que nos devem apontar o caminho da salvação. O que realmente falhou? Para onde caminhamos quando os nossos líderes não se equivalem a Deuses guias. Não acredito que o século XXI seja o século do retrocesso democrático. NÃO! Recuso-me a aceitá-lo. Ao lado da mercearia vivia a Xing e o filho imigrada da China. Viviam na loja. Não falamos muito. Mas sorriamos, isto bastava. UM SORRISO: -  Bom dia! Os miúdos brincavam. Como eles brincavam sem parar. Brincavam na loja com se fosse um parque de diversões. Que memórias devem carregar destas brincadeiras? Roupas, sapatos, malas, mochilas, guarda-chuva, porta-retratos em mandarim, um oceano do tamanho de um lago – infância longa e ao mesmo tempo curta. A Xing tinha o marido longe, nada dizia. Calada. O seu olhar silencioso bastava. E as crianças, essas são inocentes não têm os pré-conceitos e os preconceitos de nós os adultos… 

MALDIDOS OS ADULTOS OBRIGADOS TODOS OS DIAS A RECOMEÇAR

por Indira Grandê
Cidade | 29 Julho 2019 | cabeleireiro, empatia, Lisboa, luanda, quotidiano