José Mário Branco, a eterna inquietação

Músico, compositor, artista multifacetado, activista cultural, social e político… José Mário Branco, 68 anos, do Porto, “muito mais vivo que morto, contai com isto de mim, para cantar e para o resto”.

“FMI, não há força que detenha o FMI” podia ser uma citação actual a propósito da inevitabilidade do resgate português pelo Fundo Monetário Internacional. Mas não, é um excerto de um manifesto cultural português do final dos anos 70, o grito catártico de desencanto de uma geração, elaborado por José Mário Branco.

“A música é para ele uma forma de falar com os outros, dar aos outros, receber dos outros. Se há pessoa que é a negação do egocentrismo é o José Mário Branco”. Quem o diz é a actriz e sua companheira Manuela de Freitas, mas, entre a firmeza e a fragilidade, entre o sonho e a desilusão, entre o rigor e a indisciplina metódica, o altruísmo é, a par da verticalidade, um traço consensual por aqueles que lhe são próximos. Relativamente a este último aspecto, o investigador, activista marxista e amigo de longa data João Bernardo acrescenta: “Foi dos poucos em Portugal que manteve sempre os seus objectivos de vida idênticos, mas sem esclerosar, abrindo e adaptando a novas circunstâncias”, algo visível no seu percurso.

A infância sofrida passada em Leça da Palmeira, com um ambiente familiar conturbado, teve, segundo o próprio, duas consequências importantes: “a tendência para os grandes valores e a paixão pela música, em particular pelo violino”. Uma das suas primeiras memórias, com cerca de 4 anos, é de ter sido apanhado a chorar agarrado a um rádio onde tocava “Minuetto” de Boccherini, enquanto dizia “Eu quero tocar ito”. Membro de uma família modesta, só alguns anos mais tarde José Mário Branco teve o seu contacto mais a sério com o violino (já depois de uma experiência com o piano), quando, no início do liceu, os seus padrinhos, mais abastados, o inscreveram no Conservatório do Porto. Mas a experiência, com “um bom violinista, mas um péssimo professor”, foi um autêntico “assassinato pedagógico”, o que o levou a deixar a música em segundo plano.

A religião e os primórdios do activismo político

Entretanto, a questão da fé cristã acompanhou-o até meados da adolescência. Não só pela formação predominantemente católica, ampliada pelo facto de ter um tio padre, mas também pela necessidade de “sublimar a infelicidade da infância”. Numa altura em que o lado cultural estava muito mais presente por via da literatura do que da música, os primeiros anos de liceu foram marcados por um forte activismo numa instituição católica progressista, a JEC (Juventude Escolar Católica). Apesar dos problemas da infância, teve “sempre um feitio muito extrovertido, muito comunicativo, o que o levou a ganhar grande notoriedade no liceu”. Assim, tornou-se chefe da JEC da sua escola, o que lhe permitiu, nas mediáticas eleições presidenciais de 1958, ser “o único aluno do liceu a poder usar o selo de campanha de Humberto Delgado na lapela, sem ser perseguido por isso”.

Nos últimos anos de liceu, José Mário Branco e uns amigos formam uma espécie de tertúlia de poesia e música, que viria a colaborar num suplemento juvenil do Diário de Lisboa. Começava aqui um “esboço de movimento de oposição ao regime e de expressão artística e poética”. Em simultâneo, inscreve-se na recém-inaugurada Escola de Música Parnaso, numa experiência pedagógica completamente diferente da do Conservatório, que lhe permitiu consolidar a paixão pela música e em que destaca a formação em Etnomusicologia, com Luís Monteiro, um “conhecedor extraordinário”. É também neste período que percebe que a visão que tem do cristianismo não se exprime através da igreja católica e, numa espécie de instinto inquieto, tal como milhares de jovens da época e muito influenciado pelas notícias que iam chegando da Revolução Cubana, “dá o salto directo de uma igreja para outra”, o Partido Comunista Português. “Era a única maneira de fazer qualquer coisa a sério”, diz José Mário Branco de forma clara, mas pausada, entre duas baforadas pensativas de cigarrilha.

Depois de um percurso académico muito positivo no liceu, a frequência em Economia na Universidade do Porto não correu bem “por causa da Matemática”. Decide candidatar-se a Histórico-Filosóficas e, durante o período de transição, tem o seu primeiro emprego remunerado na rádio, nos Emissores do Norte Reunidos, como “locutor, na época uma espécie de faz-tudo”. Inscreve-se na Faculdade de Letras de Coimbra em 1961/62, onde colabora no jornal académico Via Latina, tem a sua primeira experiência teatral no CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) e mantém “contacto estreito com a Associação Académica de Coimbra, dominada pela esquerda”.

Também neste ano lectivo, por influência do Partido Comunista, intervém num trabalho organizado em prol do movimento estudantil nos liceus. José Mário Branco recorda particularmente a comemoração do dia do estudante de 1962, no Estádio Universitário de Lisboa, com forte repressão policial, em que carregava uma mala cheia de jornais “Avante”, e o facto de ser preso umas semanas depois pela PIDE. “Puseram-me com cerca de 20 pessoas na mesma sala, olhámos uns para os outros e percebemos tudo: isto é a estrutura central do partido. Eles sabiam mais de mim do que eu próprio”, refere. Uma prisão de 6 meses, “traumática, inglória e onde não havia nada a defender. Esconder o quê, se eles sabiam tudo? Defender quem, se eles conheciam toda a gente?”.

A dura opção do exílio

Quando é libertado, regressa ao Porto, volta para a rádio e inscreve-se no curso de História da Faculdade de Letras. Neste período, tinha-se já iniciado a Guerra Ultramarina e era forte a polémica no Partido Comunista. O aparelho do partido defendia a participação na guerra, enquanto, para jovens como José Mário Branco, essa hipótese era algo que o inquietava, que o repugnava: “Está o camarada africano do lado de lá com a sua arma, eu estou do lado de cá com a minha. Não nos vamos pôr à conversa, vamo-nos pôr aos tiros, a matar-nos uns aos outros. O que é isto?”. É nesta altura em que começa a pensar seriamente na possibilidade do exílio.

O “clique” surgiu na faculdade, com um trabalho livre da disciplina de “Pré-História”. Inspirado pelas ideias marxistas e cristãs heterodoxas, resolve fazer algo sobre a origem da vida e a evolução das espécies. Com base nas suas “convicções colectivistas”, decide mostrar o trabalho aos colegas para o criticarem e poder melhorá-lo. Perante isto, o Padre Cândido, um dos seus colegas e que mais tarde veio a saber-se ser informador da PIDE, diz-lhe: “Se apresentas este trabalho na aula, és expulso da faculdade”. Foi a gota de água e, na clandestinidade, sem qualquer apoio do partido, com pouco dinheiro e apenas com um nome e uma morada de um contacto arranjado a título pessoal por um funcionário do PCP, parte para Paris em Junho de 1963.

Chega à capital francesa sem conhecer ninguém e a tentativa de encontrar a pessoa que o poderia auxiliar revela-se infrutífera. Nos primeiros tempos, foi a “luta pela sobrevivência”, refere. Começa por trabalhar como operário numa fábrica, mas, fruto do conhecimento que tinha de várias línguas, é depois convidado para passar para os escritórios da estrutura. Em termos políticos, depois de uma falhada reintegração no sector do PCP de Paris (“fui corrido porque eles consideraram que me dava com maus amigos”), participa numa estrutura de natureza maoísta, o Comité Marxista Leninista Português (CMLP). João Bernardo, que o conheceu neste período, destaca o facto de ser uma pessoa “culta e delicada”, um “gentleman no meio de bandidos de baixo estofo” dessa instituição. José Mário Branco ri-se, mas prefere a caracterização: “um artista no meio de políticos de esquerda”.

O impulso do talento artístico

Em meados dos anos 60, um episódio é decisivo para o retomar da vertente artística. Um primo da sua primeira mulher, de quem já tinha um de dois filhos, deixa em casa de José Mário Branco uma viola, um “instrumento em que nunca tinha pegado”. Influenciado por Zeca Afonso (com quem ainda não tinha contacto pessoal), pela música francesa da época ou pelos temas da Guerra Civil Espanhola, começa primeiro por cantar e tocar temas de outros músicos, para depois passar a compor canções originais. Numa primeira fase, algumas canções em francês, “que viriam a ser importantes no Maio de 68”, as Seis Cantigas de Amigo, a convite de Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça, os grandes dinamizadores das recolhas etnográficas em Portugal, ou o single A Ronda do Soldadinho, que, segundo João Bernardo, “vai ajudar a mobilizar as associações de estudantes contra a Guerra Colonial”.

Entretanto, ainda antes do seu primeiro LP, Mudam-se os Tempos, mudam-se as vontades, lançado nos inícios da década de 70 e amplamente considerado como um marco discográfico da música portuguesa, começa a tocar em diversos espaços. Não só em França, mas também na Suíça, na Alemanha, na Holanda ou na Itália, para as comunidades portuguesas destes países e também para “pessoas progressistas de lá, que organizavam coisas de solidariedade com a luta anti-fascista e com os povos das colónias”.

Surpreendentemente, num concerto conjunto em Paris, José Mário Branco foi acusado, tal como Zeca Afonso (principalmente), Sérgio Godinho ou Luís Cília, de “agentes do fascismo” por membros de uma corrente maoísta que viria a dar origem ao MRPP. “Eles apuparam-nos e diziam que aquilo era um choradinho e que a PIDE devia estar muito agradecida por nós estarmos a desmobilizar as pessoas e não lhes darmos as directivas revolucionárias justas. Pretendiam algo mais panfletário”. Esse espírito de intervenção, determinado e inquieto, mas sem esse lado panfletário, foi uma preocupação que manteve ao longo dos anos, como destaca o seu sobrinho António Branco, que só o conheceu mais tarde e com quem viria a ter colaborações artísticas: “Ensinou-me sobretudo uma atitude: a arte como compromisso, sem ser panfletária; a busca incessante da qualidade artística na arte politicamente comprometida”.

O regresso a Portugal e os tempos do PREC

Os dias do exílio foram difíceis, mas, “para conseguir ir vivendo dentro do possível”, José Mário Branco manteve a seguinte postura: “Eu estou aqui até ao primeiro minuto em que possa voltar a Portugal, mas vou-me comportar como se estivesse aqui a vida toda”. Até que, na madrugada do dia 25 de Abril de 1974, o “sonho tornou-se realidade”. O regresso não se deu de imediato, mas apenas uns dias mais tarde, quando foram satisfeitas as duas condições que entretanto tinha imposto para voltar: o fim da Guerra Colonial e a libertação de todos os presos políticos.

Eram os primeiros dias do PREC (Processo Revolucionário em Curso) e o seu primeiro pensamento quando chega a Portugal é: “E agora o que é que faz um cantor?”. É por isso que, nessa mesma noite, participa numa reunião onde se criam as bases do futuro G.A.C., o Grupo de Acção Cultural. “Foram cerca de 800 espectáculos, em 2 anos e meio, corremos o país de lés a lés, em fábricas, eiras, pavilhões, comícios… tudo”, refere a propósito do percurso activo do G.A.C.. Contudo, viria a abandonar o projecto, em virtude de grandes divergências com os “comissários políticos da UDP que queriam controlar o GAC”. “Eu estava na política porque era músico, enquanto eles estavam na música porque eram políticos”, refere. Em paralelo, participa num processo agregador de algumas correntes maoístas, que viria mais tarde a dar origem precisamente à União Democrática Popular (UDP).

Todo esse lado político, quer na sua vertente artística, quer fora dela, é decisivo para que José Mário Branco seja hoje amplamente considerado um músico de intervenção. Esse rótulo é peremptoriamente criticado pelo filósofo e seu amigo desde esta altura, Trindade Santos: “Não é pela intervenção ou contra a intervenção que eu gosto dele, mas como músico, pela obra que faz, independentemente do espectro criativo”. Esse facto não incomoda José Mário Branco, embora não goste da etiqueta. Por um lado, por ser, do ponto de vista sonoro, limitado para alguém que se expande em termos líricos e sonoros para outras áreas, como canções de amor, o jazz ou a música erudita. Por outro, por considerar que todos são músicos de intervenção: “Parece que o Tony Carreira não é um cantor de intervenção. Então não é? Só que intervimos de forma diferente: eu para tentar despertar consciências e ele para adormecê-las”.

O teatro e a “organização imperceptível”

Na segunda metade da década de 70, é convidado pela Comuna, Teatro de Pesquisa, para funções de actor, outra das suas grandes paixões. É aqui que conhece a sua actual companheira, Manuela de Freitas, mas a primeira impressão da actriz sobre José Mário Branco não foi a melhor: “Era uma pessoa muito desagradável. Fazia-me confusão que uma pessoa tão extraordinária artisticamente, tivesse um comportamento politicamente tão duro e sectário”. Pouco a pouco, essa opinião começa a mudar, em função de “perceber que era fruto de uma entrega forte às suas convicções políticas e aos projectos em que estava inserido” e também fruto do contacto pessoal e profissional entre ambos, como mostra o tema “Inquietação” (“Ensinas-me a fazer tantas perguntas, na volta das respostas que trazia”), composto neste período e precisamente dedicado a Manuela de Freitas.

Desta fase, Trindade Santos, também com ligações fortes à Comuna, recorda o episódio em que, na adaptação de uma obra de Brecht, Manuela de Freitas teria de cantar uma canção, algo que, segundo o filósofo, seria impossível, pois “toda a gente que conhece a Manuela sabe que ela é completamente incapaz de cantar afinado”. Contudo, na sua forma muito particular de trabalhar, José Mário Branco conseguiu que o resultado final fosse “maravilhoso”. O exemplo daquilo a que Trindade Santos chama de uma “organização imperceptível”, de um modo de criação interior, sem um método observável e que Manuela de Freitas explica como “estando já tudo na cabeça dele”, quando aparentemente o trabalho ainda não se iniciou. “A base disto é a organicidade que o teatro me ensinou. Quando tens um objectivo criativo, se te pões nele a sério, as coisas aparecem”, remata José Mário Branco.

O grito de alma, a aclamação crítica e as parcerias artísticas

Em Fevereiro de 1979, após a sua expulsão da Comuna, por divergências várias, e alguma cisão nos movimentos políticos a que pertencia, escreve uma das suas criações mais importantes: o “FMI”. Define-o como sendo o reflexo do seu estado e de toda uma geração com a desilusão do pós-25 de Abril e “uma operação de resolução de problemas pessoais, partilhada com muita gente” e não tem dúvidas em referir que a essência do texto permanece actual. O tema só viria a ser apresentado publicamente nos inícios da década de 80 e editado no duplo disco Ser Solidário, de 1982.

A partir de uma dada altura a aclamação da crítica era inquestionável e “tornou-se socialmente claro e evidente que o José Mário Branco era um compositor extraordinário, que rompia com os cânones e cuja música era mais rica e complexa”. Quem o diz é o amigo pessoal, advogado e ex-ministro da Cultura, José Pinto Ribeiro, que só o viria a conhecer no final da segunda metade dos anos 80, destacando as críticas positivas que vinham de jornais tendencialmente próximos de quadrantes políticos bem diferentes, como era o caso do Independente.

Desde esta fase e até aos dias de hoje, José Mário Branco encetou uma série de parcerias artísticas. Segundo José Pinto Ribeiro, enquadra-se na sua lógica de “prazer e valorização do trabalho colectivo, de quebrar o isolamento do processo de criação solitário, sem fazer concessões, sem sacrificar a exigência ou a qualidade”. Assim, efectuou colaborações com nomes como Carlos do Carmo, Camané, Janita Salomé, os Gaiteiros de Lisboa ou o seu sobrinho António.

A postura familiar peculiar e a coerência de princípios

Quando confrontado sobre eventuais contrastes entre a postura pessoal ou familiar e profissional, António Branco não vê diferenças essenciais. Salienta a generosidade do tio nas diversas vertentes da vida, sem corresponder ao “cliché e sem lamechices na relação com os familiares mais próximos”, o que não impediu que todos lhe guardassem “enorme amor e respeito”. Fruto deste tipo de visão familiar algo peculiar, consegue ter um distanciamento suficiente para analisar com objectividade o percurso artístico dos seus descendentes, optando por “manifestar o seu incómodo e afastar-se um pouco do assunto” quando algo não lhe agrada, como é exemplo a presença de um neto numa certa série juvenil.

Em contrapartida, Manuela de Freitas considera que há certas diferenças, que existe uma “fragilidade e uma insegurança a título pessoal, que não se nota no plano artístico”. Um pouco em contradição com o que defende José Pinto Ribeiro: “acho que o Zé Mário não é nada frágil, nem inseguro. Ele é firme e inabalável de princípios e valores.” Ao invés, considera que o músico é, sim, incapaz de contemporizar com o erro e com a maldade, o que faz com que se refugie numa certa solidão. Juntando isto ao facto de José Mário Branco odiar o lado com menos substância do contacto social, pode dar a imagem de que se está na presença de uma espécie de “bicho do buraco”, algo que o próprio rejeita totalmente: “Tenho imensos amigos, converso imenso, só não suporto a futilidade”.

A postura de grande exigência a vários níveis tem, segundo António Pinto Ribeiro, uma excepção em relação à inocência das crianças e, em particular, no que se refere aos netos: “É o espaço de afecto acrítico ou de bálsamo”. Já o próprio José Mário Branco considera que foi também uma espécie de reencontro com a infância, até pelo facto de, em virtude do seu profundo activismo, ter sido um pai algo ausente.

A cultura de exigência, de firmeza de princípios e de não cedência estão presentes em diversas áreas. Em termos económicos, João Bernardo recorda o episódio em que a GALP requereu permissão para usar o tema “Eu vim de longe, eu vou p’ra longe” num anúncio.

José Mário Branco recusou, realçando que, em contrapartida, autoriza “tudo o que não seja para efeitos comerciais”. Já o facto de tocar em certos espaços como casinos, é algo que não o incomoda, referindo que não faz distinção entre lugares, desde que haja as condições para estar com o público com o seu repertório. “Até já cantei em igrejas”, remata.

A entrada no século XXI, o presente e o futuro

Em termos artísticos, a recusa do facilitismo, as diversas parcerias e uma falta de ambição de carreira pessoal mais sistematizada terão contribuído para que tenha lançado apenas dois discos de originais nos últimos 20 anos. No entanto, cada disco não é apenas mais um e a crítica continuou a fazer-lhe fortes elogios. Em relação ao último, Resistir é vencer, de 2004, dedicado à causa timorense, Jorge Mourinha terminava assim a sua análise no jornal Blitz: “sendo música de resistência à velocidade cada vez mais vertiginosa com que tudo sucede hoje em dia, Resistir é vencer é um convite a parar para ouvir. Seria de uma surdez absoluta e militante não o aceitar”.

Neste disco, participaram como convidados Fausto e Sérgio Godinho, com quem manteve “sempre um forte companheirismo” e já “com o olho no projecto Três Cantos”, que reuniu no ano passado os três músicos. Para além deste projecto, mantém parcerias pontuais (a próxima será com o Fausto, na elaboração do último volume da trilogia musical dedicada à Diáspora Lusitana), musicou a peça teatral “1974” e foi o responsável pelo songbook da obra de Zeca Afonso.  A este propósito, Trindade Santos destaca, de uma forma mais global, o “trabalho invisível, de uma grandeza e de uma humanidade raras, efectuado na perpetuação da obra do Zeca desde a sua morte”.

Na vertente política, é consensual nas pessoas que lhe são próximas que manteve sempre uma postura coerente e inquieta. Numa apresentação cultural, disse há uns anos que “tinha uma boa vida, mas que ser de esquerda é nunca estar bem com o sofrimento dos outros”. Mantém esta ideia, realçando também a sua concepção cristã deste pensamento, “num cristianismo quase não religioso, mas histórico e social”. É isto que o leva a manter uma forte intervenção pública, quer em iniciativas pontuais, quer em projectos como o jornal Mudar de Vida ou o site Passa Palavra.

Este espírito de inquietação reflecte-se nas diversas vertentes da vida de José Mário Branco, nomeadamente nos hobbys. Manuela de Freitas realça as fases em que descobre que gosta imenso de algo menos previsível, como puzzles ou fazer pão, para mais tarde abandonar esses prazeres em definitivo. José Mário graceja, dizendo que é capaz de ser “próprio do signo dos gémeos, esse tipo de picos de entusiasmo”.

O destaque de João Bernardo vai para, no contexto artístico, as “palavras claras e não difusas” de José Mário Branco, “que rompe com uma tradição portuguesa”. Em termos de discurso, poderá também ser exemplo disso quando o artista refere que a política cultural dos últimos governos foi péssima, independentemente de ser amigo pessoal do ex-Ministro da Cultura. Ou quando diz que “o problema é deles, o resultado do 25 de Novembro está-se a ver agora”, quando confrontado com a forma “embevecida” (caracterização de João Bernardo) como pessoas com posicionamentos antagónicos no PREC reagem à sua música em ocasiões comemorativas.

Ou até quando, numa vertente mais filosófica, José Mário Branco mantém um optimismo relativo em relação ao futuro e diz: “A revolução é concretíssima se começarmos por fazê-la dentro de cada um de nós”.

por João Torgal
Cara a cara | 12 Abril 2011 | FMI, José Mário Branco, música de intervenção