Maria Ampá não quer criar onça que lhe há-de comer

Chegou-nos às mãos um misterioso livro, com a força do perigo. Intitula-se Maria Ampá, e foi escrito por Maria Ampá. Convidámos o Miguel Castro Caldas para entrevistar a autora. 

 

Quando leio o teu livro, Maria Ampá, sinto como se o livro tivesse ressurgido dos escombros depois de muitos anos enterrado. Quando dizes, logo no início, que desde há dez anos, talvez há vinte ou mesmo trinta, é anunciada uma crise no capital é como se pudesse estar a ler estas mesmas palavras precisamente há dez, talvez há vinte ou mesmo trinta anos atrás, ou mais, há cem. Mas também sinto que podia estar a lê-lo daqui a dez, talvez vinte ou mesmo trinta anos doravante, e que essa temporalidade (há dez anos, talvez há vinte ou mesmo trinta) se estivesse a referir a este tempo de agora. Que tempo é este em que estamos, Maria Ampá, porque não vejo ninguém a apedrejar relógios?

Há dois escombros aqui. Um é o próprio texto escombrado, esquecido, que foi sugado de 2011 para 2015 e soprado e limpo para publicar. Escrevi-o inicialmente em Dakar enquanto esperava uma amiga que estava para chegar de Barcelona e que perdeu o voo, 24 horas de espera numa daquelas pensões azuis com janela para as avenidas do centro que resultou num draft que já tinha tudo o que o texto tem hoje. Estava há demasiado tempo calada e saiu tudo na mesinha da pensão. Há uma frase que entretanto caiu da abertura e que falava muito desse dia em Dakar: “Reuni ideias, discussões e leituras que me atravessam e que considero importantes para os nossos-novos-velhos-tempos. Este texto não é meu, nunca soube o que isso queria dizer.” O outro escombro é o nosso presente, uma montanha tão enorme que sufoco imediatamente na procura de enunciados para te devolver.

O que me parece mais sensato de dizer é que há um tempo que são dois e que temos de trabalhar com a maior lhanura no que respeita a este desdobramento da história, da nossa história, para que se consiga ensaiar uma saída dos escombros. Há um tempo grande, tão longo que até dói na alma, o cosmos, a origem da vida, os primatas bípedes africanos, as eras glaciares em loop infinito até ao fim do sol, o homo sapiens sapiens, o advento da agricultura e das cidades. E há o nosso tempo moderno dos últimos três séculos, o capitalismo, a máquina a vapor e o relógio da estação de comboios, tudo isso que está em todo lado em todos os livros. E depois ainda há o tempo-nós-vivos a pairar, olhar, sobre a montanha de escombros que se acumulam a nossos pés. Que fazer? O Montaigne tem‑me ajudado muito: ele vive e escreve no século XVI, iniciada já a aventura no Novo Mundo, embrenha-se profundamente nos clássicos escritos 1500 anos antes e ensaia o seu presente de uma forma que nos chega até hoje cheia de novidades. Não é por acaso que o Oswald de Andrade faz nascer em Montaigne o seu messianismo brasileiro a partir do texto sobre os canibais – é que ele, Montaigne, funciona de facto como portal de tempo para as várias idades do mundo. Portanto, Miguel, sim, o nosso presente é único, está cheio de grandes novidades, diferenças, que se organizaram nas últimas décadas, e não há dúvida que o combate se faz hoje hoje - mas não está tudo alojado em repetições longínquas, onde, há dez anos, talvez há vinte ou mesmo trinta, ganha a forma de uma aliteração? Resta-nos invocar a ciência da história, mas como messiânicos, como guerreiros.

Voltando ainda ao primeiro escombro é preciso dizer que este renascimento de 2015 só nasce após um sopro doce sobre as minhas vergonhas mais profundas. Pelo meu relógio são horas de perder todas as vergonhas, as timidezes, são horas de tomar o tempo do mundo e de pôr em prática uma espécie de filosofia de pontapé na porta.

1º de Maio, Varela 1º de Maio, Varela

O Maurice Blanchot disse que nomear-me é separar-me de mim, é cantar a minha morte, e tu dizes que manter o meu nome próprio mais de duas vezes é doravante ser mercadoria. E dizer je suis charlie, que quer dizer? É negar que o sou, afirmar a morte de Charlie, ou é fazer mercadoria da morte do Charlie?

Tu queres que eu diga que mercadoria é igual a morte, e que morte hoje já é também mercadoria, está dito. Não conheço o Maurice Blanchot, aprendi muito a não falar de estranhos. E para dizer merda sobre o Charlie Hebdo prefiro estar calada, estamos em guerra há muito tempo, nunca deixei de estar em guerra na Guiné-Bissau e alguns amigos de Nova Iorque dizem que la guerre est à peine commencée. Que te posso dizer? Posso contar-te uma história de guerra que ajude a esquecer a Europa. Meu avô era cassanga, uma etnia hoje com meia dúzia de pessoas, cuja extinção é explicada por uma revolta das mulheres contra os atos despóticos do chefe Siraband, elas fizeram greve de sexo e obrigaram os homens a fazer-lhe uma armadilha e a matá-lo.

 

Dizes que a primeira tarefa do insurrecto é a dissolução do “eu”, é tornar-se água, be water my friend. Dizes: “e se for na físico-química da água que se descobre uma filosofia da coexistência entre dissolução e ligação?”. Mas não é a água também e em água que o capitalismo nos quer? Tudo é fluído, no capitalismo, tudo é friendly, muda de forma, tudo é flexível no capitalismo como Bruce Lee. O Marx disse que não há um átomo no valor de uso da mercadoria, mas a água é composta por dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio. Em que é que ficamos?

Ficamos na contradição, único lugar sossegado neste mundo. A resposta está toda dentro do texto. Pretendo jogar com sentidos opostos, onde a confrontação de contrários possibilita não só uma melhor iluminação de cada lado, pela sua negação permanente, mas sobretudo a génese de novidades intermédias, pela circulação em espiral das negações, choques vários, igualdades surpreendentes, etc. Trata-se de uma brincadeira do conhecimento com milénios, cujo melhor e mais antigo jogador é o Lao-Tse, que disse, por exemplo, que “o caminho do progresso parece retrógrado”. O Marx também jogou este jogo. Em relação à físico-química da água, repara que essa frase que citas pode ser sempre melhorada e ampliada - e se for na físico‑química da água que descobrimos uma filosofia do contra‑poder ao observar a coexistência flagrante entre dissolução e ligação? Miguel, a identidade “insurreto” tem um “programa histórico” que começa pela “dissolução do eu”.

 

Quando li há uns anos a Insurreição Que Vem, do Comité Invisível, gostei muito da primeira parte que cartografava a situação em que estávamos, com uma linguagem que me fazia pensar em novas possibilidades; mas de repente, a segunda parte parecia um livro de receitas, traçando normas e regras do que era preciso fazer. Portanto, embora reconheça que o teu livro vem de uma linha comité-invisiveliana, gosto mais de ti, porque no que se refere à emancipação, em vez de caíres na armadilha de ditares em que deve ela consistir ou em que direcção deve caminhar (como se isso fosse possível), afirmas com muita força que o que é preciso é fazer a sua genealogia, a partir da revisão das derrotas e dos derrotados da história, uma espécie de seta virada ao contrário, escovar a história a contrapelo, como diz o Walter, your friend, não é?

Maria Ampá não quer criar onça que lhe há-de comer.

 

 

As Edições Mosca-Brabu foram fundadas em 2013 com um primeiro livro: Ndjol, Ndjol - Djumbai di bantaba di Quinara - contos da região de Quinara, sul da Guiné-Bissau, o primeiro livro escrito em lingua biafada (com tradução em crioulo guineense). O livro de Maria Ampá é o segundo livro lançado por esta editora. A Mosca-Brabu está aberta a propostas de livros para publicação sobre, ou que interessem, à Guiné-Bissau, e que sejam um pouco como a mosca que lhe dá nome: que ferrem, doam, e façam um pouquinho de sangue.

Escreve para moscabrabu2013@gmail.com para encomendar o livro de Maria Ampá. Custa apenas 3, 5 eur.

Livrarias onde pode encontrar Maria Ampá:
[LISBOA]
Livraria Letra Livre - Calçada do Combro 139
Livraria Pó dos Livros - Av. Marquês de Tomar 89
Livraria Ler Devagar - Rua Rodrigues Faria 103 (LX Factory)
Associação Zona Franca dos Anjos - Rua de Moçambique 42
Livraria MOB - Rua dos Anjos 12F
[BISSAU]
Centro Cultural franco-guineense (em breve).

 

 

por Maria Ampá
Cara a cara | 19 Fevereiro 2015 | Biopolítica, Charlie, Edições Mosca-Brabu, geopolítica, Guiné Bissau, identidades, insurreição, Maria Ampá, revolução