Abençoados pelos mortos

fotografias de Susana Moreira Marques

 

A primeira lição ao cruzar o mediterrâneo: ainda precisamos de Deus. Magda entende os muçulmanos e os judeus. Não entende os ateus. Magda Mikhail é cristã copta, e observa a filha de 13 anos: como se zanga com Deus, e a seguir agarra-se a Ele a pedir coisas. Magda vai sentada ao meu lado no voo de ida para o Cairo, e sobre a situação política no Egipto, diz: “Somos espectadores de um filme. É como se estivéssemos a ver um filme passar. Não podemos fazer nada.”

Era Agosto de 2007, e tinha-se a sensação de que o Cairo não era o centro do mundo árabe, mas uma amálgama de pessoas perdidas no meio do deserto.

 

 

No deserto, um homem tem que dialogar consigo próprio e é o que Magdi ali Hasan faz, aos 68 anos, pensando nos desenhos para os túmulos, e então, ama a sua profissão. Por baixo da casa e da loja, estão os seus pais e a mulher. Quando em 1992, o terramoto destruiu a sua casa não teve outra solução se não vir viver para o túmulo de família.

Deixou de fazer esculturas para as lojas, e progressivamente, cobre-se de branco: os anos sobre os cabelos, o gesso sobre as mãos. Continua trabalhando, mas envelhece, porque sente que não apreciam a sua arte. Às vezes roubam-lhe o trabalho. E ele refaz. Quando precisa de se animar, faz outras coisa que não decorações para túmulos. Apesar de ser muçulmano, gosta de esculpir Jesus Cristo, que, acreditam os coptas egípcios, se refugiou com a família sagrada no Cairo, numa caverna que parecia um túmulo. “Estou só com os mortos”, diz. “Estou só como no deserto.”

 

Cheguei ao Cairo quando o realizador português, Sérgio Tréfaut, estava de partida depois de um período de rodagem para o seu documentário sobre a Cidade dos Mortos. Ainda coincidimos uma noite e jantámos, o Sérgio acompanhado do cameraman italiano, e eu de uma jornalista espanhola. Conversámos num misto de português, espanhol e italiano.

“Vida, vida, vida!”, dizia o cameraman com a força da língua italiana. Para ele e para Sérgio Tréfaut, no Cairo até o cemitério era um lugar de vida. Tudo parecia mover-se, os próprios mortos modificavam-se para se adaptar aos vivos. Era possivelmente esse desejo de sentir a vida de uma maneira que não a sentia na Europa que fazia com que Sérgio Treffaut voltasse, uma e outra vez. Já a minha amiga, que vivia no Cairo, e ia fazer férias à Europa sempre que podia, perguntava-se que vida era aquela? Como toda a gente, sufocava, e não era o calor.

Há poucos dias, falámos por skype, e ela não se lembrava desse jantar. Não era só que tivesse sido há algum tempo, tinha sido noutro Egipto. Entretanto, a minha amiga tinha estado na Praça Tahrir, tinha ido à Líbia e voltado, e o Cairo em que vivia, agora sim, era um lugar de vida. Tinha percebido que antes disso os egípcios não estavam verdadeiramente vivos porque lhes faltava o que mais precisavam – mais do que dinheiro ou liberdade de expressão –: o orgulho.

 

 

A terceira loja onde entro, na rua principal da parte norte da Cidade dos Mortos, é uma engomadoria. Gon Amin Hassan nasceu no cemitério e herdou a profissão do tio em 1967. “Porque me dá para comer, amo esta profissão”, diz, e continua a passar a ferro com o pé.

Antes entrei numa loja onde se fazem lâmpadas e candeeiros e numa onde se trabalha cobre e prata. Os artesão fazem o seu trabalho como aprenderam dos antepassados, e são uma espécie em vias de extinção. Sabem que estão a ir para mortos, porque os chineses já invadiram até o Khan el Khalili, o grande bazar do Cairo.

Apesar de tudo, estão localizados junto da mesquita de Qaitbay, o único sítio do cemitério onde de vez em quando aparecem turistas. Um guia leva-me à mesquita, mas por alguma razão não é possível subir ao minarete. Mas sei qual é a vista.

 

 

Quando Eça de Queirós viajou ao Egipto, em 1869, o grande cemitério do Cairo, na base da montanha de Mokattam, já era um lugar onde os vivos faziam uma festa, mas não era ainda uma “cidade”. Era um lugar de peregrinação que impressionava os viajantes europeus. O tamanho dos mausoléus assinalava as personalidades – religiosas ou políticas. Nessa época – como antes e depois – os egípcios eram obcecados com a morte depois da vida. E já os pobres e os marginalizados andavam como abutres, encontrando salvação na morte dos outros.

Só a partir dos anos 60, quando o Cairo, com pouca habitação, recebeu vagas massivas de imigrantes rurais, o cemitério passou a ser uma cidade, com lojas e banco e o som da televisão a sair de mausoléus. As pessoas casam e têm filhos no cemitério; e estes casam e têm filhos no cemitério. Por mais que nasçam gerações, o cemitério continua a ser um cemitério. Em “Viagem ao Egipto”, Eça de Queirós descreveu os cemitérios árabes:

“Apesar de tudo, não inspiram aquele terror nervoso dos cemitérios cristãos (…) Os cemitérios árabes, pelo contrário, têm o aspecto de ruínas. Aquelas pedras luzem, no meio do deserto, antigas, desconjuntadas, e dão a impressão de velhas arquitecturas e não a ideia de fim e de morte.”

É essa ainda a vista do topo da mesquita de Quaitbay: o deserto noutra forma, até à montanha de Mokattam que, dizem os cristãos coptos, foi movida pela fé. A fé move montanhas mas não move os habitantes da cidade dos Mortos.

 

É mãe, não tem outra profissão. O marido vende roupa numa grande avenida comercial. Tem três filhas para cuidar que provavelmente virão a não ter profissão. Teve outra menina que morreu. É uma casa quase só de mulheres. Até no mausoléu está outra mulher: uma princesa Mamluk.

Abir casou e veio viver para aqui contando que um dia o marido conseguisse mudá-los para um apartamento, mas o tempo passa, tem 29 anos e já lhe falta a esperança. Abir tem um rosto redondo e um sorriso de lua, e manda as meninas para o pátio tirar fotografias. É aqui, entre os túmulos, à porta de um mausoléu de uma princesa mamluk, que brincam, como todas as meninas, de princesas.

 

*

 

Desde Cleópatra, não houve muitas mulheres a governar o Egipto. Shagar al-Durr foi sultana durante 80 dias. Depois foi espancada, arrastada e atirada nua para um fosso, por outra mulher. Ao fim de três dias, foi enterrada no mausoléu que tinha construído para si própria. Lá dentro tinha pedido que desenhassem um árvore de pérolas representando o significado do seu nome, Shagar al-Durr, e que escrevessem: “Ontem era como você. Amanhã você será como eu.”

Três meninos brincam na rua com um papagaio de papel. Mohammed, de 10 anos, e Ahmed, de 13, querem ser polícias. Ussain, de 8, quer ser engenheiro. Ussain quando crescer quer continuar a viver na Cidade dos Mortos. Mohammed quer partir. Nenhum deles tem medo de fantasmas. Olham uns para os outros: não, nem pensar, não têm medo de fantasmas. Depois pensam melhor. Correm na direcção de um grande muro amarelo. No cemitério nem todos os sítios são assombrados; só alguns, como este. Quando chegam ao muro amarelo páram, e dizem uma benção: “Besmallah”, “com o nome de Deus, Alá”, e entram. À noite, só aqui vêm se precisarem muito de provar aos amigos que são bravos.

 

 

O menino dança à volta do mastro da faluka enquanto o irmão mais velho canta e bate palmas. A faluka continua a navegar, a vela verde inchando. Quando pára de dançar e se senta a contemplar o Nilo, os olhos azuis ficam sonhadores. Há neste menino que vive no rio a liberdade que os meninos que encontrei no cemitério procuravam ao lançar um papagaio de papel. A faluka é o seu papagaio, ainda que correndo ao contrário nas águas do Nilo. O sol põe-se por trás das palmeiras. É fresco, é tranquilo e os muezzin cantam, “Deus é Grande”. No Cairo, em Agosto, só junto do Nilo se respira. Não é como Alexandria em que o mar é mais forte que o deserto. Em Alexandria, para onde fugi por alguns dias, instalei-me num hotel com vista para o mediterrâneo, para o hotel Cecil, onde ficou com Churchill, e também para a estátua de Gamal Abdel Nasser que acabou com o reinado britânico. Hoje, meia dúzia de estrangeiros vagueiam, percorrendo uma cidade imaginária, das histórias de Alexandre, o Grande, aos livros de Lawrence Durrell e E. M. Forster. O americano com quem me cruzei no hotel parecia ser um desses turistas, mas afinal tinha vindo pelo sal e a brisa. Vive no Cairo, e é tradutor. Ofereceu-me o último livro que traduziu, uma colecção de sonhos que o prémio Nobel egípcio, Naguib Mahfouz, escreveu pouco antes de morrer. Fiquei no quarto, a ler de janela aberta, voltando ao Cairo e ao culto dos mortos:

“Sonho 107 – Num caixão, estava escrito: (…) “Era um tipo de valor, conhecido pela sua má sorte, visto que quase nenhum leitor conheceu os seus muitos escritos. Tantas pessoas vieram para prestar pêsames ou simplesmente para observar, que quando a procissão chegou ao cemitério, era a maior demonstração alguma vez vista numa ocasisão assim. Quando a noite caiu, o nome do falecido vivia nos lábios de todos.”

Quando o marido trouxe Fatma para o cemitério, Fatma teve medo, mas depois habituou-se. Agora até não se importava que os fantasmas lhe pregassem partidas, sempre afastava o tédio. Mas Talaat Harb já era um homem sossegado na vida, quanto mais na morte. Talaat Harb, grande economista egípcio, morreu em 1941 e deixou quatro filhas. Agora vêm as netas todas as sextas-feiras visitá-lo. A família de Talaat Harb trata a família que lhes cuida da campa muito bem e fazem a inveja do bairro. É o melhor túmulo para se morar, sem dúvida, mas ainda assim, Fatma não gosta do silêncio. Aquilo que distingue a Cidade dos Mortos de outros bairros populares do Cairo é o silêncio. Ninguém sabe quantos vivos moram no grande cemitério do Cairo – a estimativa é meio milhão –, mas os mortos são mais. E os mortos têm uma maneira de se fazerem ouvir pelo silêncio.

 

A segunda vez que fui à Cidade dos Mortos fui com Ibrahim el Assal, um guia turístico e egiptólogo que se ofereceu para me acompanhar e traduzir as entrevistas do árabe para o castelhano. Ibrahim vivia no Cairo há muitos anos, mas nunca tinha ido a El’Arafa, o cemitério, nunca tinha conhecido outro egípcio que vivesse ali. Um egípcio de classe média não vai à Cidade dos Mortos, e os residentes da Cidade dos Mortos, na cidade dos vivos, evitam dizer onde vivem. Não fica bem, por exemplo, numa entrevista de emprego.

Saímos da zona sul do cemitério quase ao pôr-do-sol e Ibrahim ia eufórico. Tinha conhecido melhor a sua cidade. E aquelas pessoas, dizia, eram inspiradoras para ele.

Nessa altura, Ibrahim queria continuar a estudar egiptologia. Sonhava ir para o estrangeiro e tinha uma predilecção por inglesas.

Há uns dias, troquei emails com Ibrahim. Casou, foi pai, viu uma revolução na praça Tahrir, e está a fazer o doutoramento em egiptologia. Já não sonha ir para o estrangeiro. Talvez agora os estrangeiros possam começar a sonhar em vir para o Cairo.

Ibrahim não voltou ao cemitério e não sabe se para os habitantes da Cidade dos Mortos a praça Tahrir continua a ser longe.

Há pessoas que andam pelo cemitério de mãos dadas, mas Ahmed Afifi não. Tem 60 anos e é um homem que combate o medo com a postura. A sua arma é a elegância e até nos prédios ricos dizem-lhe bom dia quando passa. Faz almofadas que vende no Khan el Khalili. Irmãos, primos, todos vivem no túmulo de família, e ele acabou por construir casa ao lado. Algumas coisas melhoraram no bairro desde que chegou há 40 anos – já têm água. Mas os preços aumentaram e a população também. 

A filha, elegante como o pai, tem um noivo que a vai tirar do cemitério. Ele está a trabalhar e a juntar dinheiro em Sharm-el-Sheikh. A filha, sim, anda sempre acompanhada, mas por medo dos vivos.

Depois de pousarem para um retrato, o pai afasta-se por uma das ruas largas do cemitério, e a filha continua a estender a roupa, enquanto sonha com uma máquina de lavar, com vestidos que não sejam pretos e velhos, e uma vida sem medo do futuro.

 

No voo de regresso à Europa não conversei com ninguém. Ia cheia de imagens-postais: o Vale dos Reis e Luxor; templos de grandes feitos e colossos de pedra que assobiam oráculos. Comprei souvenirs nos mosteiros cristãos do deserto e nos resorts do mar vermelho. De Alexandria, tinha os poemas de Kavafis, e a imagem dos ombros bronzeados e enrugados duma septuagenária libanesa que deu uma festa de verão junto do mediterrâneo a falar francês como se o Nasser nunca tivesse nacionalizado o Egipto. Do Cairo, levava comigo o olhar dos homens que se sentiam incapazes de fazer uma revolução, acompanhando a todo o momento uma mulher europeia sozinha na rua. Pensava em Ibrahim, com o seu castelhano apaixonado. Mas a imagem mais forte – a imagem que sabia que muito mais tarde iria parar aos meus sonhos – era de um homem com a galabia muito suja, um olhar alucinado, caminhando a meu lado: “Baraka, Baraka”, dizia, estendendo-me a mão. E como eu não percebia, ele insistia: “Baraka, Baraka, Baraka.”

Por trás dele, ainda vejo o castanho de que o Nilo não consegue livrar o Cairo; e o céu daquele azul de muitos séculos sem nuvens; e as casas baixas, ou o que parecem ser casas baixas, mas são túmulos.

“Baraka” quer dizer benção. Tocar num louco, acreditam os egípcios, dá sorte. Tocar num túmulo também.

 

Publicado no caderno Ípsilon, jornal Público, 15-4-2011

por Susana Moreira Marques
Cidade | 24 Abril 2011 | Cairo, cemitério, mortos