Cavando o tempo para trazer à superfície vidas que não são do nosso tempo

entrevista com Sangare Okapi e Amosse Mucavele

Conversar o Aurélio Furdela, próximo do lançamento de “Saga d’Ouro”, o jeito foi mesmo thlangamelar, em entrevista, onde o escritor considera que a nossa intelectualidade gosta de ser bajulada. É uma espécie de importação da cultura do sistema político, quase uma tentativa de reprodução da hierarquia vinda da luta de libertação nacional, merecedora de uma certa glorificação. Esses outros se querem Chipandes da literatura.

Sangare Okapi (SO) – Sete anos passaram desde a publicação de “As Hienas Também Sorriem”. Não lhe parece um longo estágio de hibernação?

Aurélio Furdela (AF)– Preferia entender de outra forma, pois encaro a criação literária como uma elaboração que precisa de tempo para maturação. É óbvio que também haja quem, precise apenas de alguns meses para concluir a sua obra, algo meteórico? Talvez… Uma obra literária é, acima de tudo, um exercício de construção, tudo depende do material envolvido, pode ser de construção precária que, de ano em ano exige renovação, de lançamento e lançamento. Para o meu caso, prefiro estruturas muito mais sólidas e isso requer tempo. 

SO – Tive o privilégio de acompanhar algumas etapas da construção de “Saga d’Ouro”. Senti que estava bastante preocupado em dar um grande salto a nível de construção do texto. Sente que conseguiu dar esse salto?

O salto é de pára-quedista, um autor caminha com o texto, segue o curso que a escrita exige. Sem responder directamente a questão, diria que diverti-me bastante a escrever o livro. Mais do que escrever, foi também um autêntico trabalho de arqueólogo. Foi preciso cavar o tempo para trazer à superfície vidas que não são do nosso tempo. Depois o espanto ao descobrir que afinal somos tão iguais ao que entendemos como passado, somos apenas uma repetição da História. Se insistires em olhar para esta dimensão como um salto, então fica com a ideia de um salto no tempo, que exige um outro nível de construção narrativa.  

Amosse Mucavele (AM) – Para atingir esse nível de construção narrativa terá valido a pena alguma influência literária que queira destacar? O romance histórico já começa a cimentar alguma tradição em Moçambique, sobretudo através de autores das gerações que nos antecedem, Mia Couto, Borges Coelho, Ungulani Ba Ka Khosa, entre outros…Qualquer escritor tem uma série de influências, e não quero crer que seja uma ilha neste mar de leituras que nos toca. Mas, se prefere falar de alguma tradição em Moçambique, prefiro não olhar para o nosso caso como algo isolado do mundo. A memória manda dizer que recuemos até à idade Media na qual o romance histórico já era prática, e todos perseguimos essa tradição. Por lotaria da vinda ao mundo, no nosso caso, uns descobriram-no primeiro que os outros, e podem sim ter sido uma janela, que revelou esse maior universo da escrita, que todos perseguimos, somos  herdeiros de um género literário que data de há séculos. E quando se refere a gerações literárias, hoje, que duro na vida há quase meio século, olho para esta questão de gerações literárias em Moçambique, como mera precipitação, embora um capricho necessário ὰ disposição da actual academia. Transcorridos 50 anos ou mais, provavelmente irá se descobrir muito mais elementos a fundir o que hoje tipificamos como geração Charrua e Oásis. Hoje habitamos o mesmo universo social, histórico e literário, no qual autores criam e recriam, influenciando-se mutuamente, a nível de ideias e formas de escrita. Numa interacção, a influência não avança somente numa única direcção. O que acontece, no olhar de alguma crítica, que hoje faz a opinião, é de cariz monolítico. Resumindo, acredito que das “gerações” que surgem na década 80 e 90, nascem similaridades óbvias, induzidas pelo contexto, e não por alguém. Dessa geração alargada, dependendo das particularidades, poderemos com o tempo concluir que exista uma primeira, segunda e ate terceira onda da mesma geração. 

AM – Encarando a situação como colocas, admito que a internacionalização dos autores que emerge nos anos 80 e 90 ganha maior expressão nos últimos anos, quase que em simultâneo, isso evidencia o teu raciocínio?

Em parte sim, pois a cada tempo perpassa uma espécie de nuvens de ideias, da qual todos chovemos a nível criativo. É claro que, sendo da mesma espécie, porque de facto o somos, salvo algumas especificidades deste ou daquele que são naturais. Quem contactar com a literatura moçambicana tenderá a olhar agora como se do mesmo cardume se tratasse. Não é por caso que a oportunidade de publicação no Brasil, por exemplo, acontece quase que em simultâneo para um Aldino Muianga, ou um Clemente Bata, como aconteceria entre um Suleimane Cassamo e Rogério Manjate. Mas também é preciso entender que esta internacionalização está ainda ferida, de ser uma espécie de extensão do nosso contexto interno de legitimação de escritores. Os mesmos actores que tendem a sentir-se deuses para dizer quem é quem na literatura moçambicana, ainda são os mesmos que controlam, que sugerem às editoras internacionais quem deve ser publicado. Com o tempo essa força se esboroa, e poetas da dimensão de Amin Nordine ganharão a visibilidade que hoje lhes é negada.   

Aurélio Furdela, fotografia retirada de O PaísAurélio Furdela, fotografia retirada de O País

SO – Que papel desempenhariam as páginas culturais, em contraposição, ou em auxilio da academia, para dar esta visibilidade aos autores que parecem esquecidos ao longo dos tempos?

A crítica dos jornais mostra-se mais dependente da opinião da academia, não se confere luz própria. Não são poucas as vezes que li nas páginas culturais entrevistas com académicos, com perguntas claras de aferição do nível de escrita dos autores emergentes. Reproduzem o pensamento, em títulos garrafais, tipo: o que se escreve hoje é lixo? Falta alguma capacidade crítica, como também pesa uma certa preguiça de ler e transmitir a própria impressão. Se não é preguiça, então é insegurança, mas o sistema literário não pode depender apenas da opinião dos académicos, pois se esses se entregam ao compadrio, tudo ficará a mercê das suas condimentações. Não digo aqui que não temos uma critica seria na academia, Lucilio Manjate é um bom exemplo a esse nível. Nos jornais, José dos Remédios marca passo positivo. Mas também andamos a dar crédito a críticos que leem pessoas e não livros. Um Amin Nordine foi e é lido como pessoa e não como poeta. Contudo, um bom verso nem sempre rima com bom-menino. Pior, é que nem se está à procura de bons meninos, mas de aduladores. A nossa intelectualidade gosta de ser bajulada, é uma espécie de importação da cultura do sistema político, quase uma tentativa de reprodução da hierarquia vinda da luta de libertação nacional, merecedora de uma certa glorificação, esses outros se querem Chipandes da literatura. 

AM – Não acha que lhe falta alguma modéstia, que chega a confundir-se com arrogância aos olhos de alguns?

Tudo depende do que acreditamos ser modéstia, ou arrogância. Eu entendo por modéstia o reconhecimento individual de que há matérias que não tenho domínio, devo aprender, dos livros ou de quem sabe. Por isso, ao longo do processo de escrita, por exemplo, do livro que lançarei na sexta-feira, várias são as pessoas que contactei para me passarem informação ou alguma bibliografia, para ler e avançar com o meu projeto. Uma dessas pessoas é o Dr. António Sopa, a quem agradeço a orientação para a leitura de alguns autores. Também recorri ao Américo Pacule, para testá-lo como leitor, e dele colhi opiniões. Aliás, tu mesmo Sangare, quantas vezes bati a tua porta às 6 da manhã, para leres parte um capítulo da obra? Depois pedia para leres em voz alta, enquanto eu caminhava no teu quarto, de uma ponta à outra, para ouvir o ritmo da cada palavra. Isso entendo como modéstia. Agora, aquilo de curvar-se ou dizer sim senhor sempre que um “senhor dos anéis” fala, isso é bajulação.  Quanto a arrogância, prefiro responder que muitos confundem autoconfiança com arrogância. 

AM – Sente que o seu crescimento como escritor foi favorecido do facto de estar ligado a AEMO?

Essa é uma ideia que muitos gostariam de fazer passar. Entretanto, estar ligado a AEMO até certo ponto veio a pesar contra. Tudo o que escrevo a nível de opinião pessoal, desprovido de argumentos, não falta quem associe as minhas ideias a quem julgam que manda nos outros. Sou um sujeito de pensamento livre, para quem me conhece, desde a fase da escola secundária, onde começo a despertar como indivíduo, até à universidade, sempre fui assim. Reconheço que hoje seja difícil para quem cresceu a ser pau mandado, admitir que haja gente com opinião própria, também porque andamos a tentar construir uma espécie de intelectualidade de plena concórdia, isso é política. Quem está na literatura deve estar preparado para ideias contrárias, como também discuti-las, ou ficar calado, sem diabolizar todos.

SO – Falando em ideias, não acha que estando a escrever um romance Histórico, correu risco de estar a cavar a sua própria sepultura, depois de fazer a crítica que fez ao livro Mulheres de Cinza, um outro romance histórico?

A literatura não é bem um campo de troca de galhardetes, sendo um campo de pensamento, este deve ser exteriorizado, e recebido como tal por parte de quem quer que seja. Escritores como Suleimane Cassamo, Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa ou Aldino Muianga, fizeram parte das minhas leituras, e talvez da minha formação como autor. Nunca Deuses imaculáveis. Reconheço esses escritores pela dimensão que têm. Mas isso não deve tornar-me pequeno a ponto de não ter uma opinião sobre eles. Quanto a questão de cavar essa coisa, não ficarei trancado em casa com medo da chuva. Estou preparado para a crítica. 

AM – Já Agora, o que irá fazer com os cinco mil euros do prémio?

Isso equivale a perguntar a um nubente o que fará com a esposa depois do casamento, isso é óbvio, pá. (Risos)

por Aurélio Furdela
Cara a cara | 16 Junho 2019 | Aurélio Furdela, literatura, Moçambique