As árvores têm raízes, nós temos pés

“A constante negociação entre local e global, o estrangeiro e o fmailiar, tornou-se uma condição básica da modernidade.”   Jean Fisher, 1992
“A contribuição dos artistas borderline…performatizar uma poética da fronteira aberta.”
                                                 Homi K. Bhabha, 1993

 

Mónica de Miranda é uma artista das cidades.
Num tempo de cidades mestiças, que beneficiaram muito da chegada de gentes de múltiplas culturas. Imigrantes? Cosmopolitas? Um olhar acurado às populações imigrantes na cidade do nosso tempo, às suas complexidades e novas oportunidades, permite mostrar várias coisas; uma delas que a contra-posição tradicional entre origem e destino já não parece resultar muito clara nem definitória. As categorias de imigrante e de cosmopolita sobrepõem-se quando uma parte significativa da cidade metropolitana é formada por pessoas de muito variadas condições e posições, que no seu quotidiano tecem vínculos económicos, sociais e culturais entre mundos diversos. Pelas cabines tele-fónicas, pelos telemóveis e pela internet circulam amor, dinheiro e negócios, e criam-se redes transnacionais que a conectam com muitos outros pontos do planeta. Por outro lado, as cidades tornaram-se mais heterogéneas, a música e as danças por exemplo enriqueceram-se imenso, o pensamento debruça-se sobre o papel das migrações. Entretanto, os imigrantes também mudam, de modo a que a sua dupla relação entre o país anfitrião e o país natal produz em si e por si mesma uma estética que, por sua vez, contribui para que se produzam mudanças nos países anfitriões e nas suas expressões culturais. Neste projecto, temas abstractos como globalização, migração, identidade múltipla, hibridez cultural, são recontextualizados através de situações reais marcadas e vividas na Grande Lisboa, mapeando o que Mónica chama com muita pro-priedade uma Maior Lisboa.
Para além da exposição “Underconstruction” existe o livro, com o mesmo título, houve um ciclo de cinema, conversas, jantares e festas em várias associações, passeios e visitas a bairros, indo assim muito além da já gasta e reconhecida diversidade. O que Mónica de Miranda se propõe é “criar espaço para que os fluxos migratórios e transnacionais sejam vistos como uma realidade diversificada e multi-facetada, como uma plataforma criativa de opor-tunidades e um lugar de trânsitos para mudanças pessoais, culturais e sociais.” No centro da sua estratégia está o princípio da interculturalidade, que deveria implicar uma promoção sistemática e gradual de espaços e processos de interacção positiva, possibilitadora de uma generalização de  relações de confiança, de reconhecimento mútuo, de debate, de aprendizagem e de troca. Estratégia de artista, e de criação artística que desde sempre são um lugar privilegiado de captação e animação dessas dimensões, ainda utópicas mas já presentes.

Under-construction, Monica Miranda / Paul Goodwin 2009Under-construction, Monica Miranda / Paul Goodwin 2009

A sua abordagem artística levou-a a perceber, e dar a ver, como grande parte da população imigrante da cidade vive sempre, na Grande Lisboa, para fora do que resta da estrada militar construída para a sua defesa dos invasores fran-ceses no início do século XIX. A “fortaleza Europa” encontra aqui terrenos his-tóricos para se proteger de novas invasões de estrangeiros… Mas também como, mesmo aí nos subúrbios e na margem, ou talvez mesmo por serem margem, estão Em Construção, inacabada e fluxional mais do que definitiva, outras formas de urbanidade, que criam por sua vez redefinições constantes de cultura e identidade.
Os trabalhos com que se inicia e termina o percurso da exposição constituem-se como símbolo de tudo o que está no meio. Quer dizer, como uma espécie de precipitado de fluxos e deslocações múltiplas de pessoas e dimensões culturais. Quando se entra, “Obras Públicas”, uma betoneira, mas uma betoneira camuflada. Máquina de construção por excelência, evoca a actividade mais frequente de um número muito grande dos emigrantes lisboetas. Dentro dela tudo se mexe e se mistura, e ela própria, equipada com rodas, ocupa sempre um espaço temporário, transitório, de construção que se faz. Porém a betoneira da exposição está totalmente forrada, obscurecendo a máquina, que pôde assim deslocar-se do espaço das obras, camuflar-se no contexto da arte. For-rada por um tecido com um padrão de palmeiras, que no nosso imaginário (mesmo havendo tantas entre nós!) remetem para os lugares de origem dessas pessoas. A última peça que se vê, “Black House”, reforça a ideia de processo. É a construção acabada, mas uma construção transitória. Feita de resto de um material usado nos andaimes das obras em construção.

Under-construction, Monica Miranda / Paul Goodwin 2009Under-construction, Monica Miranda / Paul Goodwin 2009Under-construction, Monica Miranda / Paul Goodwin 2009Under-construction, Monica Miranda / Paul Goodwin 2009

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ela própria uma migrante, nascida de migrações, quando pensa em migração, Mónica de Miranda faz também um exame minucioso de si própria e dos ambientes por onde vai vivendo, com as suas relações sociais. Que fazem parte do seu processo criativo, marcado pela colaboração e participação do seu círculo pessoal de amigos e familiares, como se vê no vídeo da jornada pela paisagem da velha, e actual, estrada militar. E que se estende a outros colegas criadores, a estudiosos e críticos, como acontece na própria exposição que integra trabalhos de outros autores, colectivos às vezes. Bem como nas restantes actividades que compõem este projecto.
Não sabemos o que será a nossa civilização quando ela realmente encontrar outras civilizações por meios diferentes do choque da conquista e da dominação. Temos que admitir que esse encontro não teve ainda lugar na forma de um diálogo autêntico. Por isso estamos numa espécie de intervalo em que não acreditamos mais no dogmatismo de uma verdade única, e em que ainda não somos capazes de dominar o cepticismo em que caímos. Trabalhos como este de Mónica Miranda podem ajudar-nos a entender esta situação, e, esperemos,  a abrir as fronteiras da fortaleza.

Mónica de Miranda

Mónica de Miranda vive e trabalha em Lisboa e Londres. Artista, produtora e educadora. Licenciada em Artes Plásticas na Camberwell College of Artes (Londres, 1998), e com Mestrado em arte e educação pelo Institute of Education (Londres, 2001), encontra -se actualmente  a desenvolver o seu douturamento na Middlesex University (Londres) como bolseira da Fundação Ciência e Tecnologia.

É uma das fundadoras  do projecto de residências artísticas  Triangle Arts trust  em Portugal. O seu trajecto artístico consta de várias exposicões individuais e colectivas e  projectos de arte pública e residências artísticas desenvolvidos tanto nacional como internacionalmente.

Underconstruction and New territories (Pav 28, Lisboa ,2009), Verbal eyes (Trienal da Tate Britain, 2009), London Caravan ( Iniva, 2008) Babel  (Museu de arte nacional de Maputo, Triangle arts, 2008), New Geographies (198 gallery/ Image IC/ Plataforma Revolver, Londres/Amsterdam/Lisboa, 2007/08), Paradise (Museum of Modern Art Hertogenbosh, Holanda, 2007), Do you Hear me (Fundação Calouste  Gulbenkian, Lisboa ,2007), Walk (Singapore Fringe festival , Singapore ,2007), Tuning (File, Rio de Janeiro ,2007); Roadlines (Centro Pablo de Cuba, Havana, 2006); Bitting Nations(Living Gallery, Italia, 2006);

Bolseira  da Fundação Calouste Gulbenkian (2009),  DGArtes - MC (2009),  I. Camões (2008), Arts Council of England Londres (2006), Fundação Oriente, Portugal/India (2007). Participou  na Bienal de Londres e Liverpool (2006/04).  A sua obra esta representada em coleçcões nacionais e internacionais. 

Publicações (selecção): Underconstruction, Direção Geral das Artes, Lisboa (2009), Video Arte e Filmes de Arte e Ensaio em Portugal, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa(2009), Cartography : Artists + Maps, Princeton Architectural Press, Nova Iorque, (2008),Emotional geographies, A.space , INIVA, Londres, (2007), Guru, tourist and Globalization,Fundação do Oriente, Lisboa, (2007), New Geographies, 198 Gallery, Londres, (2007).

 

 

por José António Fernandes Dias
Cara a cara | 16 Maio 2010 | emigração, Europa, imigração, interculturalidade, margem, Mónica de Miranda, Underconstruction