«A Europa já não é o centro de gravidade do mundo»

Para todos os que se interessam pela renovação do pensamento crítico fora do Ocidente, o maior acontecimento intelectual da rentrée é incontestavelmente a publicação, nas Edições La Découverte, em Paris, de Critique de la raison nègre do Camaronês Achille Mbembe. Anunciado há já alguns anos, e no seguimento do sucesso que foi Sortir de la grande nuit, este novo ensaio representa o livro mais complexo e ousado de um autor que se afirmou como o pensador africano mais completo da sua geração e com maior projeção internacional, a avaliar pelo número de traduções dos seus textos em línguas estrangeiras e pelo impacto das suas  posições académicas e públicas.

Esta nova obra abre com uma poderosa declaração que se assemelha a um Manifesto. «A Europa já não é o centro de gravidade do mundo», escreve; e «esta desclassificação abre novas possibilidades — mas também arrasta perigos — para o pensamento crítico». São estas possibilidades e perigos que Mbembe explora. A outra tese forte do livro tem a ver com aquilo a que o autor chama «o devir-negro do mundo». Do seu ponto de vista, o «nome Negro já não remete apenas para a condição atribuída às pessoas de origem africana na época do primeiro capitalismo». Hoje em dia, o negro designa toda uma humanidade subalterna de que o capital já não necessita no momento em que se define, mais do que nunca, pelo modelo de uma religião animista, o neoliberalismo. A temática da diferença racial é explorada até às suas últimas consequências.

Neste novo livro, Mbembe permanece fiel ao seu estilo, isto é, um pensador atípico e um escritor de língua francesa de primeiro plano. Força da escrita, fulgor das ideias, profundidade histórica, uma afirmada estética da provocação, originalidade dos argumentos e erudição colossal — Tudo se equilibra para fazer deste ensaio um verdadeiro fogo de artifício das ideias.

De la postcolonie em 2000. Sortir de la grande nuit  dez anos mais tarde. E agora, Critique de la raison nègre. Estamos perante os contornos de uma verdadeira obra. Pode, no momento em que se publica este novo ensaio, desenhar em poucas palavras as grandes linhas do seu projeto intelectual? 

A minha preocupação é contribuir, a partir de África onde vivo e trabalho, para uma crítica política, cultural e estética do tempo que é o nosso, o tempo do mundo. É um tempo marcado, entre outras coisas, por uma crise das relações entre a democracia, a memória e a ideia de um futuro que a humanidade no seu conjunto poderia partilhar. Esta crise é agravada pela confluência do capitalismo com o animismo e a recodificação em curso do conjunto dos campos das nossas existências na e pela linguagem da economia e das neurociências. Esta recodificação volta a pôr em questão a ideia que construímos do sujeito humano e das condições da sua emancipação a partir pelo menos do século XVIII. 

Uma das teses fortes do seu novo ensaio é a de que um dos efeitos do neoliberalismo é o de «universalizar» a condição negra». Que entende por «neoliberalismo»? 

O pensamento contemporâneo esqueceu que, para o seu funcionamento, o capitalismo teve sempre, desde a sua origem, necessidade de suportes raciais. Melhor dizendo, a sua função sempre foi não apenas a de produzir mercadorias, mas também raças e espécies. Por neoliberalismo, entendo a idade no decorrer da qual o capital quer ditar todas as relações de filiação. Ele procura multiplicar-se numa série infinita de dívidas estruturalmente insolventes. Deixa de haver distância entre o facto e a ficção. Capitalismo e animismo não são senão uma e a mesma coisa. 

Sendo assim, os riscos sistémicos aos quais apenas os escravos negros foram expostos na altura do primeiro capitalismo constituem doravante se não a norma, pelo menos a situação de todas as humanidades subalternas. Há, pois, uma universalização tendencial da condição negra. Esta vai a par com o aparecimento de práticas imperialistas inéditas, uma re-balcanização do mundo e a intensificação das práticas de delimitação de zonas. Estas práticas constituem, no fundo, uma forma de produção de novas subespécies humanas votadas ao abandono, à indiferença, quando não à destruição. 

O seu ensaio abre com uma declaração retumbante que é quase um Manifesto. Afirma que a Europa já não é o centro de gravidade do mundo. No entanto, não deixa de recorrer aos seus arquivos. Porquê? 

Somos obrigados a confrontar este arquivo. Ele contém uma parte de nós próprios e, por isso, também é nosso. Quando se trata dos mundos euro-americanos, não podemos dar-nos ao luxo da indiferença ou permitir-nos o da ignorância. A ignorância e a indiferença são privilégios dos poderosos. 

Porquê esta inflexão pelo Ocidente quando, na sua opinião, a sua hegemonia está totalmente destruída? 

Não se trata de um desvio. Trata-se de habitar esta tradição uma vez que, de qualquer forma, ela não nos é estranha e, nela, nós não somos estrangeiros. Somos parte essencial no processo da sua constituição. Seria, por isso, uma perda se nos separássemos daquilo que ajudamos a fazer existir. Penso nos Afro-americanos, por exemplo, ou no Afro-Europeus. Eles são, de pleno direito, Ocidentais. 

No que respeita aos Africanos, o desafio consiste em habitar vários mundos e formas de inteligibilidade ao mesmo tempo, não num gesto de distanciamento gratuito, mas de vaivém, que autoriza a articulação de um pensamento da travessia, da circulação. Esta espécie de pensamento comporta riscos enormes. Mas estes riscos seriam ainda mais graves se nos enclasurássemos no culto da diferença. 

O que reprova no pensamento europeu? 

Há quem lhe reprove o seu solipsismo, o seu apego à ficção segundo a qual o Outro é o nosso reverso. Ou ainda a sua incapacidade para reconhecer que há cronologias plurais do mundo que nós habitamos e que a tarefa do pensamento é a de atravessar todos esses enlaçamentos. Neste gesto que implica circulação, tradução, conflito e também malentendidos, há questões que se dissolvem por si próprias e esta dissolução permite que surjam, com uma relativa clareza, exigências comuns; exigências de uma possível universalidade. E esta possibilidade de circulação e de encontro de inteligibilidades diferentes que o pensamento-mundo requer. 

Existe um pensamento europeu? 

Não há «um» pensamento europeu. Existem, em contrapartida, relações de força no seio de uma tradição que, aliás, não tem deixado de se transformar. E no esforço em curso, nomeadamente ao Sul, para desenvolver uma reflexão verdadeiramente à dimensão do mundo, o nosso trabalho consiste em jogar com estas relações de força e em refletir sobre estas fricções internas, não para cavar o fosso entre a África e a Europa ou para «provincializar» esta última, mas para alargar vias que permitam resistir às forças do racismo que são, no fundo, forças de violência, de fechamento e de exclusão. 

Devemos apresentá-lo como um teórico do pós-colonialismo? 

É preciso não me ter lido para me apresentar como um teórico do pós-colonialismo. 

E, no entanto, em França, incluem-no nesta corrente. Aliás, é o que acontece também em África. 

Aqueles que o fazem raramente sabem do que falam. Muitos esgrimistas dos estudos pós-coloniais em África utilizam argumentos ideológicos no lugar de uma análise crítica rigorosa e disciplinada das obras a que pretendem opor-se. Efetivamente, não há melhor crítico da corrente pós -colonial que a própria corrente pós-colonial. Em França, são muitos os que gostavam que fôssemos mudos, pessoas que não falassem e sobretudo entre elas. Podiam, assim, construir o nosso discurso em vez decontinuar a qualificar-nos. O pensamento pós-colonial veio interromper este poder exclusivo de qualificação. E é por isso que ele incomoda. 

Até agora, tinha trabalhado com sequências históricas relativamente curtas. Com Critique de la raison nègre, torna-se um pouco historiador. Como explica esta inflexão? 

A própria natureza do assunto exigia um regresso a um tempo longo. O Negro é uma invenção daquilo a que, no livro, eu chamo «o primeiro capitalismo». O tempo do primeiro capitalismo — pelo menos tal como eu o concebo é dominado pelo Atlântico. A época moderna propriamente dita começa com a expansão europeia, a dispersão dos povos e a formação de grandes diásporas, um movimento acelerado de mercadorias, de religiões e de culturas. O trabalho do escravo negro desempenha, neste processo, um papel relevante. Era, assim, necessário determo-nos neste tempo longo sem o qual não se percebe nada da realidade contemporânea. 

O «Negro» não passa de uma invenção do capitalismo atlântico? Que lugar atribui aos mundos do oceano índico e árabes transaarianos na sua construção? 

A escravatura atlântica é o único complexo servil multi-hemisférico que transforma pessoas de origem africana em mercadorias. É, por esse facto, a única a ter inventado o Negro, isto é, uma espécie de homem coisa, de homem metal, de homem moeda, de homem plástico. É nas Américas e nas Caraíbas que os seres humanos são transformados, pela primeira vez na história universal, em criptas vivas do capital. O Negro é o protótipo deste processo. 

Atribui um lugar bastante central à história diaspórica e, nomeadamente, afro-americana. Insiste em particular na ambiguidade das relações entre os afro-americanos e a África. 

A história das pessoas de origem africana, nos Estados Unidos em particular, é uma história que sempre me fascinou. O africano americano é, em larga medida, o fantasma da modernidade. A história dos Negros nos Estados Unidos devia ser ensinada em todas as escolas, em particular, em África . 

Consagra longos desenvolvimentos ao conceito de «raça» e de «racismo». Na sua opinião, em que é que se reconhece o racismo? 

Além de consagrar uma estruturação desigual das relações sociais, o racismo é uma figura da nevrose fóbica, obsessiva e até histérica. O racista é aquele que se tranquiliza, odiando, constituindo o Outro não como seu semelhante, mas como um objeto ameçador do qual era necessário proteger-se, desfazer-se ou que, pura e simplesmente, seria necessário destruir, no caso de não se conseguir dominá-lo totalmente. Em larga medida, o racista é um homem doente, carente de si próprio, e que desfalece. 

O capítulo mais poético, mas também o mais desconcertante do livro intitula-se « Requiem pour l’esclave ». 

Este capítulo constitui o subsolo do livro. Aqui, procura-se dizer o modo como, em África e nas coisas negras, muitos viram duas forças ofuscantes: ou uma argila ligeiramente tocada pela estatuária ou um animal assombroso, e sempre uma figura hierática, metamórfica, capaz de explodir em cascata. Procura-se igualmente mostrar como o escravo negro foi, no fundo, um sujeito plástico, ou seja, um sujeito que sofreu um processo de transformação por destruição. 

A sua escrita é uma das mais belas por parte de um pensador africano contemporâneo. A que atribui este dom? 

Para dizer a África de uma forma que não seja repetição pura e simples, eu sou obrigado a recorrer a uma escrita figural, uma escrita que oscila entre o vertiginoso, a dissolução e a dispersão. E uma escrita feita de aneis entrecruzados e cujas arestas e linhas se juntam no ponto de fuga. 

Nesta altura, qual é o objeto das suas investigações e qual será o tema do seu próximo livro? 

As minhas investigações focalizam-se no que designei por «o afropolitanismo».

 

Entrevista conduzida por Arlette Fargeau publicada no Le Messager Out 3, 2013

 

Translation:  Maria José Cartaxo

por Achille Mbembe
Cara a cara | 21 Outubro 2013 | capitalismo, Europa, negro, razão negra