O Leão de Ouro de El Anatsui

Nascido em Gana, El Anatsui vive e trabalha na Nigéria desde 1975. Durante quarenta anos ele conciliou suas atividades como artista e como professor de escultura na Universidade da Nigéria, Nsukka. Sua atividade como escultor é marcada por uma incansável experimentação com as mais variadas formas e materiais (de bandejas de madeira a tampas de garrafas, passando pelo barro), além de abordar questões históricas, políticas e sociais. Nos últimos anos, vimos as instalações de El Anatsui atraírem a atenção de críticos e colecionadores, ingressando em algumas das mais importantes coleções de arte do mundo. British Museum (Londres), Centre Pompidou (Paris), Young Museum (São Francisco), Metropolitan Museum of Art (Nova York), Guggenheim (Abu Dhabi) são apenas algumas das instituições que adquiriram os trabalhos de Anatsui recentemente. Mas sua indicação por Okwui Enwezor, curador da 56ª Bienal de Veneza, ao Leão de Ouro na categoria “realizações de uma vida toda” permite-nos ver que o reconhecimento internacional da produção de Anatsui, que data dos anos 2000, é relativamente recente em meio a processos de criação que vêm sendo burilados há, pelo menos, 45 anos e que já repercutem, como inspiração, na produção de duas gerações de artistas baseados na África Ocidental.

 

El Anatsui graduou-se em 1968 na Universidade de Ciência e Tecnologia de Kumasi, Gana. Apesar do país ter conquistado a independência em 1957, a universidade onde o artista estudou era filiada à Universidade de Londres Goldsmith,  o que implicou uma formação nos moldes ingleses. Anatsui estudou desenho, pintura e escultura através de métodos europeus e suas aulas de história da arte não abordavam a produção que teve lugar no continente africano. Por outro lado, sua infância em Anyako o colocou em contato com formas e ritmos que, mais tarde, iriam repercutir em sua obra. Irmão mais jovem de uma família com trinta e dois filhos, o artista lembra-se da dedicação de sua família à pesca e à agricultura e, nos tempos livres, à tecelagem e à composição de letras para músicas tocadas com tambores, por seu pai e irmãos. Embora o artista nunca tenha tecido, muitos enxergam os padrões da tecelagem típica de Gana em sua obra. A riqueza desta, agora premiada, trajetória de vida ganha forma em uma produção extremamente original e plasticamente epifânica, mas também em um método de ensino elaborado ao longo dos anos de docência, e cujas orientações podem ser resumidas como segue: busque inspiração na sua história pessoal; olhe o ambiente ao seu entorno em busca de materiais; viaje e traga todas essas experiências para seu trabalho e; crie estratégias para permitir que o acaso irrompa no processo de produção, produzindo novas e inesperadas formas[i].

El AnatsuiEl Anatsui

Sabiamente, Anatsui conseguiu isolar de seus processos de criação os movimentos que lhes dão origem. Deste modo, o que o professor ensinou nos seus quarenta e cinco anos de docência foi mais um olhar e uma forma de se relacionar com as formas do mundo do que um conjunto amalgamado de técnicas que mimetizariam sua própria produção como escultor. Como podemos constatar a partir de um breve percurso pela produção do artista ganense, os quatro traços acima mencionados como parte do seu método de ensino estão na base de sua própria produção artística. Uma de suas primeiras séries de trabalhos foi realizada sobre bandejas circulares de madeira, muito populares nos mercados de Gana. O artista procedeu a gravações sobre estas bandejas utilizando utensílios simples, como facas e varas aquecidas. O conteúdo de tais gravações são símbolos visuais conhecidos como adinkra. Tais símbolos, criados originalmente pelos Akan de Gana, representam conceitos e aforismos. Como Olu Oguibe sagazmente observa, a relação de El Anatsui com os objetos encontrados difere substancialmente dos conhecidos ready-mades, de Marcel Duchamp. Parafraseando o intelectual nigeriano, El Anatsui nunca aderiu à amputação das mãos do artista levada à cabo pelo modernismo, para o artista os objetos encontrados não estão completos, cabe ao artista intervir nestas formas, transformando-as em arte[ii].

El AnatsuiEl Anatsui

As séries em barro e em cerâmica da segunda metade dos anos 70 e as esculturas que o consagraram a partir dos anos 2000 indicam igualmente a potência das mãos do artista para reencantar o mundo, dando a ver sua rítmica e sua contingência. Um de seus mais belos trabalhos em cerâmica, We de Patcham (1979), é particularmente eloquente a respeito do estatuto do objeto encontrado em sua poética. We de Patcham, que significa “Ele vaza mesmo quando lutamos para consertá-lo” consiste em um vaso delicadamente composto a partir de fragmentos de diferentes constituições, cores e texturas. Assim, o artista constrói uma nova unidade, delicada, a partir de fragmentos de unidades passadas que testemunham a inexorável fragilidade da vida. Mas o gesto do artista não é nostálgico nem ressentido, trata-se, antes, de uma afirmação do fragmento como nova objetividade que, tendo se destacado de uma unidade, pode tornar-se peça para composição de novas e transitórias unidades. Esta aposta no objeto encontrado como fragmento de novas e futuras unidades atravessa a produção de El Anatsui e chega até suas esculturas realizadas com tampas de alumínio de bebidas e fios de cobre. É importante sublinhar ainda que estas enormes tramas metálicas não são concebidas para serem simplesmente penduradas, o artista faz questão de que, no processo de instalação da obra, drapeados sejam introduzidos nas peças. Tais drapeados ficam a critério dos curadores e das equipes dos museu, uma forma encontrada por El Anatsui de assegurar a ação do acaso na configuração final da forma.

 

Em um texto sobre El Anatsui publicado no The New York Times em 2009[iii], Alexi Worth identificou uma diferença na recepção do trabalho do artista ganense pela crítica africana e pela crítica internacional. A querela reside na continuidade ou não entre os primeiros trabalhos do artista, em madeira e cerâmica, e as esculturas realizadas com tampas de bebidas, que o alçaram a uma inquestionável posição dentro da cena artística contemporânea. O jornalista cita Enwezor, que identifica nos trabalhos em madeira, em cerâmica e nos tecidos de metal uma lógica e uma poética comuns: a da parte e do todo; além da experimentação com materiais, cujos sentidos são forjados no seio das culturas locais. Já a crítica internacional vê nos primeiros trabalhos de El Anatsui, em madeira e em cerâmica, uma maior ênfase na “africanidade”, tornada mais sutil e espetacular nas últimas esculturas. Justo reconhecimento pela coerência entre uma vida e uma obra extremamente ricas e singulares, o Leão de Ouro conferido a El Anatsui pelas realizações de uma vida toda oferece-nos a chance de revisitar sua obra e (como não?) de reaprender a olhar o mundo e de descolonizar o pensamento. 

 


[i] GEE, Erika. El Anatsui: When I Last Wrote To You About Africa- Educator’s Guide. Nova Iorque: Museum for African Art, 2011.

[ii] OGUIBE, Olu. “El Anatsui: Beyond Death and Nothingness”. African Arts, Vol. 31, No. 1 (Winter, 1998), pp. 48-55+96.

[iii] WORTH, Alexi. “El Anatsui”. The New York Times, 22 de fevereiro de 2009. Disponível em: http://www.nytimes.com/2009/02/22/style/tmagazine/22nigeria.html?pagewanted=all&_r=0

por Icaro Ferraz Vidal Junior
Cara a cara | 27 Abril 2015 | arte contemporânea, Bienal de Veneza, Egipto, El Anatsui, Gana