A 'Terceira Diáspora': entrevista a Goli Guerreiro

Você explica terceira diáspora como “deslocamento de signos provocado pelo circuito de comunicação da diáspora negra”. Se essa diáspora é propiciada pela globalização eletrônica, por que ela se dá com mais força entre as cidades atlânticas?

 Eu não diria que terceira diáspora é uma explicação e sim uma idéia que tenta atualizar o sistema de trocas entre culturas que aconteceram desde sempre. Pra ler o mundo a gente faz recortes e se posiciona. Esta leitura trata da história moderna de povos negros no Ocidente. Claro que as trocas não se dão somente nesse universo, mas foi este mundo que eu quis comentar, sampleando informações produzidas por negros “mas não propriedade exclusiva deles”, como diz Paul Gilroy em um dos posts dedicados a intelectuais de várias partes do atlântico. As cidades concentram 50 % da população da terra, é normal que a produção cultural em lugares com tanto trânsito de pessoas seja mais intensa. Mas o que o circuito de comunicação potencializado pela web traz de mais interessante é exatamente a possibilidade de deslocar centros e periferias, tornando possível escrever um livro em que Salvador é o centro do mundo. Milton Santos ajuda bastante: “o centro do mundo está em todo lugar. O mundo é o que se vê de onde se está”.

Ilustração de valentina garcia a partir de peça de arte popular do Benin.Ilustração de valentina garcia a partir de peça de arte popular do Benin.

Diante da globalização esse tráfego de signos vai além das fronteiras étnicas? Em outras palavras, é preciso identificar-se como negro para fazer parte dessa rede? (Pergunto isso porque da minha leitura do livro fiquei com uma leve impressão que as trocas só se dão entre negros. Como se não existissem brancos contribuindo para esse intercâmbio).

Adoro que o trabalho cause este impacto estético. É incrível que numa cidade tão negra soe estranho que quase só haja pretos em todas as páginas dos livros. É claro, você sabe bem, que não precisa ser negro pra fazer parte desse circuito de informação (senão eu mesma não estaria nele e há tantos não negros envolvidos…), mas o trabalho tem a intenção de colocar os negros em seu lugar, ou seja, em todas as partes, em todos os campos de criação artísticos, comportamentais e ideológicos desta e de outras cidades.

Alguns dos lugares que você cita, por questões políticas e econômicas, se encontram mais ou menos isolados desse câmbio de signos e informações? De que maneira esse tipo de lugar interessa para sua pesquisa que tem trocas e hibridizações como foco?

As desigualdades jamais evitaram a criação e circulação de práticas, conhecimentos e estratégias. Se pensarmos em tudo que os negros inventaram e reelaboraram durante o escravismo, dá pra ter uma noção dessa capacidade de driblar mazelas e moldar contextos culturais. Atualmente a internet, por mais limitada que seja, permite façanhas como a da cubana Yoani Sanchez, que entrevistou Barack Obama e postou em seu blog o cotidiano de Havana com filmes feitos em celular.

Você dividiu o livro em dois e dedica um deles inteiramente ao porto da Bahia. Isso se explica por conta do seu ponto de vista ser daqui, ou o papel de Salvador nessa rede atlântica é mesmo destacado?

Não pretendo insinuar que a produção cultural de Salvador seja mais proeminente se comparada a outras cidades atlânticas. Apenas sou soteropolitana e vivendo aqui tenho acesso ao que se produz em vários campos de criação. Conversando com as pessoas, pesquisando blogs, myspace, livros, documentários, foi possível cartografar esse repertorio estético, usando palavras dos próprios autores que falam de música, moda, cinema, literatura, design. O livro mapeia também os núcleos de ativismo político que tentam reverter o modelo racista que enfrentamos há séculos.

 Goli Guerreiro Goli Guerreiro

O nascimento do samba-reggae ainda é o melhor exemplo local de como essa rede atlântica atua? Que outros exemplos você citaria?

Foi tentando entender como um estilo tão potente foi inventado aqui sob os nossos olhos, que a imagem do mundo atlântico se desenhou. A história desse mundo tem a ver com as diásporas negras. O ocidente moderno se ergueu através delas, primeiro via tráfico negreiro e depois pelas migrações, que redesenharam as cidades e suas ambiências culturais. Londres por exemplo recebeu mais de 500 mil caribenhos em três décadas, hoje faz o maior carnaval da Europa, e é um dos maiores produtores de reggae jamaicano!

Que congruências e incongruências o Porto da Bahia apresenta em relação ao resto do Atlântico Negro?

A pesquisa etnográfica, que sustenta o trabalho, pressupõe que as semelhanças estão postas e busca as diferenças que também saltam aos olhos. Em Uidá, no Benin, onde se encontra a Porta do Não Retorno, local de partida de milhões de africanos para as Américas, acontece anualmente o Festival de Vodum (religião que viajou para o Novo Mundo). Diferentemente do segredo que cerca os ritos sacrificiais no candomblé do Brasil, no Benin, a cerimônia é pública e as TVs locais exibem inclusive o sacrifício de animal de quatro patas. A celebração reúne centenas de sacerdotes e sacerdotisas que se deixam filmar e fotografar por curiosos de todos os lugares do mundo. Há muitas referências que apontam para dessemelhanças. Outro exemplo são as mesclas entre indianos e negros em Port of Spain (capital de Trinidad, no Caribe), ausentes no Brasil. A seleção de posts quer chamar a atenção também para aspectos pouco abordados, como as escritas africanas. Para além da oralidade há diversos alfabetos criados onde hoje estão países que chamamos de Nigéria, Gana, Camarões. Inclusive as capas dos livros trazem os alfabetos africanos nsibidi e adinkra.

Dakar. Foto de Arlete SoaresDakar. Foto de Arlete Soares

Por que você optou pelo formato de blog e não por organizar os livros de uma forma acadêmica tradicional? Quais as implicações deste formado no que diz respeito à pesquisa?

Estou falando de um momento atual, pós-internet, esta opção estética não é um adorno. Selar forma e conteúdo é fundamental para a comunicação. As imagens (e a forma como elas dialogam com os fragmentos) são chave para acessar o livro, além dos comentários, links, marcadores. Foi preciso pensar uma maneira de editar este repertório transcultural da terceira diáspora sem trair a ideia de fluxo, de deslocamento. E, ao mesmo tempo, organizando muitas referências: filmes, romances, blogs, ensaios, entrevistas, notas de campo, canções. O design, elaborado por Valentina Garcia, e a sofisticação editorial da Corrupio foram fundamentais para dar forma ao conteúdo sem amarras que os livros expõem.

 

Entrevista com Goli Guerreiro publicada pelo Jornal A Tarde, Salvador, 12/11/2010.

por Goli Guerreiro
Cara a cara | 11 Maio 2011 | atlântico negro, Bahía, terceira diáspora