“Acusam-me de fazer objectos pouco esculpidos, pouco africanos”, entrevista com Balthazar Faye

Entre a valorização de uma tradição e a expressão de novas formas de inovação, o design em África dá prova de uma grande vitalidade. Cada vez mais presente na vida quotidiana, nas fronteiras da arte e da indústria, os objectos de design encontram agora o seu lugar nas grandes manifestações internacionais e artísticas como nos salões europeus e na Bienal de Arte africana Contemporânea de Dakar. Mas o desafio consiste ainda em propor produtos que, tendo em conta realidades locais, possam ser reproduzidos in situ. Qual é, então, a margem de criação dos designers? Balthazar Faye nasceu em 1964 no Senegal onde, desde a sua infância, foi sensibilizado para a fabricação de objectos. Actualmente, vive e trabalha em Paris onde uma grande parte das suas criações se empenha em dar um sentido à sua herança cultural. As suas obras transcrevem em volume uma acumulação de imagens provenientes das suas diferentes viagens. Nesta entrevista, elucida-nos sobre o seu percurso e sobre a sua ideia de um design verdadeiramente africano.

Frequentou uma escola de Belas Artes em Besançon e fez uma formação em artes decorativas em Paris. No entanto, considera-se frequentemente que o seu trabalho valoriza uma certa herança cultural que se deve à sua origem senegalesa. Como definiria a identidade dos seus objectos?

 Os objectos que fabrico são fundamentalmente mestiços, uma mistura de todas as minhas influências. Tenho origens senegalesas, mas sou também meio alemão: o irmão da minha bisavó era Gropius, fundador da escola Bauhaus. Efectivamente, durante a minha adolescência, eu cresci com o mobiliário que provinha dessa tradição. Conservo no espírito o fascínio que exerciam em mim os móveis tubulares de Marcel Breuer, bem com as criações de Ritvel. Os seus estilos contribuíram para a construção da minha sensibilidade ao objecto. Esta sensibilidade fortaleceu-se com o tempo e graças a numerosos lugares onde se inscreveu a minha vida. Nasci no Senegal e aí passei parte da minha infância. Aí, comecei por ser interpelado pelas possibilidades extraordinárias oferecidas pela madeira maciça e o mobiliário esculpido. Um pouco mais tarde, no Congo, tive oportunidade de fazer a minha primeira abordagem do ferro forjado. Provavelmente, o facto de ter sido afastado de África durante a segunda parte da minha existência suscitou em mim um forte desejo de trabalhar em torno de formas muito esculpidas. Hoje a ornamentação já não é importante na minha maneira de abordar o objecto porque quando penso em “design”, aspiro a desenvolver uma forma com eficácia funcional. Trata-se, no meu trabalho, de encarar o material como um recurso e de poder submetê-lo a explorações técnicas. Por exemplo, se trabalho com um material elástico, é absolutamente necessário que a elasticidade desse material sirva o objecto que ele vai constituir. É uma questão de coerência entre a matéria e o objecto. Por isso, esforço-me por explorar o aspecto natural dos materiais. A pele de um objecto deve servir de alguma forma para valorizar a sua particularidade.

Isso evoca algo de muito táctil, a ideia de que a pele do objecto possa encontrar a nossa.

Evidentemente, o lado táctil do objecto é essencial. Há objectos que são mesmo concebidos a partir de várias peles diferentes e é, na verdade, o seu contacto, mas também o contacto com a nossa pele, que cria a qualidade da obra.

O design é uma arte aplicada com vocação industrial. Quais são os elos da cadeia que permitem o encontro entre um objecto e o cliente?

 Há três órgãos de execução essenciais para que um objecto possa ser lançado no mercado. Há o criador, o fabricante e o distribuidor. Todavia, a realidade do design não se comporta de modo tão sectário. Na Europa, por exemplo, é frequente encontrar industriais que possuem, no seio da sua estrutura, um gabinete de estudos e um espaço destinado à venda de objectos. Por vezes, certas estruturas desenvolvem também um espaço de comunicação destinado à imprensa.

Trata-se provavelmente de harmonizar um conjunto de competências para uma venda mais eficaz…

 Naturalmente, esta preocupação de organização consiste em optimizar a venda de um objecto ainda que isso crie, por vezes, inomináveis contradições. Há que dizer que os objectivos dos media nem sempre correspondem às motivações do criador. Considerando a minha própria experiência, já me encontrei em situações embaraçantes em que me acusavam de executar objectos pouco esculpidos, pouco africanos no final de contas. Para a imprensa, trata-se muitas vezes de falar sobre o carácter extraordinário de um objecto. Enquanto criador e enquanto africano, tive por vezes o sentimento de que me pediam que fosse o garante de uma certa imagem que presume veicular o objecto proveniente de África. Isso aborrece-me sempre imenso! Do meu ponto de vista, a melhor forma de ser embaixador de uma cultura africana em matéria de design consiste em executar objectos que transcendam o cliché da africanidade. A minha preocupação limita-se essencialmente a poder criar uma obra com uma certa qualidade porque muitas vezes a qualidade do produto desempenha o papel de embaixador muito mais que o cliché. Hoje não tenho ilusões, sei que em África também se considera que o meu trabalho não é suficientemente africano.

Que outros tipos de dificuldades encontra num trabalho de fabricação de objectos em África?

 A maior parte delas situa-se ao nível da percepção dos objectos a fabricar. Há alguns anos, em Lille (França), no âmbito de uma exposição de mobiliário e de objectos contemporâneos intitulada “La cour africaine”, eu apresentei um trabalho realizado com artesãos do Senegal. Os meus esforços iam no sentido de descerrar saberes-fazer específicos à volta de materiais como a madeira, o ferro ou até o bronze. O objectivo era trabalhar sobre um mesmo objecto com artesãos locais oriundos de vários grupos de profissões. Aliás, a maior parte destes artesãos estão habituados, de acordo com a sua especialização, a fabricar objectos de A a Z. Quando compreenderam o interesse de explorar novos hábitos de trabalho, isso tornou-se muito benéfico do ponto de vista colectivo. Juntos, tivemos o sentimento de abrir possibilidades, mas as maiores dificuldades situaram-se ao nível dos limites geográficos devido à distância entre cada oficina. De facto, não é fácil fazer vir um fundidor de metais à oficina de um marceneiro, coordenar o estado de avanço de cada oficina. É preciso estar constantemente atento à combinação dos materiais uns com os outros. Apesar de tudo conseguimos!

Para si, o principal interesse em fabricar objectos em França é certamente poder beneficiar de uma tecnologia que não existe em África?

Exactamente. Mas isso não significa que seja necessário evitar executar objectos em África. É sempre um verdadeiro desafio produzi-los lá. Só que é necessário conceber as coisas de modo diferente, adaptar-se à realidade do terreno, nomeadamente como resolver o problema da produção em série. Alguns países, em África, não possuem ferramentas que permitam a execução de um mesmo objecto indefinidamente. Para ultrapassar esta carência tecnológica, seria preciso integrar conceitos de execução como, por exemplo, a peça única em série. Efectivamente, porque não valorizar a pequenas diferenças entre os objectos que se inspiram no mesmo protótipo? Porque não jogar com a exploração destes “futuros erros” de produção em vez de ficar à espera da implantação de uma tecnologia normalizada?

Se nos referirmos à pintura popular africana, esta questão da série é considerada pelo mercado ocidental como um problema. No Ocidente, pensa-se que um artista não deve produzir uma obra em série. Ao contrário, em matéria de design, parece encararem-se as coisas de modo inverso: pede-se aos criadores uma série perfeita.

É verdade que a arte pressupõe um comportamento. A arte é um gesto que se faz num determinado momento. O que conta é o caminho que conduz à realização deste gesto e ao próprio gesto. Uma vez experimentado este gesto, a ansiedade que acompanhava o seu encaminhamento desaparece. Daí que a cópia de um primeiro gesto já não tenha o mesmo valor que a produção original. Mas em certas disciplinas artísticas, a ideia de cópia faz parte integrante do processo de criação. É o que acontece quando falamos de serigrafia, de litografia, de gravura, de modelagem. São outras tantas disciplinas que integram a repetição do gesto experimentado. O design é uma arte aplicada à indústria e ao consumo, mas o processo criativo em design não apresenta repetição. Para cada situação, uma nova solução, um novo resultado. O protótipo é único, o designer não se ocupa da produção. No entanto, a série faz parte dos parâmetros em que ele se apoia no momento da concepção. É exactamente através da multiplicação da unidade à idêntica e as suas variantes que a sociedade de massas pode organizar-se à volta de uma produção.

A ideia da produção em série faz parte das suas preocupações?

A ideia da série nunca me abandona. No entanto, não motiva o meu desejo de conceber o objecto. Eu penso nisso sem ser verdadeiramente responsável por isso. É preciso compreender que o criador de objectos não está forçosamente na base de um projecto. Trabalho muitas vezes para responder a um caderno de encargos porque a vocação do designer é saber responder a pedidos específicos dos industriais. São sobretudo eles que dominam melhor a problemática inerente a esta questão de série. Paralelamente, há, claro, todas as ideias que o designer pode ter fora de um pedido específico. Trata-se, então, de as poder integrar num contexto.

Dispõe de muito tempo para as suas investigações pessoais?

Hoje tenho a impressão que é um luxo dispor de tempo para uma investigação verdadeiramente pessoal. Não se trata, aliás, só de uma questão de tempo, mas também de espaço e de desempenho intelectual. De facto, é favorável possuir um atelier suficientemente grande, que permita realmente pôr a mão na massa e sempre neste espírito de investigação. Refiro-me muitas vezes àquilo que aconteceu no início do século XX com o aparecimento da Bauhaus, em Weimar. Havia grandes espaços concebidos para permitirem que diferentes formas de Belas-Artes, artes aplicadas e artesanato se encontrassem lado a lado. Um tal ambiente era propício a um enriquecimento intelectual e animava, de facto, as investigações dos alunos e dos professores. Esta escola deu uma envergadura lírica excepcional às criações europeias da época porque, neste contexto, era absolutamente possível que um designer pudesse inspirar-se – e até praticar – diferentes disciplinas para alimentar a sua reflexão. Este movimento só muito fragilmente perdurou no tempo. E hoje é um luxo poder trabalhar dessa maneira! De certa forma, as escolas de artes podem ser encaradas como uma continuidade deste movimento da Bauhaus. É um contexto que permite realmente a capitalização do tempo por meio de experiências que valorizam todas as formas de explorações.

Como trabalha? São os pequenos trabalhos manuais que fazem nascer as possibilidades formais de um objecto? Que lugar atribui ao desenho?

Isso depende mais das circunstâncias em que emerge a ideia. Lembro-me de ter participado numa exposição na leitaria de Estrasburgo em 1998 que reutilizava o meu trabalho apresentado, em Paris, na exposição “Suites africaines”. Pediam-me para ocupar um espaço e executar urgentemente uma obra para substituir um artista que tinha desistido. Tive, então, a ideia de pegar em bacias de plástico translúcidas que coloquei umas em cima das outras e no interior das quais instalei luz. Aqui a minha ideia vinha do pequeno orçamento e do tempo muito limitado de que dispunha para conceber alguma coisa. Aconteceu-me também aperceber-me de que uma pedra possuía uma forma muito particular e que evocava em mim qualquer coisa muito precisa. É de certa forma um ponto de partida! Se eu me entrego ao pedido feito num caderno de encargos, o desenho impõe-se como tal na minha criação. Trata-se de colocar no papel todas as recomendações e as funções do objecto e, depois, procurar aperfeiçoá-lo ao máximo. Mas para dizer a verdade, não há realmente regras.

 

E a cor, como é que a pensa?

 

Decidir uma cor para um objecto foi sempre uma dificuldade para mim. Aliás, dei-me conta de que muitas vezes elaboro os objectos sem pensar na cor. À partida, são neutros. São muitas vezes os materiais, a particularidade das peles, que levam à cor e à sua qualidade. Quando me acontece usar uma paleta de cores e decidir realmente por uma cor, procuro sobretudo acentuar a forma particular de um objecto. A cor não é nesse caso senão uma função reveladora para a compreensão do objecto. Estamos numa época em que a aproximação entre o design e a moda não deixa de crescer. As cores são hoje encaradas como tendências que estão constantemente a evoluir. Há alguma coisa de positivo nisso: ousam-se relações entre as cores que eram inimagináveis ainda há poucos anos.

Como se situa entre um mercado ocidental e um mercado africano?

Em África tal como na Europa, podem distinguir-se diferentes famílias de consumidores. No entanto, a tendência dos gostos em África orienta-se amplamente para o modelo ocidental. Isso origina cópias de objectos ou produções “folclóricas” para turistas marcadas por clichés que eu não aprovo. As condições de vidas quotidianas não são de modo nenhum as mesmas em África por diversas razões: clima, nível de vida, cultura, etc. As importações são muito caras, muitas vezes desadaptadas e, quando são acessíveis, são de má qualidade. A produção local reproduz sobretudo modelos velhos com 50 ou 100 anos. No que me diz respeito, evito o obstáculo que consistiria em fabricar objectos em função da particularidade dos territórios. Embora tente realizar modelos concebíveis localmente, com materiais que se encontram localmente seja qual for o sítio em que proponho uma visão do objecto, o meu modo de conceber permanece, finalmente, idêntico. Apreendo sempre o objecto em função da sua utilidade, da sua originalidade, da sua beleza. Tento depurá-lo e tornar a sua leitura acessível a todos, porque um bom objecto deve ser acessível em toda a parte. A minha aposta é acreditar que a qualidade de uma criação depende da harmonia entre a estética e a técnica. Para mim, é-se bem sucedido quando consumidor, distribuidor, fabricante e criador ficam satisfeitos. Pensar em termos de territórios pressuporia que tal objecto só pode ser usado por um africano e outro só por um europeu, o que é uma aberração! Isso significaria que já não haveria trocas comerciais entre os continentes e que a África já não teria nenhuma hipótese de exportar quando tem tanta necessidade disso.

Em África, por razões eminentemente económicas, certos objectos são dotados de um potencial incrível por poderem ter funções diferentes. Esta concentração em torno do objecto utilitário contribui para tornar os interiores em África muito diferentes dos interiores dos países ocidentais.

É também a ideia de que nos países ocidentais o consumo é muito mais especializado. Uma mesa bem posta inclui vários tipos de talheres, de copos e de pratos consoante o que se come e o que se bebe. Aliás, não se sabe ao certo se o requinte é estimulado pelas propostas comerciais ou se o comércio seguiu uma verdadeira necessidade de requinte. Em África, por razões económicas, faz-se uma experiência diferente do consumo. Mostra que a natureza oferece tudo o que diz respeito às necessidades imediatas. No entanto, vê-se forçada a especializar-se em torno de medidas preventivas e de higiene. Por exemplo, ferver a água diminui o risco de cólera e esta disposição necessita da confecção de materiais bem específicos. As necessidades ligadas aos prazeres e ao conforto de vida desenvolvem-se, mesmo assim, pouco a pouco. Hoje, a televisão está presente na maior parte dos lares africanos, o que vai, inevitavelmente, gerar uma necessidade de mobiliário que permita aproveitar desta ferramenta em boas condições. Do mesmo modo constata-se que os quartos se modificam de forma significativa. As pessoas exigem cada vez mais dormir num colchão. Por isso, é preciso imaginar estrados de cama porque se sabe hoje que o corpo faz muitas condensações. O que é interessante observar é o engenho e a simplicidade desenvolvidos para responder a necessidades imediatas. Para mim, é neste princípio que a África se encontra com a sua história. Em cidades como Niamey e Bamako, existem essas mobílias enormes, muitas vezes cabeceiras de camas de aparência extremamente kitch, às vezes, com uma biblioteca integrada por cima da cabeceira. São reminiscências que datam do período das colónias. Nessa altura, as pessoas levavam as suas mobílias da Europa, mas também projectos de objectos para construir no território africano. Para isso, formavam marceneiros para poderem reproduzir esses projectos. É um trabalho muito ousado e fascinante. Esses móveis, hoje, estão completamente ultrapassados, ainda que não se possa excluir que possam voltar a estar na moda no futuro. Têm tendência a saturar os interiores, oprimem muito. Actualmente, os interiores em África, precisam de espaço e de ar.

Não receia fabricar objectos, para uma encomenda africana, que seriam apenas uma espécie de efeitos de imagens como pode, por vezes, parecer o trabalho de Philippe Stark para o grande público no Ocidente?

Philippe Stark é, acima de tudo, um comunicador. Ou melhor, é um designer de comunicação. Elabora conceitos de objectos cuja função é emitirem imagens e sinais. Estes objectos são fascinantes de um ponto de vista estético, mas pecam um pouco na sua função de uso imediato. No entanto, têm muitas vezes o poder de projectar para o futuro e de estimular o imaginário de outrem porque nem sempre são práticos! Tento abordar a realização de um objecto num postura mais sóbria. Utilizo o ferro porque é uma matéria muito maleável, barata e com características mecânicas muito elevadas. O que me interessa não é forçosamente o floreado, mas mais o gesto inventivo e a simplicidade que respondem às necessidades de todos. Relativamente à procura africana, ela é mesma que em qualquer outra parte no mundo. Quanto às elites, elas são semelhantes também em toda a parte. No que diz respeito às suas encomendas, alguns dão-vos carta branca enquanto outros sabem exactamente o que querem. Neste caso, é um pouco constrangedor porque nos tornamos mais um artesão que um criador.

A ideia de impor uma criação contemporânea africana justifica-se, considerando o que representa hoje um artista no mundo?

Isso não se justifica, mas tendo em conta um contexto de difusão muito difícil para muitos artistas ligados a essa zona geográfica que é África, tendo em conta os clichés a que regularmente somos associados, tendo em conta a discriminação e a limitação que muitos de nós têm de enfrentar, somos obrigados a forçar um pouco o olhar. Esperamos todos que as mobilizações à volta destas etapas de criação – que continuam todavia individuais – tenham o poder de abrir perspectivas.

 

Entrevista realizada em parceria com a Dak’Art, originalmente publicada no site Africultures

Translation:  Maria José Cartaxo

por Thierry William Koudedji e Lucie Touya
Cara a cara | 13 Dezembro 2010 | Balthazar Faye, design