"Será que a imagem colonial ainda mantém uma ligação ao real? " - Fantasmas do Império

Ariel de Bigault encabeça um extenso projecto de valorização e divulgação das culturas africanas no contexto lusófono que nunca foi devidamente conhecido nem reconhecido. Quer em recolhas que precipitaram triunfalmente a música cabo-verdiana em França e consolidaram a história sónica de Angola, quer em sucessivas, embora pouco divulgadas e ignoradas, reportagens e documentários à volta da luta feminista em Portugal (Femmes au lute au Portugal, 1977), da cultura negra no Brasil (Éclats Noirs du Samba, 1987), música popular em Angola (Canta Angola, 2000), ou da experiência criativa dos afrodescendentes em Lisboa (Afro Lisboa, 1996; e Margem Atlântica, 2006). O recente documentário Fantasmas do Império, inserido no festival Indie Lisboa, entra num registo diferente do habitual dos trabalhos anteriores. Como obra de fôlego elaborada ao longo de três anos, transferindo o foco da vivência e música, propõe-se a reflectir, segundo a sinopse, sobre “o imaginário colonial no cinema português.” 

Com um método errático, mas de modo despretensioso, o documentário mergulhou no maior arquivo do cinema colonial português (ANIM – Arquivo Nacional da Imagem em Movimento) para confrontar os seus filmes mais destacados com as respostas espontâneas de sete cineastas portugueses – Fernando Matos Silva, João Botelho, Margarida Cardoso, Hugo Vieira da Silva, Ivo M. Ferreira, Faria de Almeida, Joaquim Lopes Barbosa (para além da investigadora Maria do Carmo Piçarra e do director da Cinemateca Portuguesa, José Manuel Costa) –, contendo algumas conversas moderadas por dois actores africanos, Ângelo Torres e Orlando Sérgio, e intercalando esta estrutura confusa com cenas dos mais destacados filmes portugueses da era pós-colonial. Trata-se de um fogo-cruzado de visões e vozes em torno da cinematografia colonial, que não recai sobre a contravisualidade, mas antes interpela a retórica da propaganda oficial e as tendências das representações. Ao contrário da pretensão convencional do modo documental — em tornar visível o invisível, este filme aborda de que modo um cinema hegemónico condicionou e codificou as condições de visibilidade do império. A finalidade não é, assim, a de preencher um vazio, mas de problematizar aquele que se tornou um filão crescente.

Uma das questões que este documentário desperta de imediato é o problema de como situá-lo. Entre a verdadeira pulsão da criação contemporânea por imagens do período colonial. O título e a sinopse por si só, convocam a terminologia e topologia dominante do pensamento crítico e produção visual da última década na alusão ao espectro, ao arquivo e ao colonialismo, a trindade que vêm saturando o discurso cultural, invocada à exaustão por artistas, curadores ou investigadores. Já não se encontram na periferia da criação contemporânea, mas no centro – basta pensar em alguns dos filmes citados, Tabu (2012) de Miguel Gomes, Posto-Avançado do Progresso (2016) de Hugo Vieira da Silva, Yvonne Kane (2014) de Margarida Cardoso, As Cartas da Guerra (2016) de Ivo M. Ferreira. Com efeito, o panorama português registou nos últimos anos o aumento exponencial deste tipo de produções para televisão e cinema. 

Com abertura salutar, o formato de Ariel de Bigault foge a este modelo padrão – a proverbial reportagem à volta de imagens do passado tipicamente adquiridas, detidas, exibidas, destinadas, comentadas, ou enquadradas pelos protagonistas ou narradores brancos das histórias, independentemente da posição que assumem – recusando assim a homogeneidade de opiniões ou a centralização à volta de um tipo de sujeito. As interjeições surgem no filme, a certo ponto, quando Orlando Sérgio questiona a existência crónica de africanos negros “fora do plano”, sem protagonismo, ou quando Ângelo Torres nota o seu papel constante de “figurantes”. 

Colocando em discurso directo diversas personalidades – com origens, gerações e papéis distintos –, Bigault fornece um testemunho histórico e abre um conjunto variado de interpelações ao cinema, mantendo um registo a quente, não dando a entender que o é ensaiado – o que, frequentemente, desemboca em ideias feitas ou trivialidades genéricas, em binarismos fáceis e um vocabulário descuidado, mas fixa assim um tom informal e corrente. Trata-se, no essencial, de uma recolha visual e oral que, encadeada numa montagem fluente mas sem arco narrativo, critério fixo nem direcção clara, surge como trabalho de amostra, espécie de índice visual, longe do discurso especialista ou da investigação académico. O filme não inclui os habituais veredictos de estudiosos ou peritos, nem a estes se destina. É a um grande público pouco conhecedor que se destina, e por isso não procura nem distinguir-se pela novidade dos conteúdos, nem pela inovação na forma (as anotações sumárias de atrocidades coloniais em ecrã partilhado com cenas avulsas de um filme, ou a música ligeira a acompanhar certas imagens, são indicação disso mesmo). Porém, na condição destas premissas, o documentário é imprescindível enquanto meio de divulgação mais do que como objecto fílmico. Um dos aspectos mais curiosos do filme é, aliás, o próprio lugar fantasmático no qual a própria realizadora se colocou, espiando indiscretamente a troca de impressões entre os convidados, sem assumir uma intervenção sobre o material que escolheu, tentando apagar as suas próprias pegadas da montagem, instaurando uma aparente aleatoriedade que gera curiosas dissonâncias – um gesto de continuidade percorre o filme, confundindo a divisão entre passado e presente, sublinhando, por um lado, as contradições no cinema colonial e, por outro, a ambivalência do cinema pós-colonial, pois ao recusar comentá-lo, sinaliza que não possui garantia automática de capacidade crítica, não está imune a perpetuar os códigos ou a nostalgia que procura contrariar. A marca autoral que se afirma pela invisibilidade, ao retirar-se tanto quanto possível do grande ecrã – recorrendo sobretudo às imagens de arquivo e à opinião dos cineastas, – surge também como estratégia, na medida em que contrapõe filmes de dois tempos que partilham uma certa imposição do narrador, entre o cinema colonial no qual assume uma posição autoritária, com uma voz que tudo explica e controla – e o filme ressalta justamente a sua insistência doentia em repetir, como um mantra, os mesmos slogans de ocupação secular, pacífica e gloriosa – e um cinema pós-colonial no qual a ser omnipresente mas enquanto figura assombrada, incapaz de articular e assimilar a história a que se refere, finalmente incapaz de se reconciliar com ela. 

Em 1960, o académico norte-americano James Duffy escreveu um pequeno ensaio, “A Dupla Realidade da África Portuguesa”, afirmando que o que mais definia e distinguia estes territórios coloniais era a contradição de fundo entre a realidade e retórica, verdade e ficção, prática e lei, substância e ideia. “O problema com a África Portuguesa é que o mundo exterior nunca a conseguiu ver claramente” rematou, pondo a tónica não numa suposta invisibilidade – recusando a ideia, tão invocada pelos jornalistas, historiadores ou críticos, de que não havia imagens, como álibi para evitar pensar profundamente sobre o problema da visibilidade – mas na coexistência de regimes de representação diametralmente opostos, cujo conflito insanável bloqueou a possibilidade da visão, entre a imagem de um território consumido pela violência do trabalho forçado, e a imagem de um território isento da violência dada à harmonia racial. A poucos meses de eclodir a guerra colonial, Duffy avisou: “Para manter o seu domínio sobre Angola, o governo português tem de substituir a primeira imagem da África Portuguesa – a de um campo de escravos – com a segunda – a de um paraíso multirracial.” 

Na verdade, podia traçar-se a história da descolonização como um combate pela afirmação de uma imagem única, como monumental esforço por impor um imaginário, com cenários interditos ou dispositivos cosméticos, para o problema estrutural – não por acaso, Catembe (1972) de Faria de Almeida, um dos cineastas entrevistados aqui, havia de marcar um recorde da história do cinema como o filme com mais cortes de censura, e não por acaso, foi também o império colonial português quem comandou a maior campanha de propaganda de imagens de atrocidade desde a Segunda Guerra Mundial, expondo a opinião pública mundial às atrozes atrocidades de Angola (1961).

Algures entre a estonteante alternância do excesso da violência e a sua total ausência em estereótipos, o documentário de Ariel de Bigault tem como principal virtude incitar a navegar esse golfo abismal entre as imagens, ou melhor, a tentar começar a ver, reunindo e cruzando o lastro cinematográfico que, grosso modo, permanece indisponível e desconhecido. Começar a ver significa deixar de lado os chavões que ainda organizam o discurso, remetendo a discussão por inteiro para lugares comuns como o silêncio e ausência, e dar conta dos ecrãs retóricos, cortinas de fumo, figuras de estilo, mistificações narrativas, mas também interditos, subterfúgios e subversões insidiosas que formam uma certa condição de visibilidade. O triunfo do filme consiste, por isso, em mostrar, mas sobretudo em interromper e interpelar os filmes que mostra, com comentários, observações e justaposições, demonstrando que não há neles rigorosamente nada de natural. Tomando em consideração o modo sistemático como se tem vindo a demonstrar quão artificiais, postiças, desequilibradas, encenadas e ocultadoras são as imagens dominantes que foram produzidas em contextos imperiais, Benjamin Stora perguntou recentemente: será que a imagem colonial ainda mantém uma ligação ao real? Ariel de Bigault levou esta inquietação a sério no documentário, dando-lhe uma resposta enfática na negativa, concentrando-se no imaginário e ficção do cinema colonial como se uma história de fantasmas. “Um código não pode ser destruído”, observou Roland Barthes, “apenas podemos “jogá-lo.”

 

por Afonso Dias Ramos
Afroscreen | 1 Dezembro 2020 | ANIM, Ariel de Bigault, arquivo, cinema colonial, Fantasmas do Império, visualidade