Germano de Almeida, o contador de Estórias

Em 2006, Germano Almeida publica Eva, o seu décimo quarto título e é curioso verificar que ao longo dos anos, e já lá vão dezassete desde que publicou o primeiro livro, O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, tem reiteradamente afirmado não se considerar um escritor, mas sim um contador de estóreas. Explica a diferença pelo facto de que o que verdadeiramente lhe interessa é ter uma estórea e alguém a quem a contar. A forma só lhe importa na medida em que serve o conteúdo e os recursos estilísticos ou linguísticos que utiliza estão submetidos às necessidades do enredo que é, de facto, a sua prioridade. Ele pertence à geração que teve o privilégio de entrar no mundo da ficção pelas palavras ouvidas e não pelas palavras escritas, e por isso não é de estranhar que essa marca da oralidade esteja tão claramente presente nas suas obras.

Se lermos o que escreveu sobre nho Quirino em A Ilha Fantástica 1 perceberemos o fascínio sobre ele exercido por esse velho contador de estóreas, dono de um talento tão extraordinário que, quando o autor, anos depois, leu a História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, confessou: “não a achei nem tão maravilhosa nem tão poética como contada por nho Quirino” (I. Fantástica, p.52). Na tradição oral cabo-verdiana, seja ela de raiz europeia, africana ou oriental, encontramos todos os ingredientes necessários à ficção: as aventuras, as histórias de amor mais românticas lado a lado com os casamentos por interesse, a coragem heróica e a personagem pícara, transformada em herói por acaso, a vitória do bem sobre o mal, mas também a vitória da astúcia, do engano e da traição, uma visão fantástica e mágica do mundo que não exclui o olhar pragmático e materialista desse mesmo mundo, enfim o universo encantado das fadas e princesas coexistindo com a insaciável fome de Ti Lobo e as deslealdes do seu sobrinho que, afinal nada são, quando comparadas com a terrível traição que vitimou Blimundo.

A voz e os gestos que os narradores usam para dar vida a cada personagem, a mistura do português e do crioulo, conforme a emoção ou solenidade do momento, os saltos narrativos com o conto a voltar atrás sempre que necessário, tudo isto que se encontra nos tradicionais contadores de estóreas é retomado por G. Almeida nos seus romances. A forma como descrição, narração e diálogo se fundem, os saltos temporais, a técnica rápida e impressionista com que caracteriza os personagens, o discurso indirecto livre ou a mistura do português e do crioulo, perfeitamente adequados à fluência e coloquialidade da narrativa, são exemplos do modo como o autor incorpora essa herança.

 

A magia e o poder das palavras 

Apesar duma certa ligeireza negligente com que fala habitualmente da sua escrita e dos seus livros, assumindo-se como alguém que escreve fundamentalmente por prazer e para se divertir2, a escrita tem, também para ele, o extraordinário poder de ser libertadora e indutora de mudanças. Entre 1989 e 2006, publicou doze obras de ficção e outras duas que, sendo embora de história, nos são contadas como se de ficção se tratasse. Estou a referir-me a O Dia das Calças Roladas e Viagem pela História das Ilhas. Está editado em onze países, traduzido em nove línguas e poderia continuar a citar números, relativos a datas de escrita ou de edições e número de edições em Cabo Verde ou no estrangeiro, mas a verdade é que não me lembro de alguma vez lhe ter lido ou ouvido, qualquer referência ao poder mágico dos números. Quanto às palavras é outra questão, não pode haver dúvidas sobre o extraordinário poder que lhes atribui. Um prazer quase físico e misterioso como podemos comprovar pelo relato que nos faz do dia em que Craveiro Lopes chegou á sua ilha natal, Boa Vista. Nessa soleníssima ocasião, o então administrador, impecavelmente fardado, leu o discurso de boas vindas lamentando “que as suas descoloridas palavras não traduzissem para o presidente todo o êxtase e subjectividade que sentíamos naquele memorável dia e o narrador acrescenta olhei em redor e disse alto: êxtase, subjectividade, e logo subiu um, cala a boca, menino de trampa!, mas mesmo assim fiquei repetindo êxtase, subjectividade” (I.Fantástica, p.97). Palavras estranhas e talvez tão poderosas como sésamo, ou cubic e cushac, que são os correspondentes em crioulo para abrir ou fechar portas e que Ti Lobo, na sua incontrolável ‘manhenteza’ sempre esquecia ou trocava (Parson, 1968, p.68).

Mas as palavras não são um fim em si mesmas, têm sempre uma utilidade, um objectivo a atingir, seja libertar, transformar ou seduzir. Conta Germano Almeida, que começou a escrever aos 16 anos como forma de exorcizar os seus medos. Tudo aconteceu depois de um dramático naufrágio nos mares da Boa Vista e de ter começado a ser perseguido pelos defuntos que lhe apareciam a assombrar as noites. “Passava o tempo a imaginá-los morrendo no mar e um dia comecei a escrever o que via. Escrevi uma longa estórea. Durante esse tempo convivi com eles, tu cá tu lá, acompanhando-os no alto mar lutando com a angústia da morte. Vinguei-me transferindo para eles o medo que vinha sentindo e terei mesmo tido a maldade de deixar que um ou outro fosse comido por tubarões no meio de gritos de cortar o coração. O certo é que no fim estava completamente liberto” (Almeida, 1997).

Função semelhante tiveram as estóreas, pela primeira vez publicadas na revista Ponto & Vírgula, e mais tarde reunidas em “A Ilha Fantástica”, que começaram a ser escritas no ano de 1968, em plena guerra no Norte de Angola “para reinventar a tranquila paz da ilha da minha infância no angustiante silêncio daquela imensidão desconhecida e hostil” (I. Fantástica, p.9).

Também  para se libertar escreveu Os Dois Irmãos - história real de um crime de fratricídio ocorrido na ilha de S. Tiago, tendo G Almeida, na qualidade de agente do Ministério Público sido responsável pela acusação - pois muitos anos passados deu por si a sentir que na época do julgamento não tinha compreendido inteiramente o acusado e começou a duvidar da justiça feita, ao perceber “que ‘André’ nunca mais me tinha deixado em paz”, como consta em nota prévia ao referido livro.

Escreve ainda por dever, o dever de denunciar e alertar. Com O Meu Poeta e A Morte do Meu Poeta põe a nu o oportunismo, a arrogância e os desmandos de quem se instala no poder, seja em regime de partido único seja em pluripartidarismo. Como afirmou em entrevista, não “se escreve impunemente. Tem-se sempre alguma mensagem. Não há textos inocentes” (Sepúlveda, 1995). De tal forma acredita no poder da escrita que nas badanas da edição de A Morte do Meu Poeta lamenta, com alguma perplexidade, que as denúncias feitas não tenham sido suficientes para transformar a realidade. 

A preocupação em contribuir para que se faça justiça, está de novo presente no livro O Dia das Calças Roladas, um caso que lhe chega às mãos, na qualidade de advogado de alguns dos camponeses acusados de serem os cabecilhas de um processo de contestação popular a um projecto de lei de reforma agrária, em 19813.

Em Eva reencontramos essa necessidade de um olhar mais justo sobre um passado recente que, vivido em revolucionário alvoroço, não deixou ouvir as razões do outro. “Dei por mim a querer refazer o percurso desses anos convulsos, e a admitir que essa gente que tão pejorativamente tínhamos taxado de reaccionários que apenas mereciam ser metidos em sacos velhos e deitados ao mar como lixo inútil, bem perfeitamente que poderiam ter as suas razões a justificar as próprias preferências por um Cabo Verde com uma autonomia que, no entanto, não chegasse à independência” (Eva, pp. 19-20).

Mas “Eva” é um livro sobre amores, abandonos e traições e por isso não poderíamos deixar de ser confrontados com o poder das palavras como arma de sedução. “Caramba, disse-lhe com indisfarçável inveja, você fala bem, sabe usar as palavras bonitas que encantam as pessoas, não estranho agora que tanto tenha enfeitiçado a Eva” (Eva, p.189). Esta por sua vez confessa que o que lhe disse Reinaldo num determinado dia, o dia em que se tornaram amantes, “terão sido as palavras que o seu corpo precisava ouvir para se abrir” para ele (Eva, p.81).

Ninguém duvida do extraordinário poder da linguagem e, por isso mesmo, nos nossos dias continua a haver livros proibidos e livros malditos, porque bem sabemos como há palavras capazes de incendiar corações e atiçar ódios, mas na escrita de Germano Almeida o que apesar de tudo ressalta é a estreita e indissociável relação entre o prazer e a escrita, como se corpo e texto se não diferenciassem, como se o prazer do vivido necessitasse do prazer de ser contado.


Os universos de Eva

Eva é a história de uma mulher casada que tem, para além do marido, pelo menos mais dois homens na sua vida e os ama a todos. Claro que o livro é muito mais do que isso pois o autor encontrou uma forma – através de histórias cruzadas de emigração – de reflectir sobre os acontecimentos e a evolução de Cabo Verde e Portugal nos últimos trinta anos. Dizer que se trata do encontro de dois homens que, apesar de não se conhecerem pessoalmente, ao longo de um dia falam da mulher que amam e ambos procuram conhecer, é deixar de fora uma série de temas e interrogações que se prendem com afectos e relações humanas.
A dificuldade em reduzir esta obra a um resumo de duas linhas está naturalmente relacionada com a complexidade do romance, estruturado em diferentes níveis, pois sobre uma base que é a relação de Eva com os seus homens vão-se sobrepondo outros temas que tornam a história mais densa e mais interessante pelas questões que levantam e pela multiplicidade de leituras que sugerem. Trata-se também de um romance perturbador, pois de novo Germano Almeida, com a coragem e o desassombro que lhe são próprios, entra no lado mais íntimo e mais sombrio do ser humano, levantando dúvidas e inquietações. Mas se um romance não nos ajudar, um pouco que seja, a entender a ambiguidade do mundo e dos outros, nada acrescenta a uma literatura e nada acrescenta a cada um de nós. Será mero entretenimento.

Esta é uma obra em que reencontramos os universos onde o autor habitualmente se move: o universo temporal do Cabo Verde pós-independência, com algumas incursões aos anos imediatamente anteriores ao 5 de Julho; o universo feminino, que embora revelado através da intimidade, do afecto e do desejo, se mantém incompreensível para o modo de ser masculino; o universo urbano, seja Mindelo, Praia ou Lisboa, também ele tão fascinantemente incompreensível para quem cresceu numa pequena ilha como a Boa Vista. Contudo, seja qual for o espaço ou o tempo em que a acção decorre, o que está em causa é, mais uma vez, o confronto entre a vida íntima e a máscara pública, tão mais evidente na pequenez das ilhas onde se sabe, ou julga saber, tudo sobre todos. E é neste confronto entre o “fazer e o parecer”, que Germano Almeida procura aquilo que é fundamental, o ser. Nesta perspectiva, toda a obra deste autor pode ser encarada como uma procura da identidade, uma busca do ser cabo-verdiano.

Foi ao escrever sobre a sociedade crioula, confrontando memórias de infância e vivências de adulto, comportamentos urbanos e rurais, apontando as contradições entre uma tradição de luta pela liberdade e uma tradição fascista de organização social e familiar e sobre tantas outras pequenas e grandes coisas das ilhas, que G. Almeida acabou por ser conduzido à necessidade de um estudo aprofundado e sistemático da História de Cabo Verde, como forma de descobrir a identidade do seu povo. Diz o autor que a “Viagem pela História das Ilhas foi iniciada como uma busca da cabo-verdianidade pois reivindicamos a especificidade do homem cabo-verdiano no contexto universal…mas acabamos sempre por gaguejar sem conseguir mostrar as diferenças que sentimos no nosso dia-a-dia” (Viagem…, pp. 15-16). Talvez porque definir a identidade de um povo seja o mesmo que tocar o intangível, em nota final à mesma obra acaba por confessar que não conseguiu encontrar a resposta.

Em Eva, o confronto entre sociedade e cultura portuguesas e cabo-verdianas, bem como a presença de personagens de um e outro país são formas, mais ou menos indirectas, de continuar esta reflexão.

Os que ficam e os que partem

Um dos temas que atravessa a história central de Eva, é a emigração, tão recorrente na vida e na literatura das ilhas que poderemos dizer tratar-se de um elemento constitutivo da identidade cabo-verdiana. Mas, ao contrário do que é habitual nessa literatura, em que o dilema que nos é apresentado está entre o partir e o ficar, nesta obra o autor aborda a questão por um ângulo diferente. Tal como já tinha acontecido em Os Dois Irmãos a questão é colocada àqueles que partiram e por isso mesmo acabaram sofrendo mudanças irreparáveis. Deverão ficar, porque já não são os mesmos, ou deverão ainda assim regressar à terra?

Um jornalista, Reinaldo Tavares, que também é o amante-confidente de Eva e narrador da estórea, vai a Portugal para entrevistar alguns emigrantes cabo-verdianos que, nos excessos do período pós 25 de Abril, e porque de alguma forma se opunham à independência, foram, segundo palavras do autor, “impedidos de se manifestar como até de viver em paz num espaço que era também a sua terra natal e acabaram escorraçados”. Em Lisboa cruza-se com uma outra personagem masculina, Luís Henriques, também amante de Eva e cabo-verdiano que, estando em Portugal em 1974 a terminar os estudos e sendo um defensor e lutador da causa da independência, inexplicavelmente se vai deixando ficar sem nunca mais regressar às ilhas. Naturalmente há ainda Eva, uma portuguesa que vem para Cabo Verde logo em 75 e por aqui fica. Independentemente dos motivos porque ela veio ou Luís Henriques ficou, o que importa reter é que se a adaptação de Eva foi fácil e pacífica, o mesmo não aconteceu com os cabo-verdianos que foram ou por lá ficaram, incapazes de serem felizes longe das suas ilhas, como se aqui lhes tivesse ficado uma parte da alma.

Um dos trechos mais tristes e pungentes desta obra é precisamente a entrevista ao velho advogado Dr. Rocha, que continuando a viver num Cabo Verde de memórias e velhas fotografias, morrendo de saudades, se sente incapaz de voltar por um orgulho que não consegue ultrapassar. Neste aspecto, não foge Germano Almeida à profunda convicção, aliás comum a todos os autores que trataram o tema da emigração, de que se o estrangeiro que vem para Cabo Verde aqui encontra a maior felicidade, o cabo-verdiano, pelo contrário, não poderá nunca ser feliz longe da sua terra e só o regresso lhe poderá curar essa ferida da alma.

Não foge também ao olhar de desconfiança e incompreensão que, aqueles que optaram “por ficar em Cabo Verde e assumir os riscos e incertezas de uma independência problemática e na qual o mundo não acreditava”, (Eva, p. 21) deitam aos que partiram. Claro que o autor não se refere “às gentes do povo faminto que fugiu para aqui para não morrer à míngua, falo da pequena burguesia administrativa que veio, ficou na metrópole, cujos filhos trabalham e estão por cá, porém para sempre desenraizados porque deixaram de ser cabo-verdianos sem porém nunca terem chegado a ser portugueses quanto mais europeus” (Eva, pp.98-99).

 

Amor e infidelidade

Poderíamos também pegar neste livro como uma longa incursão no tema do amor, do casamento e da fidelidade. Em crónica recente, Clara Ferreira Alves escreveu que o amor conjugal é tema proibido no romance, pois “um amor conjugal feliz, sem adultério, traição, engano e tragédia … não tem elasticidade dramática”. De facto, até o romance Oh! Mar de Túrbidas Vagas de Teixeira de Sousa, que na literatura cabo-verdiana é talvez o que mais se aproxima de um longo elogio do amor conjugal, e um caso raro de resistência masculina às tentações de uma mulher, termina num acto de infidelidade. Na história da literatura do arquipélago há obviamente muitas referências à infidelidade masculina, aceite como inevitável acontecimento na vida de um homem, sendo contudo raras as incursões na infidelidade feminina. Há uma excepção curiosa, A Louca de Serrano de Dina Salústio. Nesse livro, as mulheres da aldeia de Serrano, porque não conseguem engravidar, ao fim de dois a três anos de inúteis tentativas, são aconselhadas pela parteira local a irem à cidade fazer tratamentos. Estranhamente, nunca os homens da aldeia tiveram dúvidas sobre a natureza feminina desse defeito ou desconfiaram do motivo porque nenhuma das crianças nascidas se parecia com eles.

Na ficção de Germano Almeida, a que se passa em meios urbanos, uma certa promiscuidade sexual aparece como relativamente banal. Isto é mais evidente nas obras que constituem o ciclo mindelense, onde incluo O Meu Poeta, Estóreas de dentro de Casa, As Memórias de um Espírito e O Mar na Lajinha. São estóreas passadas no Mindelo pós-independência, sendo que em traços gerais e por isso mesmo incompletos, poderemos dizer que O Meu Poeta retrata a vida pública da cidade, as Estóreas remetem-nos para a esfera do doméstico e com as Memórias entramos na esfera da vida íntima. O Mar na Lajinha – ao invés das obras anteriormente citadas, que giram à volta de personagens da burguesia mindelense – está centrada em figuras populares. A ideia de ciclo é reforçada pelo facto de muitos personagens passarem de uns para outros livros.

Contrariamente ao mundo rural, em que a infidelidade conjugal é crime de honra tão grave que só pode ser reparado pelo sangue, como acontece em Os Dois Irmãos, as personagens urbanas parecem ter perdido se não a alma, pelo menos partes substanciais de orgulho e dignidade. Sendo imorais não são todavia amorais, pois distinguem o bem do mal e embora de uma forma enviesada, agem da melhor forma que lhes é possível. Isso é evidente na forma como Reinaldo reage quando, um dia, é confrontado pelo marido de Eva, Zé Manel, com o facto de haver várias cartas anónimas a denunciarem a traição. “Doía-me na alma ouvir aquelas palavras dolorosas, porém se não podia dizer-lhe ‘amo a tua mulher, divide-a comigo e seremos felizes os três’, também não podia prometer, sequer a mim próprio, que ia deixar ou apenas evitar encontrar Eva” (Eva, p.156).

Sendo então a promiscuidade um facto banal, poderia, de acordo com a investigadora Paula Gandara, ser até aceite como marca cultural desta sociedade e, por isso mesmo, marca da escrita de Germano Almeida. “A partir do momento que seja aceitável como marca de identificação cultural, aceita-se que seja a marca da escrita em causa… A promiscuidade revela-se como princípio orientador da escrita e aceita-se como marca cultural que assim se apercebe de dentro para fora como um facto longe de qualquer característica derrogatória” (Gandara, 2002). De facto, ao contrário da escrita realista, que é uma descrição da realidade feita de fora para dentro, em Germano Almeida chegamos ao retrato da vida pública pelo conhecimento privilegiado que temos da vida privada das personagens e se há um aparente excesso de cenas íntimas e de forte carga erótica é não só porque o autor quer reforçar essa característica da sociedade urbana de Cabo Verde mas porque, precisamente, utiliza cada uma dessas cenas para acrescentar uma nova revelação sobre os personagens ou sobre o mundo à sua volta.

Todavia, sejam quais forem os casos ou os motivos que conduzem à infidelidade feminina, a verdade é que, por norma, o homem e principalmente a sociedade em que ele vive, não aceita ou não consegue conviver com ela, ao contrário das mulheres que de há muito se habituaram a essa quase inerente condição masculina. Ora neste romance o que há de novo e perturbador é que os homens de Eva sabem, ou pelo menos têm fortes e evidentes motivos para desconfiarem da sua infidelidade, e contudo parecem relacionar-se de forma pacífica com o facto, não deixando de a amar. Regressemos então à questão essencial da obra, que o narrador resume na seguinte questão: “Quem és tu Eva de mil pessoas?”  

O retrato de Eva

Esta pergunta remete-nos para a análise feita por um crítico português, que considerou Eva como o resultado de uma série de esboços que o autor vinha fazendo na sua já longa galeria de personagens femininas, e que teriam então culminado nesta figura encarada como uma das mais fascinantes do autor. Tal tese pode de facto ser sustentada pois encontrarmos grandes semelhanças entre Eva e outras personagens femininas de Germano Almeida, nomeadamente entre Eva e Alda de As Memórias de um Espírito, que partilham idênticas experiências.

Logo pela observação das edições portuguesa e cabo-verdiana, percebemos que diferentes leituras de Eva são possíveis. Ambas têm uma figura feminina na capa o que era expectável já que no centro da obra está uma mulher. Na edição portuguesa a reprodução de uma pintura alemã do séc. XVI de Lucas Cranach, o Velho, que tem exactamente o mesmo título do livro, Eva, remete-nos para uma personagem simbólica que pela beleza, pela nudez e pela presença da serpente e da maçã, representa a Mulher, com tudo o que ela tem de irresistível perdição. É a imagem da fragilidade feminina, que não resistindo à tentação do sedutor, arrasta consigo o homem para um mundo de dor e sofrimento.

Na versão cabo-verdiana, foi também utilizada uma pintura mas de um artista mindelense contemporâneo, Tchalê Figueira, que igualmente retrata uma mulher. Não uma mulher-símbolo, dominada por uma natureza e um destino que determinam os seus actos, mas uma mulher concreta e singular, com qualidades, imperfeições e liberdade de agir e decidir da sua vida. Porque se trata de um retrato, mais do que reproduzir os traços físicos o artista procura compreender a alma, interpretá-la, ultrapassar a inacessibilidade e mistério que o outro sempre representa para nós e, quanto a mim, este rosto de mulher, feio e distorcido, aproxima-se mais da personagem. A própria Eva parece dar-me razão, pois quando Reinaldo Tavares lhe pergunta “Quem és tu Eva de mil pessoas?, responde: em resumo, resumido, sou apenas uma mulher casada que engana o marido com pelo menos mais dois homens, e que tem como única desculpa o facto de os amar a todos ainda que cada um à sua maneira.” (Eva, p.183).

Algumas referências, ao longo da obra, a Casanova e Don Juan, permitem-nos também levantar uma outra hipótese: não será Eva uma versão feminina e actualizada da figura do sedutor, isto é, não terá o escritor sido atraído pela possibilidade de criar uma personagem á imagem e semelhança do homem, uma espécie de alma gémea? Num determinado ponto do livro em que se fala do prazer da sedução, Eva faz a seguinte confissão: “também sei do gosto da procura e da espera, da sedução e da incerteza, mas sobretudo o gosto daquele momento único e irrepetível de vitória e ternura sobre o ser desejado.” (Eva, p.184) Ou será que, pelo contrário, o autor terá sido atraído pelo oposto, pela diferença que sempre escapa à compreensão do homem? Logo no início o narrador fala na “doce Eva que o meu amor e o passar dos anos me levaram a fantasiar de uma inocência quase mística” (Eva, p.12). Uma e outra hipótese são viáveis, pois tanto encontramos passagens onde o narrador se refere a Eva como alma gémea que não tem segredos para ele, como mais adiante diz achá-la “capaz dos comportamentos mais bizarros e insólitos…. quase a merecer tratamento do foro psiquiátrico”. O próprio Luís Henriques, que a conheceu muito nova e teve um importante papel na sua formação, sente que ela lhe escapa, como quando afirma: “Agora sei que a ambos Eva continua a surpreender, é como se para cada um de nós ela fosse uma pessoa diferente, ou tivesse um particular espaço secreto” (Eva, p.269). Se dúvidas houvesse sobre esta multiplicidade de imagens que Eva reflecte, como se fosse um espelho para o olhar masculino, seriam esclarecidas quando diz a Reinaldo: “é que a cada nova paixão eu sou recriada mais uma vez. As inúmeras mulheres de que sou feita, muitas adormecidas ou reprimidas, tornam-se possibilidades e muitas vezes realidades, e nelas eu vivo novas vidas, diferentes da que vivo contigo, porém também importantes… E finalmente, e para ser absolutamente sincera contigo, vou correr o risco de escandalizar-te, dizendo que hoje acredito piamente que só a infidelidade nos liberta e nos permite ser nós próprios” (Eva, p.163).


Nacionalidades, racismos e preconceitos

Ao contrário do que vem sendo habitual nos romances de Germano Almeida em que as personagens principais são sempre cabo-verdianas, Eva é portuguesa, e esse é um elemento que me parece necessário à economia da história e ao desenho da personagem. É importante para a narrativa, que se passa entre Portugal e Cabo Verde, ou talvez seja melhor dizer, que passa pelos laços que apesar da independência se não quebraram, mas que passa também por aquilo que afasta e se manifesta em preconceitos e actos de racismo. Racismo primário e violento no pai de Eva, que a expulsa de casa ao saber que ela namora com um cabo-verdiano e menos óbvio, embora presente, nos cabo-verdianos mais radicais e politizados que, nos anos 70, não viam com bons olhos a ligação de um dos seus a uma portuguesa. Luís Henriques confessa que naqueles tempos “era preciso uma grande força de carácter para se chegar a Cabo Verde atrelado a uma branca estrangeira” (Eva, p.248) Curiosamente, é ele o primeiro a verificar que não será fácil quebrar esses laços, o que veio a acontecer logo no dia da independência, em que ele próprio tinha decretado que só seriam consumidos produtos da terra e que qualquer outro tipo de álcool que não fosse o grogue “estaria de todo interdito no meio dos ex-colonizados.” Mas aconteceu que devido ao entusiasmo e ao calor daquele dia de verão, exagerou no grogue e acabou por violar a sua própria regra quando já bastante bêbedo subiu em cima de uma mesa e declarou: vendo bem as coisas, “havia importantes heranças de Portugal que os novos países independentes deveriam guardar com carinho. E citou três: a língua portuguesa, as mulheres portuguesas e o vinho português” (Eva, p.236).

Lado a lado com os grandes acontecimentos que marcaram a história dos dois países, com especial destaque para o 25 de Abril, vão despontando ao longo do livro, os pequenos factos de um quotidiano que verdadeiramente nos aproxima, e que naturalmente é feito com a língua portuguesa, com as pessoas, com o vinho, a comida, as músicas, os livros e tantas mais coisas, nem sempre boas ou pacíficas.

A nacionalidade de Eva é igualmente importante para a sua compreensão como personagem dividida e desenraizada. Dividida entre uma educação rígida e tradicional e uma educação libertária e politizada (da responsabilidade de Luís Henriques), dividida entre afectos, dividida entre países, dividida entre modelos de vida e de sociedade. A este propósito, diz-nos o narrador que ela chegou a Cabo Verde “como uma comunista professora idealista e revolucionária, e que agora é uma grande empresária de móveis de luxo e objectos de decoração para a emergente….alta burguesia nacional” (Eva, p.37).

Outros elementos da sua história pessoal podem também ser significativos. Devido à sua ligação com Luís Henriques é renegada pelo pai, um militar reaccionário e incapaz de um gesto afectuoso, mas um segundo abandono vem do próprio Luís Henriques, o homem por quem larga a família e o país e que devendo reunir-se-lhe poucos dias depois da sua chegada a Cabo Verde, vai adiando sucessivamente o regresso que nunca acontece. Talvez estes factos ajudem a compreender as razões que levam esta mulher a não ser capaz de pertencer a um homem só, “ou pelo menos um de cada vez” segundo desabafo do narrador. A explicação de Eva é a seguinte: “o que uma mulher casada procura num amante é alguém que tenha como ofício amá-la e como vocação acariciá-la. Mas, infelizmente, com o passar do tempo, também o amante se transforma em marido, e então entra-se inevitavelmente no labirinto dos amantes-substitutos-de-amantes” (Eva, p.184), o que nos permite concluir que, para Eva, cada amante é uma espécie de seguro contra possíveis abandonos e desafectos.
 

Verdade e ficção

Sejam quais forem, as leituras ou perguntas que façamos, o eixo central desta obra é a demanda da verdade e da compreensão do outro. Por isso, porque de uma busca se trata, é dessa forma que o livro começa, com dois homens que procuram o Chafariz do Vinho, perdidos numa noite fria de Lisboa, “abraçados um no outro como um velho casal de bêbados vadios, as pernas mal suportando o peso do corpo, porém cada vez mais unidos na firme decisão de beber um último copo em homenagem à fascinação de Eva de todos os nossos desvarios” (Eva, p.8).

E esse é o fim de um longo dia que passaram juntos, conversando, bebendo e trocando inconfidências e memórias de Eva. Essa conversa improvável, quase duelo impossível entre os dois homens, é o artifício que o escritor encontra para, através de sinuosas incursões pelo passado, entre o que é dito e o que é insinuado, mas sobretudo através das memórias e desabafos que o narrador partilha apenas connosco, nos desvendar lentamente a história de Eva, do marido e dos amantes.
Como é habitual nas narrativas de Germano Almeida, é a partir do momento final que o conto volta atrás e pela mão do narrador, que normalmente também é personagem, em saltos entre o passado e o presente, se vai desenrolando a história, num longo círculo que nos deixa de novo no ponto de partida, fechando assim a narrativa.

Quem conta uma história, tem sobre os ouvintes ou leitores uma posição, diria de domínio, pelo exclusivo conhecimento que tem dos factos e pelo poder de os divulgar ou não. Neste caso concreto isso é evidente pois Reinaldo Tavares o amante-confidente de Eva sabe tudo, e por isso, ao longo do dia com Luís Henriques, sentimos a quase arrogância com que ele foge à curiosidade do outro, deixando escapar as confidências suficientes para que o outro saiba que ele sabe, confirmando assim que Eva lhe contou a verdade, e dividindo com o leitor aquelas que de facto nunca poderiam ser ditas, pois deixam completamente a nu a vida e a alma das personagens deste romance. Mas, como também é habitual na escrita de Germano Almeida, ele gosta de nos puxar o tapete debaixo dos pés, e quando julgamos já ter compreendido o que move estas criaturas, surge um elemento novo que baralha tudo e neste caso até o próprio narrador é apanhado de surpresa. Dizer por isso que a história se desenrola num longo movimento circular que nos deixa no ponto de partida não é correcto, será antes um movimento elíptico que nos deixa um pouco à frente ou um pouco acima, ou em todo o caso nos deixa um pouco em suspenso.

Tal como na maior parte das obras literárias, estamos perante um enredo em que verdade e ficção parecem confundir-se, manipulando o autor as histórias que lhe contam como quem molda pedaços de barro. Deforma-os, altera-os, separa-os, sobrepõe-nos em camadas até se tornarem irreconhecíveis. Contudo, ao contrário do que é habitual na maior parte dos escritores, G. Almeida mantém nomes e factos reais, pequenos detalhes do nosso quotidiano, e logo julgamos reconhecer os acontecimentos e as pessoas, para a seguir, com nova informação, nos confundir e colocar em nova pista. Outras vezes mal toca na matéria que lhe é oferecida e somos surpreendidos com a informação que aquilo que tínhamos atribuído à sua inesgotável imaginação era facto real e acontecido e que as personagens mais excêntricas afinal povoaram a sua vida. A este propósito tem afirmado que, por exemplo, em A Ilha Fantástica, não há personagens, há pessoas. O mesmo acontece com o livro O Dia das Calças Roladas. Noutros casos haverá pessoas e personagens e noutros mais personagens que pessoas.
Talvez pela sua formação profissional, as histórias que conta são como num processo jurídico, baseadas naquilo que o narrador viu ou ouviu e ainda nos testemunhos das personagens, a quem se pede que apenas contem o que viram, ouviram ou sentiram. O autor, aliás, nunca as desmente e até o narrador só se atreve a pôr em causa ou desmentir alguma afirmação se ele próprio foi testemunha dos factos e se se encontra perante uma evidente contradição. Mas isso muito raramente acontece pois a verdade é que os personagens não gostam de ser postos em causa, como podemos verificar pelo que aconteceu no dia em que o narrador se permitiu fazer alguns reparos à história que Dona Pura lhe estava a contar e esta exclamou aborrecida que “não gostava de ser interrompida quando estava a falar [e se ele queria ouvir uma estórea] então que ouvisse calado, sem querer saber de asneiras” (Dona Pura…, p.35).

Seja na qualidade de advogado seja na de escritor, G. Almeida não se limita a ouvir inúmeras confidências que depois transforma em matéria ficcional. Há no escritor, para além disso, um lado bisbilhoteiro que o leva a perseguir as estóreas: “Sou bisbilhoteiro! (…) alguém que se intromete na vida alheia, que procura saber dos actos e factos e segredos das pessoas para contar às outras” (Eva, p.97). E assim, graças a essa curiosidade insaciável conseguimos ter acesso aos factos mais íntimos e secretos da vida dos personagens.

Curioso é verificar que, se por um lado, os diferentes personagens/narradores invocam a veracidade das suas estóreas, são eles próprios que nos alertam para o facto de ser muito improvável virmos a conhecer a verdade, pois as pessoas, consciente ou inconscientemente, deturpam factos, omitem ou até mentem, pelo que apenas nos é possível ter acesso a diferentes pontos de vista. Preocupação fundamental do narrador deverá ser assim que o enredo se adeque de forma lógica ao real tornando-se portanto verosímil. Sendo a verosimilhança fundamental, há então situações em que o narrador se sente livre para ficcionar, quando e se, lhe forem negadas as informações necessárias ao desenrolar lógico da estórea. “É verdade que estava completamente à vontade para ficcionar como bem entendesse porque acabou ficando claro para mim que Pedro Trago não tinha sido pródigo em informações sobre os seus antecedentes” (Família Trago, p.47).

 

O português e o crioulo

Eva é um livro escrito em português, e se faço esta afirmação aparentemente desnecessária é porque Germano Almeida, embora usando a língua portuguesa, frequentemente nos faz ouvir as personagens falarem crioulo, como por exemplo aconteceu, de forma tão criativa em O Mar na Lajinha. Esta mistura, que para os leitores cabo-verdianos é sempre factor de aproximação, pelo carácter coloquial que dá à escrita e pela criatividade e graça e com que o faz, poderá ao leitor português causar alguma perplexidade ou distanciamento. Não me refiro a situações em que é claro o uso do crioulo pois são introduzidas no texto palavras ou expressões estranhas ao português, refiro-me particularmente a situações em que o uso do singular em vez do plural, a atribuição do género feminino em vez do masculino, a utilização de palavras que sendo idênticas nas duas línguas não têm contudo o mesmo significado, são suficientes para fazer o leitor cabo-verdiano sentir-se em casa e para criar no leitor português alguma estranheza. Germano Almeida sempre recusou apresentar o crioulo como um corpo estranho que é introduzido no texto, evitando o uso do itálico, de aspas ou de qualquer outro elemento de separação. Vai buscar ao crioulo as palavras necessárias, com a mesma sem-cerimónia e naturalidade com que isso se faz no dia-a-dia de Cabo Verde. “Quando escrevo não estou muito preocupado em saber se esta palavra vem do crioulo ou do português. Se não for português passa a ser. O crioulo e o português são as minhas duas línguas….Uma é materna outra é paterna. A minha mãe falava connosco em crioulo o meu pai em português” (Agualusa, 1996). Sobre esta forma de escrever, o escritor José Eduardo Agualusa disse o seguinte: “Se o crioulo foi nascido da língua portuguesa, hoje, com Germano Almeida, a língua portuguesa está a ser nascida do crioulo e concluiu afirmando que não podia haver parto mais bonito” (Agualusa, 1994).

Neste livro apenas se fala português porque os dois amantes de Eva optaram pela língua que lhes permite algum distanciamento e é naturalmente a mais adequada à desconfiança que sentem um pelo outro.

Germano Almeida não tem por hábito desenhar ou descrever personagens nem lugares. Tal como os impressionistas, que em vez de misturarem as cores na paleta, usavam pinceladas de cores puras, de modo a que a fusão de cores fosse feita pelo observador, desvalorizando a forma mas valorizando os jogos de luz e de iluminação e portanto a posição do observador, também ele cria as personagens e lugares dos seus romances, praticamente sem desenhar pormenores ou detalhes mas criando em nós, leitores, as impressões necessárias à construção psicológica e até física desses personagens e lugares.

Em Eva, pelo contrário, teve tempo para construir as personagens com minúcia e dotar cada uma de voz própria. O narrador, bisbilhoteiro por vocação e profissão, tem uma forma de falar irónica e distante, deixando contudo, nos seus desabafos com os leitores, vir ao de cima uma linguagem inflamada e arrebatada; Eva é dona de uma forma de falar mais poética, embora às vezes nos surpreenda, ou até nos arrepie com confidências de uma obscena crueza; Luís Henriques, homem culto mas que não resiste a ostentar essa cultura, fala de forma rebuscada e até artificial, embora em algumas situações se expresse como um carroceiro. Sem dúvida que esta plasticidade e criatividade revelam um extraordinário domínio da língua portuguesa.  

 

Humor e ironia

O gosto em reinventar o português, mudando o estilo e o vocabulário, conforme o sexo, a cultura, a personalidade e os conhecimentos de cada personagem, aliado ao enorme prazer de contar estóreas, permitiram a Germano Almeida criar uma forma muito própria de escrita, na qual o humor, paródia e ironia são, sem sombra de dúvida, as características mais marcantes. Esta impossibilidade que ele tem de escrever sem satirizar, faz-me lembrar uma personagem de Torrente Ballester, que passava a vida a entrar e sair da cadeia por causa de uns versinhos cáusticos que escrevia contra um certo presidente e que confessava contrito: “às vezes até me lembro de escrever um soneto a dar-lhe manteiga, mas não sei o que têm os meus versos, que sempre me saem satíricos.” Pois Germano Almeida é assim, um intelectual de permanente bom humor que não consegue impedir-se de brincar e ironizar com tudo, principalmente consigo próprio, e que foge da grandiloquência pomposa e dos sentimentalismos, mais depressa que o diabo foge da cruz. Em editorial ao nº13 da revista Ponto & Vírgula (Jan/Mar de 1985) escreveu que “nada há mais demolidor que uma esplêndida gargalhada, dada com os olhos e a garganta. Claro que a boca, as diversas posições da boca têm papel relevante nesse riso-chicote e bem entendido que é necessário, para que a arma possa ser usada com eficiência, que se faça a pontaria certeira, isto é, que o riso saia na hora exacta, nem antes nem depois…“

E na verdade tem Germano Almeida pontaria certeira para descobrir os ridículos e os pontos fracos de situações e personagens pelo que não resiste a parodiar essas situações. O Meu Poeta e A Morte do Meu Poeta são magníficos exemplos da capacidade deste autor para, através da ironia, traçar um retrato cruel da vida social e política cabo-verdiana. O primeiro título é o retrato da vida mindelense no pós-independência, em regime de partido único, cujas “virtudes” democráticas, culturais e económicas são defendidas pelo Poeta. “O nosso Partido, dizia ele, tomou o poder em nome do povo e exerce-o de facto em nome do povo e no interesse das massas populares… Viste, por exemplo, há dias na grande manifestação em frente do Palácio do Povo. A Rua de Lisboa entupida de gente de uma ponta à outra gritando vivas ao Partido, força luz e guia do nosso povo na Guiné e em Cabo Verde. Guiné disseste só por hábito, interrompeu-o Vasco. Desde 14 de Novembro que a Guiné ficou fora da luz e portanto está nas trevas, às escuras (O Meu Poeta, p. 259).  E um dia em que o Secretário o questionou sobre o anseio dos jovens à liberdade o Poeta logo retorquiu: Liberdade de expressão, dizes tu? Então já não têm a suficiente? O que de facto precisam é de cadeia, pau, polícia atrás deles. Então não lhes chega a liberdade de cantar, dançar, fazer serenatas? No nosso tempo até isso era proibido e agora eles queixam-se. Nós nem liberdade de expressão corporal tínhamos e eles acham pouco o clima de paz, liberdade e bem-estar em que vivemos” (O Meu Poeta, p.106).

A Morte do Meu Poeta é a paródia correspondente para o início do período de multipartidarismo. Nesse romance o Poeta é eleito Presidente da República em resultado “da campanha eleitoral mais indecente que a história de Cabo Verde tinha registado” (p.13) o que ele logo considerou um evidente exagero do jornalista que fez essa afirmação pois, sendo a primeira, não podia haver termos de comparação. A obra é um retrato hilariante e delirante da desorganização, amadorismo, oportunismo e incompetência, dos primeiros tempos de vida democrática em Cabo Verde. A ironia é ainda reforçada com a pseudo-nota prévia em que o autor esclarece que “as pessoas que aparecem neste livro foram devidamente caricaturadas de forma a torná-las irreconhecíveis. Se, porém, esse esforço de distorção de alguma forma as fez parecidas com figuras políticas da nossa praça, é culpa desta realidade que insiste em desafiar a ficção.”

A investigadora Paula Gandara chama a atenção para o facto de que, a ironia envolve a sua obra como uma couraça (Gandara, 2001). Na verdade, em G. Almeida, a ironia não é apenas um meio de ataque mas é também uma forma de defesa. Seja por pudor ou timidez, o autor não navega à vontade no mar das emoções e podemos verificar, como através dos diferentes narradores, em diferentes romances, ele lida mal com situações de grande emoção. Por exemplo, em Dona Pura e os Camaradas de Abril, há uma cena em que o narrador encontra no Largo do Rato, no dia 25 de Abril, um velho português que fala do seu país “como se a comoção lhe estivesse engolindo as palavras” e embora o narrador tenha ficado sensibilizado, quase até às lágrimas, pela emoção do dia e pelos sentimentos do velho confessa: “Apeteceu-me dizer-lhe uma palavra amiga, mas só me ocorreu perguntar-lhe se era de Lisboa” (Dona Pura, p.88). Se por um lado a ironia, quando aliada ao humor, se torna uma terrível arma de ataque, também protege o autor de se tornar vulnerável ao revelar os seus verdadeiros sentimentos. Em Eva, quando no final do livro Reinaldo fica estarrecido com uma “Eva que ultrapassava todos os limites da minha imaginação” e sofre com as revelações que Luís Henriques lhe faz, é a ironia que o salva de mostrar a dor que sentia.

E já que aludimos a algumas das técnicas da escrita de Germano Almeida aproveito para informar que se por acaso alguns dos seus leitores ficaram com dúvidas sobre a morte de Fernando de Macedo, ocorrida em 5 de Julho de 75, nas Estóreas de dentro de Casa, talvez as esclareça neste livro. Parece que afinal se terá matado por “coerência ideológica…para não ver o seu amado arquipélago ser entregue pelos portugueses aos novos usurpadores que chegavam das matas da Guiné” (Eva, p. 25). De facto, citar personagens e factos fictícios de outros romances é um agradável e divertido piscar de olho do autor aos seus leitores mais assíduos. Há personagens que circulam com tanto à vontade por entre diferentes estóreas que quase ganham direito a física existência. É por exemplo o caso do Dr. Alírio, advogado no In Memoriam e em Agravos de um Artista, bem como em O Meu Poeta e a Morte do Meu Poeta, que se não tivesse falecido subitamente, logo na primeira página de As Memórias de um Espírito, não nos surpreenderia se abrisse escritório numa qualquer rua de Mindelo.

Apesar da ironia e humor cáustico com que nos revela um lado tão obscuro e feio da alma humana, Eva é uma tocante estórea de amor(res) vivida por personagens profundamente humanas, imperfeitamente humanas, que apenas procuram, ao longo da sua vida, da maneira que podem e sabem, ser felizes. Para terminar estas notas à leitura da obra e da sua personagem principal, ocorre-me, assim em jeito de conclusão, uma conhecida frase de Casanova, com frequência citada: “A vida é como uma libertina que amamos e a quem por fim concedemos todas as condições que ela nos impõe, desde que não nos deixe.”

Publicado no livro O Ano Mágico de 2006.

 

Referências Bibliográficas
Agualusa, José Eduardo, 1994, A infância – ilha de abrigo, jornal A Semana de 1 de Agosto
Agualusa, José Eduardo, 1996, Entre duas Línguas, entrevista a Germano Almeida, jornal O Público de 14 de Dezembro  
Almeida, Germano, 1997, Auto-retratos, Jornal de Letras de 8 de Outubro  
Gandara, Paula, 2002, A Fronteira da (des)construção: construir Germano Almeida, palestra proferida no IC/C. Cult. Português, Mindelo em 10 de Janeiro
Gandara, Paula, 2001, O momento do crime e uma breve contextualização: Dois Irmãos et al de Germano Almeida, Expressão – Revista do Centro de Artes e Letras. Santa Maria:UFSM, Jul/Dez
Parson, Elsie Clews, 1968, Folclore do Arquipélago de Cabo Verde, Lisboa. Agência Geral do Ultramar, p.68
Sepúlveda, Torcato, 1995, Entrevista a Germano Almeida, jornal O Público de 21 de Novembro
Silva, Rodrigues da, 1998, Entrevista a Germano Almeida, Jornal de Letras de 22 de Abril 

 

Obras de Germano Almeida:
1989, O Testamento do Sr. Napumoceno,  Mindelo, Ilhéu Editora  
1990, O Meu Poeta, Mindelo, Ilhéu Editora
1992, O Dia das Calças Roladas, Mindelo, Ilhéu Editora
1994, A Ilha Fantástica, Mindelo, Ilhéu Editora
1995, Os Dois Irmãos, Mindelo, Ilhéu Editora
1998, A Família Trago, Mindelo, Ilhéu Editora
1998, A Morte do Meu Poeta, Mindelo, ed. do autor
1999, Dona Pura e os Camaradas de Abril, Mindelo, Ilhéu Editora
1999, Estóreas Contadas, Mindelo, Ilhéu Editora
2000, Estóreas de dentro de Casa, Mindelo, Ilhéu Editora
2001, Memórias de um Espírito, Mindelo, Ilhéu Editora
2004, Cabo Verde. Viagem pela História das Ilhas, Mindelo, Ilhéu Editora
2004, O Mar na Lajinha, Mindelo, Ilhéu Editora
2006, Eva, Mindelo, Ilhéu Editora

 

Fotografias do Mindelo de Marta Lança

  • 1. “O queixinho de nho Quirino, pontiagudo por causa da boca motcha, adquiria um vigor diferente quando começava a contar a suas estóreas, as palavras escorrendo-lhe da boca, mansas e leves ou rápidas e em estrépito nas passagens que igualmente o emocionavam (…) Nho Quirino começava sempre a contar as estóreas em crioulo (…) mas quando chegava a certas passagens mais emocionantes mudava automaticamente para português, falando rapidamente, derramando sobre nós as belas tiradas que tinha decorado”(A Ilha Fantástica, p.51).
  • 2. “Escrevo por prazer. Só escrevo quando tenho uma história para contar e prazer em contá-la. Porque muitas vezes tenho histórias mas não me apetece contá-las.” Entrevista de G.Almeida a Rodrigues da Silva, Jornal de Letras de 22/4/98
  • 3. No prefácio à obra escreveu: Na altura pretendi publicar todo o livro, obviamente no estrangeiro, como forma de mostrar a injustiça que tinha sido cometida e por essa via eventualmente pressionar no sentido da libertação dos presos. Essa libertação acabou por acontecer enquanto procurava editor para o livro, mas anos depois continuava a sentir que ainda se não tinha feito justiça pelo que, em 1992, se decidiu pela sua publicação.

por Ana Cordeiro
Cara a cara | 15 Junho 2010 | Cabo Verde, crioulo, Eva, Germano de Almeida, Literatura