"Papéis da prisão", entrevista a Margarida Calafate Ribeiro

Margarida Calafate Ribeiro é investigadora no Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra. É docente do doutoramento Patrimónios de Influência Portuguesa e tem sob sua responsabilidade a Cátedra Eduardo Lourenço, na Universidade de Bolonha. Doutorou-se em Estudos Portugueses em Londres, e tem-se dedicado a questões pós-coloniais, estudos da memória e literatura. Coordenou a publicação dos Papéis da Prisão de Luandino Vieira, a partir dos 17 cadernos com anotações feitas pelo autor entre 1961 a 1972, anos passados no Tarrafal como preso político. A publicação deste importante documento foi o mote para esta conversa.


Luandino Vieira e Margarida Calafate RibeiroLuandino Vieira e Margarida Calafate RibeiroComo surgiu a publicação dos Papéis da Prisão de Luandino Vieira?

Em 2013 realizamos no CES um colóquio intitulado “Memórias de Tanta Guerra – guerras coloniais, guerras de libertação e guerras civis”, com o objectivo de trazer os outros lados da guerra, os seus outros actores. Normalmente a guerra está ligada à personagem do guerrilheiro e do combatente. Daí a ideia de trazer os outros: um clandestino, José Luís Cabaço da parte de Moçambique, e um preso político, José Luandino Vieira, e as mulheres, as que inventam a vida e asseguram a continuidade dentro da anormalidade que é a guerra. E foi neste contexto que Luandino, para nos mostrar o que era a vida de um preso político, trouxe excertos do seu diário.

São 12 anos da vida de alguém. De que modo o ponto de vista de um homem na prisão contribui para uma maior compreensão acerca da luta de libertação?

Os Papéis da Prisão constituem uma análise imensa sobre a luta de libertação, Angola, o que era a nação e o que poderia ser. Mostram sobretudo como este projecto político se conecta com um projecto cultural. É essa diferença cultural que, a prazo, exige a independência política, como Luandino costuma dizer.

Nestes escritos, que não são um livro, podemos encontrar a riqueza literária do universo de Luandino Vieira?

Para além dos diários, correspondência e apontamentos, subtítulo dos Papéis, há muito material iconográfico, uma entrevista do Luandino hoje a olhar para os Papéis e uma cronologia, que mostra por exemplo como através dos diários conseguimos datar a escrita de toda a obra literária do Luandino. Estão no diário todas as grandes questões literárias de como fazer, de como ganhar voz de escritor, o plano dos contos, as personagens inclusivamente desenhadas, como a galinha da “Estória da Galinha e do Ovo”, do Luuanda, que é de uma imensa riqueza.

E está presente a sua ironia?

A ironia sim, para vencer a desilusão e a tremenda situação psicológica que é muito violenta. O lado pessoal irrompe também na saudade da mulher amada e do filho, os elos de sobrevivência fundamentais. Neste aspecto a leitura do texto inicial escrito por mim e pelo Roberto Vecchi [ler abaixo], também sob a forma de fragmentos (que é o grande elemento formal dos Papéis) ajuda. Pelo menos foi isso que pretendemos com  esta introdução para o leitor entrar no livro.

De que modo os Papéis ajudam a entender os movimentos de independência africanos, além da prisão, a clandestinidade, a guerrilha e a organização?

Os Papéis reflectem sobre todos esses elementos na medida em que pensam a existência da nação angolana há muito tempo, bem antes da independência. Uma nação em permanente luta, como desde cedo assinala António Oliveira Cadornega na História Geral das Guerras Angolanas e muito diversa, nos seus povos, nas suas línguas, nas suas culturas. A luta pela independência faz parte dessas muitas lutas que construíram Angola como nação e que foi protagonizada pelos movimentos de libertação e pelo povo angolano.

A quem se dirigia a correspondência nestes apontamentos?

A várias pessoas, mas muito particularmente à Linda, a mulher de Luandino e, através dela, ao filho.

Luandino foi dos presos políticos que ficou mais tempo no Tarrafal, foi vendo chegar e partir várias gerações de companheiros. O livro transparece esse relacionamento interno?

Sim, muito, há várias partes no Tarrafal impressionantes sobre a percepção clara da passagem do tempo e ele ali. Quando chegam ao Tarrafal os presos da UNITA e mais tarde os estudantes, muito mais novos, que Luandino tinha deixado em Luanda ainda crianças, adolescentes e que agora eram seus companheiros de prisão. O tempo é um elemento fundamental dos Papéis, um tempo imenso num espaço confinado, lembrando António Gramsci.

Podemos dizer que o Tarrafal foi mais duro na altura dos presos políticos portugueses do que quando reabre com os presos africanos? E que tipo de presos iam para o Tarrafal e para São Nicolau, em Angola?

O Tarrafal tem de ser compreendido no sistema de campos que o colonialismo português activou ou reactivou justamente para conter as rebeliões, não pode ser visto individualmente, mas no conjunto de campos e prisões de Angola, Moçambique, Guiné, das antigas colónias mas também das cadeias portuguesas onde estavam presos políticos africanos. A Mónica Silva, que é uma das organizadoras dos Papéis vai fazer sair muito brevemente um artigo sobre a importância das prisões de Luanda  (primeiro em inglês) e o Miguel Bandeira Jerónimo como historiador também já tem alguns trabalhos sobre isso. A Conceição Neto, historiadora angolana fundamental para o excelente documentário Independência  tem um imenso conhecimento sobre o caso angolano.

Uma  inevitável analogia se coloca: tivemos activistas recentemente presos pelo mesmo poder político que outrora esteve na resistência. Que tipo de leitura faz desta sobreposição de tempos, e ironias da História?

Há sobreposições evidentes, a história aliás é feita de sobreposições que os contextos modificam. Há semelhanças, mas estamos a falar de coisas diferentes.

Interessam-lhe os estudos de memória e a literatura sobre a guerra colonial. Fez dois livros sobre as mulheres na guerra colonial, tanto aquelas que foram com os maridos para a Guerra e as que estiveram nos movimentos de libertação. Que tipo memórias guardaram as mulheres que foram acompanhar os maridos?

Esse foi o grupo que estudei e que deu origem a África no Feminino, porque essas pessoas viam assim em conjunto – África –  e não Angola, Moçambique, Guiné-Bissau. Era como os portugueses viam. Mas o facto de terem ido, de estarem lá, de verem o que era o colonialismo, a guerra, as cidades, a vida das pessoas, modificou-as, fê-las (a algumas) levantar outras interrogações sobre um mundo aparentemente arrumado. E nesse aspecto é interessante porque estavam na Guerra, mas também na margem, tinham contacto com a população até porque muitas trabalharam lá, como professoras, enfermeiras, etc. E isso modificou-as, fê-las levantar muitas perguntas pelo menos no meio familiar. Eram muito jovens e pela primeira vez estavam longe das peias familiares e de um país atrasado como era Portugal metropolitano e socialmente muito preconceituoso. Portanto, por muito paradoxal que isto possa parecer, foi um momento de grandes medos, mas também um momento de emancipação, de libertação.

As histórias narradas têm sido quase sempre pelo ponto de vista dos portugueses. Quando se começa a ouvir narrações do outro lado? Houve este filme Independência, da Geração 80. Como acha que se pode incentivar a  recolher outras historiografias?

Eu penso que há uma  geração de historiadores muito bons dedicados à questão colonial na sua  grande amplitude local, mas também comparativa. E nada se entende se não se interagir com as outras narrativas. Em Angola o projecto dos Trilhos  (Independência) foi uma revolução e é de uma extrema qualidade, em Moçambique o trabalho de historiadores como o João Paulo Borges Coelho dialoga com os grandes historiadores. O recente livro de Ricardo Soares, o da Lara Pawson, Em nome do Povo, o trabalho notável de Miguel Bandeira Jerónimo só para citar alguns exemplos mostram uma pluralidade de olhares e um diálogo local e internacional. E temos de ver os fenómenos de dentro e de fora, estado neste de fora o de fora da língua portuguesa e em dimensão comparativa. Penso que, nesse aspecto, e em dimensões diferentes os trabalhos de Francisco Bethencourt, mais na área da história, mas sempre num olhar interdisciplinar e os de Patrick Chabal, na área da ciência política entre alguns outros, foram inspiradores para a mudança.

Margarida Calafate Ribeiro e Mónica Silva | Nuno GonçalvesMargarida Calafate Ribeiro e Mónica Silva | Nuno GonçalvesPor exemplo, na literatura universal está em falta essa voz sobre o colonialismo português.

O que me parece fantástico nestes Papéis do Luandino, entre muitas outras coisas, é mostrar um angolano com a dimensão escrita dos grandes lutadores pela liberdade do século XX, nomeadamente africanos. A comparação com Memórias de um Terrorista Albino, com Conversations with my self de Mandela, com There was a country de Chinua Achebe, mas  também com Gramsci, por exemplo, faz todo o sentido.

O que mudou nos últimos anos em relação à disponibilidade para se pensar questões sobre o império e sobre o colonialismo (dentro e fora da academia)?

O tempo necessário, alguma serenidade e, sobretudo no caso português, o considerável investimento feito em formação avançada muitas vezes fora do país pelas  políticas de ciência de Mariano Gago de que todos somos herdeiros. Isso foi fundamental para fazer ciência em todas as áreas em “maior quantidade” e em ambientes internacionais. Finalmente a necessidade que todos nós temos de construir uma ou várias narrativas que dêem sentido às nossas vidas e às nossas heranças num sentido individual (repare a quantidade de testemunhos, etc.) e colectivo.

O que foi o projecto Lendo Angola, com Laura Padilha?

Lendo Angola insere-se um projecto mais vasto que foi publicar ensaios críticos das literaturas africanas de língua portuguesa, não assim em conjunto mas individualizando por países. Foi uma atitude de política de cultura. Nós falamos de literatura portuguesa e brasileira e depois dos africanos em conjunto quando cada um dos países de língua portuguesa tem o seu sistema literário no sentido definido por António Cândido, os seus escritores e o seu cânone até. Isto dará os quatro livros de que Lendo Angola faz parte, se for visto como colecção. A ideia foi também olhar estas literaturas por críticos portugueses, brasileiros, moçambicanos, guineenses, angolanos, etc. mas também por estudiosos destas literaturas fora da língua portuguesa. Isso é fundamental pois só visto bem de fora é que as coisas ganham dimensão e nitidez.  E isso é também um processo de emancipação cultural de várias camadas, e essencial para produzir ciência.

Lançamento de Papéis da Prisão, de Luandino Vieira, na GulbenkianLançamento de Papéis da Prisão, de Luandino Vieira, na GulbenkianAcha que a geração pós-memória, pelo desprendimento maior, mais distância crítica, está mais capacitada para pegar em muitos dos temas do passado recente?

A pós-memória é a recusa a pôr um ponto final na história, é um sistema de requestionamento das nossas heranças, individuais, familiares e colectivas. Não me parece que seja uma questão de desprendimento, volta-se ao tema porque é preciso voltar, porque ele se inscreve na nossa identidade e nessa medida nos interroga. Mas o facto da narrativa que constroem ser composta por diversos fragmentos e, sobretudo, ser um pós-testemunho, um testemunho adoptivo, como dizem alguns teóricos, dá-lhes uma outra oportunidade reflexiva e operacionalidade. Ou seja, as  narrativas com que estão a lidar ou a recuperar e a reescrever não são as narrativas das suas vidas (como, por exemplo, a Guerra Colonial é para um ex-combatente, parte  fundamental, no sentido etimológico do termo, da sua identidade) o que proporciona uma selecção mais cuidada, uma interacção que o contexto modifica e uma reflexão diferenciada.

Pode dar alguns exemplos de abordagens sobre o império de forma criativa (arte, literatura, cinema)?

Nas artes plásticas, na literatura, no cinema por exemplo sobre a Guerra Colonial vemos isso, nos trabalhos da Ana Vidigal, da Margarida Cardoso, nos poemas do Norberto Cardoso ou nos romances de Paulo Bandeira Faria, na fotografia de Daniel Barroca e tantos outros se pensarmos no tema mais vasto do passado imperial português.

 

 

Publicado originalmente no Rede Angola em 21/12/2015

por Marta Lança
Cara a cara | 25 Fevereiro 2016 | entrevista, guerra colonial, Literatura, luandino vieira, Margarida Calafate Ribeiro, mulheres, Papéis da prisão, pos-colonial, Tarrafal