Entrevista a Carlos Kangamby, o Vº Mukuva do Cuchi

Entrevista a Carlos Kangamby, o Vº Mukuva do Cuchi, considerado município-sede ou a capital dos Ngangela, que se situa a 95 quilómetros, de Menongue, sede da província do Kuando Kubango. Nesta conversa ficamos a saber da trajectória deste povo, o que os levou a si fixarem naquele território, a relação com os colonos, a forma como a primeira mulher que obteve o título de Mukuva, ascendeu ao trono, entre outras coisas.

Senhor rei, gostaríamos de ouvir de si o relato histórico deste reinado do Mpengo, uma vez é o quinto Mukuva. Como tem sido a ascensão do rei nesta região: por linhagem, ou por eleição directa?

Nesta região do Kuando Kuango fala-se muito de divisões por parte das autoridades tradicionais, por isso é que queremos constituir três ou quatro reis, e penso que é a melhor via, porque de facto somos todos Ngangela, e o nosso território está delimitado entre o rio Cunene, pela vila da Matamba, e o rio Cunene e à divisão destes povos, começando pelo Oeste onde temos o rio Kuango, que se situa na região dos Ngangela, cujo centro foi o Cenje, onde parte à ramificação dos Ngangela. Como sabe, a origem dos Bantu vem da região dos Grandes Lagos, de onde migraram para este território à procura de melhores condições de vida. Os Ngangela foram dirigidos para esta região pelo Vitava, cujo nome significa observar. Aquele homem, o primeiro a se deslocar ao poente de África, à procura de melhores condições de vida, depois de muitos sacrifícios para poder sobreviver, foi influenciado pela sua cultura, os Ngangela uniram-se em volta do Vitava. Segundo a história, o povo Ngangela passou pela Zâmbia, depois penetrou para Este e Leste do Bié, e porque uma parte daquela província já havia tido uma comunidade dos Ngangela, assentaram arraiais na primeira aldeia do Kuango e Tembo, fazendo então a ligação com o Kuango, ou seja, se expandiram a partir dum riacho que liga à extremidade do rio Kuango, que ascende  pelo planalto do Huambo, que vai dar ao Cicomba, e ao Ambos, descendo pelo rio Kuvango até à sua extremidade.

Nós, os Ngangela, levamos muitos anos para ocupar este espaço do Kuando Kubango, depois de um longo percurso, houve um cruzamento entre dois povos, que mais tarde vieram a descobrir que somos da mesma família, daí acabaram por se unir fazendo do centro o rio Cenje, que naquele tempo chamava-se Mpengo, que em Ngangela significa Palanca. Por isso esta região chama-se Mpengo, porque os Ngangela vinham à procura de melhores condições de vida no Mpengo, mais tarde vieram a tornar-se caçadores de animais ferozes. Graças a Deus chegámos a esta região onde estamos até hoje e nos multiplicamos de geração em geração. 

Quanto à linhagem, devo dizer que o Mukuva I travou uma grande guerra política no Cuvango com os colonos, que resultou em muitas baixas. Porque o rei Muene Civaco não aceitou a submissão, fez com que os brancos fossem à busca do seu exército na Europa, e no terreno chegaram a utilizar os sacerdotes no sentido de sensibilizarem o povo sobre pretexto da evangelização. Com a chegada dos padres, o rei foi solicitado a arranjar um local para os sacerdotes poderem acampar, foram então dirigidos para o Mwondo, onde fixaram residência, depois de um tempo, os padres chegaram à conclusão de que o Mwondo não era um local favorável para suas pretensões agrícolas, porque não tinha água, o que impossibilitava a agricultura. Então, os sacerdotes foram ao encontro do Muene Mukuva, para solicitar um outro local onde pudessem estar melhor instalados, é assim que o Muene Mukuva os autoriza a procurarem, dentro desta região do Mpengo, um outro lugar para acampar, daí  deslocaram-se para um local mais próximo do rio Cenje, que lhes oferecia condições mais favoráveis para as suas pretensões.

Quando o Civaco se apercebeu da intenção dos Makuas, ou seja dos brancos, ele travou um combate político muito forte com eles, diz-se até que terá arrancado a barba de um sacerdote, facto que forçou os Makuas a irem para Europa, com objectivo de ir buscar um exercito que viria a invadir o Kuvango.

O Mucuva I, para travar a ocupação colonial, fez amizade com os portugueses, e do que me foi contado pelos meus ancestrais, quando eles chegaram aqui, queriam entregar alguns bens ao rei em troca da ocupação região. Mas o rei Muene Mucuva I consultou a comunidade, pondo-os ao corrente das pretensões dos portugueses, foi aconselhado a responder negativamente às pretensões dos colonos, chegaram mesmo a apelar ao rei a não receber nenhum bem dos colonos, sob risco de se perder o controlo da região. Foi a partir dai que teve de travar uma guerra política, e não houve qualquer acordo com os portugueses.

Portanto, os portugueses não conseguiram convencê-lo, nem ele conseguiu convencer os portugueses. Mas ficou bem clara a ideia de que se a intenção dos colonos era ficar, podiam, desde que não fosse para explorar o povo. Por conseguinte, os sacerdotes, mais tarde, solicitaram ao rei que lhes cedesse alguém da sua confiança, para os auxiliar, o Mucuva I, cedeu-lhes uma das suas filhas, que acabou por ter o título de rainha, a outra filha que esteve ligada aos serviços administrativos, e a terceira a Kacuvo, teve a responsabilidade do posto do Kadjimbo, que é o posto Mukuva, e a outra ficou com o Mponge, actual Mukuva II.    

Naquele tempo os velhos tinham uma estratégia de protecção,  chamada de magia, hoje em dia nós não utilizamos, por exemplo, eles transformavam esta região em zonas de cheias, provocadas pelas chuvas, e o colono sentia medo, daí o seu respeito pelo Muene.

O Mukuva I foi sepultado na Ilha do Citava, próxima do rio Cuchi, onde ele vivia. Na geração dos Nganguela, temos a Nkuva que é a primeira filha, depois a Mutango é a segunda, a Kacuvo é a terceira, a Mbaco é a quarta, e a Kassongo é a quinta, se surgir uma outra filha já não se dá o nome da genealogia.

Eu sou filho Zeca Mbinda, que era o Mukuva III, que foi conhecido a nível nacional de África, e também pelos portugueses, teve uma política muito equilibrada, apesar de ter como ponto negativo o facto de aceitar a prática dos contratados nas roças de café, ele defendia o seu povo, ou seja, velava pelos interesses dos nativos de Angola em geral, sobretudo os do Cuchi e os do Mpengo, morreu com pouco mais de 90 anos, para sua sucessão, coube ao seu filho Mukuva IV que, por altura da visita do antigo primeiro-ministro a Menongue, se fez presente no acto de recepção do antigo primeiro Ministro de Angola, no seu regresso ao Cuchi, e porque já não estava muito bem de saúde, depois de três dias acabou por falecer.

Quanto a mim, não tive uma ascensão com base na linhagem, fui eleito pelo povo da comunidade do Mpengo, que entendeu que eu tinha que assumir o trono, não fui escolhido pela família nem pela geração do Mukuva, fui eleito a partir das comunas do Vissate, do Cutato, do Cinguaje, do Candjingo, e até mesmo do próprio  povo de Menongue. Uma particularidade, que devo referir aqui, é que grande parte dos quadros que estão em Menongue, são naturais do Cuchi, deixa-me dizer-lhe que houve uma comissão que veio de Menongue, que elegeu-me como rei do Cuchi. Por vezes lamento, e até mesmo sofro pelas queixas que povo do Cuchi faz, muitas  destas queixas são dirigidas ao  governo, eu próprio, não tenho como funcionar, sou um quadro formado que devia estar na minha carreira de trabalho, mas não consigo porque o povo me indicou assumir esta missão, faço uma analogia com Jesus Cristo, quando lhe perguntaram: “Você é filho de Deus? Ele respondeu dizendo se vocês o dizem, eu sou”. Por isso, quando o povo me indicou, lutei muito, fiz muitas orações para mim mesmo, o povo fez muitas festas para eu ganhar traquejo, e hoje sou o Mukuva V, esta casa onde eu estou, foi me oferecida pelo governo angolano, é a primeira vez que vem para aqui, um jornalista para colher dados desta região do Mpengo, a região dos Ngangela que pertence a todos nós.

O que nos pode dizer acerca da primeira mulher Mukuva, qual terá sido a sua linhagem familiar? Que sentimento tem, sabendo que o senhor  é o Mukuva V?

A Mukuva II foi uma das filhas do Mukuva I, a sua ascensão não foi da sua livre vontade, é como acontece nas eleições hoje aqui, em Angola esta prática não vêm de hoje, aqui na região dos Ngangela. Toda liderança deve ser eleita, são escolhidos determinados filhos netos e sobrinhos, depois o povo faz a escolha, em função das suas acções a nível da comunidade, o mesmo aconteceu com a Mukuva II, porque ela foi uma mulher bastante dedicada a nível da comunidade e o povo reconheceu aquela atitude, teve uma relação boa com à Muene Vunongue, com a Muene Civaco, que é a origem da sua mãe, à Mukuva II, era do Katoco, do Kuvango, na nossa geração, por exemplo, eu não posso segurar na minha filha entrega-la ao povo simplesmente, ela tem que estar com o filho de uma linhagem de sobado, se eu entregar a minha filha, ela tem que estar com um filho cujo os pais pertencem a uma linhagem vinda do reinado, para podermos controlar este povo, porque se entregarmos à nossa filha a um individuo qualquer, ele pode me desviar a filha, porque esta pessoa que vai casar com ela, pode ser um marginal, e desviar a posição do reinado.

Eu, por exemplo, sou filho de José Kambinda, o falecido também foi filho de José Kambinda, nós pedimos aos sobrinhos de José Kambinda, e os seus netos para assumirem o reinado, não queriam, eles fugiram, alegando que assumir esta posição fica-se muito exposto a morte, então eu pergunto, se o poder é do meu pai, se o poder é do meu mano, se o poder é do meu avó, eu vou deixar?

 O governo disse “já que vocês não querem, fica assim”, o próprio povo não aceitou, porque eu próprio estava negar a posição de ser rei. Como é possível eu aceitar se o meu mano já morreu? Quem o matou ninguém sabe, o meu pai morreu, agora vocês me colocam como rei? Eles responderam, que eu tinha que assumir, e seguir a carreira do meu pai, a carreira do meu avó, a carreira do meu bisavó, e que eu tenho que estar com as mãos abertas, quem me entrar com o pé direito, eu tenho que lhe receber com a solidariedade e caridade, quem me entrar com o pé esquerdo, tenho que lhe endireitar, aqui vive-se assim.

Gostaríamos que nos falasse das grandes dificuldades que a população do Município do Cuchi vive, e atendendo à sua condição de rei dos Ngangela, quais têm sido as grandes dificuldades que chegam junto de si, e por outro lado as respostas que o rei tem dado aos populares?

Aqui no Cuchi, o povo do Mpengo tem atravessado muitas dificuldades, digo isto porque o homem actual é moderno, já tem uma certa evolução, nós queremos desenvolver a cultura, o povo quer levar a cultura do passado com a do presente, mais não temos instrumentos musicais, para que isto seja possível, temos que ter instrumentos musicais, temos jovens capazes de se aperfeiçoarem na música, mais não conseguimos instrumentos musicais para eles.

Uma das grandes dificuldades que nos é dada a constatar aqui no Cuchi é que a população está privada de energia eléctrica, de água potável, o não acesso à Rádio e à Televisão, telefonia, aos serviços de bancos etc. Neste domínio, quais a maiores reivindicações desta população, e que resposta a dar?

São questões muito importantes, porque finalmente o povo e a própria comunidade tem transitado, uns vão ao Lubango, Menongue, e até mesmo ao Huambo, e acompanham o desenvolvimento daquelas zonas, aqui há muitas dificuldades, o povo quer se situar dentro do processo progressivo de África, eu por exemplo não consigo me comunicar com a minha família que se encontra em Benguela e no Huambo, gostaria de me comunicar com elas, saber como é que elas estão, aqui não temos formas de comunicação telefónica, por falta de antena, nós queremos comunicar com as nossas famílias que estão espalhadas por todo país e não só, não é possível, estas são as grandes reclamações  feita pelo povo, que nos perguntam, quando é que vamos ter antena aqui no Cuchi? Quando é que nós vamos poder falar com as pessoas que estão em Portugal? Que estão em Cuba? Estas são reclamações que a própria comunidade me tem trazido, e sou sincero com a comunidade, dizendo-lhes que tenham calma, que o governo não vai nos esquecer, e vai edificar tudo que nós precisarmos, sabemos que o comboio daqui a mais seis meses estará em movimento e este é um dos incentivos que eu tenho dado a comunidade, as comunicações, a televisão são essenciais, porque as nossas crianças e jovens não conhecem o que se passa no mundo, precisamos que o governo central nos ajude, que o governo provincial ajude o governo local aqui no Cuchi, e este por sua vez, ajude as administrações comunais, nós precisamos de acompanhar tudo que se passa no mundo, estes comentários estão no seio do povo, eles sabem que este é o troco da guerra que tivemos durante trinta anos, eu já tenho troco, as comunidades, comentam: dizendo afinal é só o rei que tem direitos?

Nós queremos também ver televisão, só o rei é que tem tudo, e o  povo? Porque quem acende o lume, tem que apagar, há os agitadores e há aqueles que acalmam, porque as coisas não são feitas de pé para mão, não! As coisas vão ser resolvidas de forma paulatina, no ano passado houve muitos problemas na economia, e eu tenho sido muito claro para com as comunidades, apelando à calma, que o governo não nos vai esquecer, a partir do momento que o comboio começar andar, também vamos ver televisão, a ponte que o senhor jornalista viu, que está debaixo da água, até não sei como é que vocês conseguiram passar. Mais nós confiamos no governo, ele está aqui, o senhor Administrador será o nosso porta-voz, para com o senhor governador provincial, e este por sua vez, será o nosso porta-voz junto do governo central, as coisas começam da base para o topo, depois do topo para base.

Uma das grandes críticas que têm sido feitas aos reis e sobas, deve-se ao facto, de se assumirem como militantes políticos, e não propriamente como autoridades morais que aglutinam todas as sensibilidades políticas. Como encara  estas acusações?

Aqui na minha região, e pelo que tenho acompanhado, é que o soba é o século, do Assate, depende da região, do regime dos povos genuínos, mas os sobas, os Céculos, dependem do Assate. Embora eu também faça parte desta região, o que tenho observado é que não existe nenhum soba a favor deste ou aquele partido político, porque o soba é um representante do governo, o soba é o presidente, o presidente não tem nada a ver com os partidos, é como o soba, o que está em falta é mesmo a questão da sensibilização, dos Sobas, dos Céculos, para que possam conhecer qual deve ser o seu papel, porque o Soba deve ser como um Professor, como um Enfermeiro, como um Padre, um Sacerdote, um Pastor. Um pastor não se importa, se este é desta ou daquela Igreja, que este é ou não da Igreja ou do partido, não! Mas ele sabe que tem que controlar, e deve saber que aqui na minha aldeia este ou aquele são do partido A ou B, se aquele partido está contra o partido no poder, ele tem que sensibilizar, porque ele tem que  alimentar o seu povo, um soba não pode ser  partidário, não pode ser militante, ele é soba, é um representante de Cristo, e os que mataram o Cristo, são os seus próprios irmãos, o soba conhece a sensibilidade política de cada um, se eles estiverem a fugir da linha orientadora do partido no poder, o soba deve sensibilizar dizendo que o governo quer assim, e o partido no poder quer isto, o soba não pode desprezar as pessoas que pertencem aos outros partidos, isto é o que posso dizer.

Qual o seu maior desejo para o Município do Cuchi, o que desejaria que o povo deste Município tivesse nos próximos tempos?

Para terminar, queria desejar, em nome do povo do Cuchi, ao nosso governo que este processo, que já vem de 2002, esteja a progredir e que continue a contribuir para desenvolvimento do povo do Kuando Kubango, em particular os do Cuchi, queremos que o governo olhe para as vias de comunicação, nós queremos poder visitar a nossa capital, o Menongue, visitar o Lubango, mais não há meios, porque as estradas estão péssimas, só no tempo seco é que é possível andar com alguma tranquilidade, neste tempo da chuva, tem sido difícil, por exemplo a comuna do Cinguaje, fica muito distante de Menongue, são perto de 163 quilómetros, aquele povo até agora lamenta esta situação, no Cuchi existem comunas que precisam de ser reabilitadas, como é o caso da comuna do Kandimbo, se o colono deixou lá uma pista, onde aterrava os aviões, algo deve existir, o colono viu, e eu tenho esperança na reabilitação da comuna do Kandimbo, aquela mata está livre, aqueles povos devem cultivar a terra, cultivar massambala, Batata, Massango, o povo quer gado, estamos na era da evolução, queremos tractores.

fotografias de Cláudio Fortuna

 

por Cláudio Fortuna
Cara a cara | 12 Agosto 2011 | autoridades tradicionais, Kuando Kubango, Ngangela, rei, relações de poder