O uso da morte na política é a morte da política, entrevista a Homi Babha

Diz que a globalização tem que começar em casa. Que significa isto?

Quando falamos em globalização falamos de negociar diferenças culturais, estender a noção de direitos, lei, justiça por todo o mundo, de criar novas oportunidades, económicas, criativas, culturais, de desenvolver um conjunto global e ético de ideias e práticas. Todas estas coisas são aplicáveis à situação doméstica. 
No mundo de hoje, em qualquer situação local ou regional temos migrantes, refugiados, estrangeiros, gente que beneficia da globalização e gente que sofre as suas consequências, porque está desempregada devido ao outsorcing, ou porque não está tão equipada tecnicamente como podia. Parece-me que é muito fácil continuar a falar em melhorar as condições algures no mundo enquanto se continua a negligenciar a melhoria de condições em casa.

Refere-se aos países mais desenvolvidos?

E também aos menos desenvolvidos, que pelo processo de globalização têm bolsas de lucro e avanço, mas, de facto, têm grandes quantidades de habitantes imobilizados em níveis de educação, literacia, situação económica que já eram problemáticos há 20 ou 30 anos. A vida dessas pessoas não mudou. 
Portanto, não estou a falar de uma espécie de divisão Norte-Sul.

Concentra-se mais na ideia da globalização como transição do que como transformação. A grande sensação de incerteza que existe hoje, para além das circunstâncias pós-11 de Setembro, vem de não sabermos: transição para o quê?

Acho que sim. É muito fácil, com base nos aspectos bem sucedidos ou lucrativos da globalização, projectar a ideia de uma transformação muito mais optimista. E é exactamente por isso que digo que estamos numa situação de transição e que temos que ser capazes de lidar tanto com a ansiedade como com a excitação que daí resultam. 

O nível de ansiedade cresceu muito depois do 11 de Setembro.

Scramble for Africa, de Yinka ShonibareScramble for Africa, de Yinka Shonibare

Na conferência vai citar a “era do terror”, o “choque de civilizações”, a “missão messiânica” de Bush, “o califato moneteísta” do extremismo islâmico. Que sentido têm para si estes conceitos?

Argumentei contra o uso do conceito “choque de civilizações”. Antes de mais, porque não acredito que as culturas tenham antagonismos regionais ou essenciais. Podem existir sistemas de crença distintos, noções muito diversas de hábitos e práticas, mas não acredito que as culturas continuamente se querem opor ou erradicar. Portanto, considero problemática toda a noção de “choque de civilizações”. 
Os antagonismos entre culturas não são por causa da cultura ou da civilização, mas devem-se a decisões políticas, a matérias geográficas e políticas, à história. As civilizações não estão estruturadas internamente para serem antagonistas. 
A civilização africana opunha-se à civilização cristã ocidental? Não. Não havia choque até haver uma política de colonização. E o mesmo se pode dizer de outras situações. 
O que cria antagonismos culturais é uma rede muito complexa de circunstâncias e escolhas, e para compreender isso é necessário ver as relações políticas, históricas, sociais e morais. Tem muito mais a ver com a forma como evoluíram as relações entre essa culturas - o que é uma discussão histórica - do que com a natureza da cultura ou da civilização, em si.

É um indiano de uma pequena minoria parsi, nem hindu nem muçulmana. Como vê os extremismos religiosos que se desenvolveram a partir do 11 de Setembro? Há um regresso a Deus? E como interpretá-lo?

Se olharmos para a linguagem dos grupos islamistas, há claramente um regresso a Deus. Se olharmos para os fundamentalistas na Índia há um regresso a Deus. Se olharmos para a linguagem do presidente Bush, e lermos o segundo discurso inaugural da presidência, há um enorme regresso a Deus. Se olharmos mesmo para a linguagem do senhor Blair, na Inglaterra, há um regresso a Deus - “A maior parte dos britânicos não queria que fosse para a guerra do Iraque, porque é que foi?”, e ele disse [algo como]: “Bem , sou alguém que acredita em Deus e nos meus princípios, oiço a voz e prossigo”… 
Portanto, sim. No discurso político público há, em geral, um regresso a Deus. 
Mas ao mesmo tempo também penso que a linguagem de Deus tem de ser vista em relação com forças sociais, históricas e tradições políticas. E quando olhamos com atenção vemos que a linguagem de Deus é frequentemente utilizada para justificar determinados actos políticos. 
Por que é que isto aconteceu? Porque removemos da linguagem da política o lugar da emoção, do sentimento, do afecto. Tornámos a política instrumental, super-racionalista e, retirámos a enfâse ética e afectiva da linguagem. 

Esse é o quadro em que o regresso a Deus se dá. 

Exacto. Numa situação em que temos migrações em grande escala, refugiados, movimentos populacionais, uns “media” que quando estamos em Boston nos levam para Bagdad e Bombaim diariamente, quando temos tanto desenraizamento, perigo e transição, é muito importante, em conjunto com um sentido de racionalidade, ter um sentido de emoção, de ética, que fale à nossa imaginação, que dê um sentido de pertença. 
A linguagem do regresso a Deus também tem que ser vista no contexto dessa falta.

'Yog Raj Chitrakar - Memory Drawing', Nikhil Chopra, Installation, 2010'Yog Raj Chitrakar - Memory Drawing', Nikhil Chopra, Installation, 2010

Fala de uma “cultura de segurança dominada por uma política do medo que aliena a promessa democrática”. A democracia está em perigo?

Bem, penso que sim. Não pensa que sim? Na situação que temos hoje, em muitos países da Europa e nos Estados Unidos há uma quantidade de leis ou novos procedimentos parlamentares que têm impacto nos nossos direitos civis. Sabemos que no mundo de hoje, em que por razões de segurança é considerado importante deter ou prender gente, os direitos humanos estão a ser desafiados. Sabemos também que novas estruturas de vigilância e segurança são vistas como necessárias num mundo em que há terrorismo. 
Tudo isto definitivamente lança uma sombra sobre a democracia.

Qual é a alternativa? Como podemos lidar com o medo e a ansiedade, que se tornam também o terreno propício à cultura de segurança?

Não sou um optimista naif ou um anarquista. Claro que precisamos de segurança, por boas e más razões. É preciso ser muito realista quanto a isso. E onde existe terrorismo é preciso mais segurança. 
Ao mesmo tempo, onde há acções preventivas - onde as pessoas dizem “Mesmo antes de sermos atacados temos que ir e assegurar que a oposição será neutralizada, de forma a ficarmos seguros” - haverá sempre uma necessidade de segurança. 
Ou seja, as acções preventivas criam segurança e simultaneamente insegurança. É quase infinito de onde poderá vir o próximo ataque. Mesmo americanos neo-conservadores como William Gaddis dizem isso, quando se tem uma política externa preventiva pensa-se o tempo todo: de onde é que vou ser atacado a seguir? 
Onde existe segurança existirá sempre insegurança e os actos de terrorismo jogam com o outro lado desse jogo. Quando pensamos que estamos seguros, nas circunstâncias mais quotidianas, o terrorismo criará uma sensação de insegurança fatal. 
Aceito totalmente a situação actual e penso que temos de criar, em nome do bem público, tanta segurança quanto pudermos. Então qual é a alternativa? Primeiro, temos que repensar as estratégias de segurança que sempre criam insegurança, seja acção preventiva ou terrorismo. Segundo tem que haver uma maior transparência.

Como podemos ser mais transparantes numa situação de ansiedade e terrorismo?

Bem, julgo que a democracia requer que as pessoas participem nas decisões tomadas pelos líderes. Julgo que temos tido muito menos transparência do que poderíamos, e por isso violámos um dos primeiros princípios da democracia, o debate aberto. 
Defendo que um tempo em que há situações de emergência tem que ser um tempo em que haja a possibilidade de debate. A democracia não é o que é legítimo ou ilegítimo, como um filósofo disse. É a possibilidade de debater o que é legítimo ou ilegítimo. Precisamos de mais e não menos discussão. E também temos de compreender as consequências do que fazemos ao tentar tornarmo-nos seguros, o que cria essas situações de insegurança, para nós e para os outros. 

Neste contexto contemporâneo, vê como central o conceito de “cosmopolitanismo vernacular” - corrente, vulgar. 

Penso que é por aí que devemos começar. Por ver a hibridização da cultura. Não pensar que aqueles jihadis pertencem ao século XIII na Arábia Saudita, que são parte de um mundo oriental ou de outro mundo qualquer diferente do nosso. Muita da gente envolvida [nos ataques] vem de um meio burguês, não passou privações, tomou uma determinada decisão política. O nosso desafio é impedir essas pessoas de tomarem essa decisão. 
Acredito profundamente, como Hanna Arendt, que quando a morte se torna uma parte do processo de decisão política - seja o Estado a tomar a decisão, um indíviduo ou um grupo -, é a morte da política e da sociedade. Se a morte é usada como um valor político mata completamente a política e a vida social.

Como é que a ideia de “dúvida global” ajuda a pensar o mundo, hoje?

A “dúvida global” permite ver e questionar os desenvolvimentos da globalização. Não significa ser negativo em relação à globalização, mas permite-nos ter uma visão equilibrada, perguntar, por exemplo, como é que num país como a Índia temos Bombaim ou Bangalor, muito avançados tecnologicamente, e isso não muda o facto de a iliteracia ser muito pobre, de as infraestruturas serem muito pobres. Permite ver onde estamos e onde deveríamos estar. Dá-nos uma visão ética, das responsabilidades, da justeza, e é a base de uma ética global.

 

Nascido em 1949, em Bombaim, Homi Babha doutorou-se em literatura inglesa e americana em Oxford. Deu aulas em várias universidades americanas, e actualmente é professor em Harvard. 

Considerado um dos nomes centrais dos estudos pós-colonialistas, as áreas de interesse de Bhabha vão dos estudos culturais à globalização, passando pelo cosmopolitanismo. Escreveu sobre Joseph Conrad ou V. S, Naipaul. Na conferência da Gulbenkian cita T.S. Elliot a abrir e várias vezes Michel Foucault, de quem é um herdeiro. 

Foi membro do Comité da Unesco para a Cultura no Terceiro Milénio. É consultor do Instituto de Arte Contemporânea, em Londres, da Fundação Rockefeller ou do Whitney Museum, em Nova Iorque 

Conferencista internacional, foi convidado de múltiplas universidades, instituições e organizações, do Fórum Económico Mundial à Amnistia Internacional. 

Publicou os livros A Measure of Dwelling: Reflections on Vernacular Cosmopolitanism, The Right to Narrate, The Location of Culture, Cosmopolitanism, e Nation and Narration. 

A Newsweek considerou-o um dos 100 pensadores para o século XXI.

 

Originalmente publicado no jornal Público

Lançado pela conferência de Homi Bhabha, o fórum O Estado do Mundo, coordenado por António Pinto Ribeiro, decorreu durante um ano na Gulbenkian, Lisboa, com um ciclo de conferências e uma exposição de artes visuais contemporâneas, em 2007.

por Alexandra Lucas Coelho
Cara a cara | 14 Novembro 2010 | democracia, globalização, Homi Babha, migrações, terrorismo