Será Django Libertado o filme mais negro de sempre?

Estará a América realmente pronta para confrontar-se com a sua história da escravatura? Por cada Rambo, um Django?

Foi um dia de Natal diferente, o de 2012: Django Libertado, de Quentin Tarantino, estreava-se e a América confrontava-se com a sua história negra e o legado da escravatura de uma forma violenta e vingativa como nunca se vira num filme mainstream de Hollywood.

Ainda os assentos do cinema estavam mornos da estreia e já o realizador Spike Lee vinha dizer que não viu, nem ia ver: “A escravatura não foi um spaghetti western do Sergio Leone. Foi um Holocausto. Os meus antepassados eram escravos raptados de África”, escreveu no twitter. Numa entrevista explicou: “Tudo o que vou dizer é que ir ver esse filme é uma falta de respeito para com os meus antepassados.” Questiúnculas entre Lee e Tarantino vêm já do tempo de Jackie Brown (1997), por causa da n-word, nigger. Mas desta vez Tarantino foi mais longe e pôs meio-mundo a discutir raça, racismo e escravatura, o legado da guerra civil e a violência que está na génese da formação dos Estados Unidos. Isto por oposição a Lincoln de Steven Spielberg que estreou também no final de 2012, e que passa “ao de leve” sobre o assunto, quando Lincoln foi, afinal, o “pai” do fim da escravatura nos EUA.

“Na vida real, a maior parte da América branca não está de todo interessada nem em vingança nem em reconciliação em relação à escravatura. O que é desejado é uma história com final feliz à Lincoln, em que a escravatura termina e todos vivemos felizes para sempre – sem nunca prestar qualquer atenção à forma como o racismo sistémico tem afectado afro-americanos, não só depois do fim da escravatura, mas ainda hoje”, diz-nos Lois Leveen, autora de The Secrets of Mary Bowser, romance sobre a história de uma escrava libertada que se tornou espia da União, durante a Guerra Civil americana (o livro sairá em português, no Brasil). Leveen lançou a discussão a propósito de Django Libertado num fórum académico online H-Net e pôs especialistas em Estudos Africanos nos EUA a debater racismo e representações da escravatura no cinema.

Por isso talvez se discuta que, desde Nascimento de uma Nação, de D. W. Griffith (1915), nunca um filme trouxera à baila a questão da escravatura nestes moldes. Repare-se que o filme de Griffith foi amplamente criticado na época por mostrar negros representados por actores brancos com caras pintadas, considerado uma apologia da escravatura: os escravos são dóceis, submissos e felizes trabalhadores nos campos de algodão, e os escravos livres são tontos, violentos e sexualizados. “Foi o primeiro filme a ser mostrado na Casa Branca e abriu caminho à ressurgência da Ku Klux Klan no século XX. Os negros ‘repreensíveis’ de Nascimento de uma Nação anunciam um século de uma América branca a trabalhar – e, regularmente, a remoer – a sua própria ansiedade sobre a masculinidade negra através de filmes sobre a escravatura”, escreveu Leveen no Wall Street Journal.


E tudo o vento levou

O programa semanal de debate na National Public Radio (NPR), Barbershop de 28 de Dezembro, resume bem a polémica acesa que está a alastrar na América sobre história, escravatura, legitimidade, reconciliação e vingança.

Diz Jimi Izrael, jornalista: “Finalmente, depois de décadas de filmes de polícias-brancos-versus-o-gueto vemos essa ideia virada do avesso. Este filme é por cada Steven Seagal, Dirty Harry, Charles Bronson, ‘tás a ver?, o filme do homem-branco-versus-toda-a-comunidade-negra. Finalmente temos alguém que está disposto a sacudir os ombros, mostrar alguma dignidade e conquistar o que é seu de direito – isto é, a sua liberdade e a sua mulher.” Izrael acrescenta ainda que “este filme é o outro lado de Nascimento de uma Nação”.

Por cada Rambo, um Django? Talvez Django Libertado seja, então, “a outra face” de Nascimento de uma Nação. Mas quer isto dizer que a América teve de esperar quase um século para ver um filme mainstream sobre a escravatura com um happy ending à Hollywood? Sim, um final feliz (apesar de todas as discussões sobre amargura e vingança) em que, em vez de um Clark Gable e uma Vivien Leigh, há um casal negro (Jamie Foxx e Kerry Washington), apaixonado, cavalgando em direcção a um qualquer “pôr-do-sol” redentor, qual Romeu e Julieta finalmente juntos, enquanto uma outra Tara ardia na distância de e tudo o vento levou?

Não estamos a falar de filmes de realizadores indie, ou até do Blaxploitation, movimento de cinema negro, urbano, dos anos 70, de sexualidade explícita e violência bárbara, a que Tarantino fez homenagem em Jackie Brown. Estamos a falar de mainstream Hollywood, que responde a Burn (1969), filme com Marlon Brando sobre um mercenário britânico que provoca uma revolta de escravos numa ilha imaginária no Caribe; que responde a Roots (1977), a popular série sobre a escravatura na televisão americana; que responde a Amistad (1997, novamente, Spielberg a instigar paz e reconciliação?).

Estará a América pronta para confrontar-se com a brutalidade da escravatura? “Esta é que é a grande questão”, diz Lois Leveen. “De certa maneira, foi a mini-série Roots [Raízes] que pôs os americanos a pensar sobre a escravatura. Décadas depois, muitos afro-americanos continuam a falar do quão importante foi a série para eles, mostrando a humanidade e a dignidade de escravos, mas também os horrores da escravatura. Para americanos brancos, forçou-os a pensar sobre uma história que pode ser facilmente esquecida.”

Talvez por isso, Jimi Izrael continue: “Posso vir a ter problemas por dizer isto, mas [Django] é capaz de ser o filme mais negro de sempre a estrear nos cinemas americanos. This is everything that blackness is about [É tudo o que define a negritude, a identidade negra]. E isto é o medo branco da emancipação do negro, pela arma ou de outra maneira. Em última análise, é isso que define a identidade negra. Os negros definem a sua identidade com todo o tipo de nuances. Mas, no fim do dia, é mesmo sobre como os brancos se sentem em relação a nós, sabes?, se eles nos temem ou não. É esse o grau a partir do qual medimos a identidade negra.” Se Roots era a “história da opressão”, Django é a história da “emancipação negra”, diz.


Vingança ou reconciliação

A historiadora americana Natalie Zemon Davies, autora de Slaves on Screen, professora da Universidade de Toronto, falou connosco apesar de ainda não ter visto Django. “O meu neto já foi ver e disse-me: não creio que seja o teu estilo. Além da violência e do sangue, ele [Tarantino] usa inúmeras vezes a n-word”, diz Davies. Mas isso não a preocupa: “Havia, na época da escravatura, muitas maneiras de os negros se dirigirem uns aos outros; havia várias palavras para definir diferentes tipos de cor de pele, diferentes tipos de negros, consoante a sua posição social ou a sua posição dentro do sistema esclavagista”, explica.

Não é igualmente a história de vingança que a preocupa. “Se me disser que o filme apresenta vários exemplos de crueldade e violência sobre escravos; ou de escravos sobre capatazes ou donos de plantações – não me espanta. Havia, dentro do sistema, diferentes estruturas de poder, havia esclavagistas ‘benignos’ e outros cruéis; da mesma maneira como havia escravos submissos e rebeldes (maroons, escravos que fugiam) violentos, que pegavam fogo às plantações, que raptavam as brancas.”

Ou seja, a violência faz parte da história e os extremos também. “Não se pode ler apenas a história da escravatura em branco e negro, europeu vs. africano. Era muito mais complexa, havia negros exploradores que raptavam escravos que exerciam torturas e castigos, trabalhavam directamente para o branco.” O importante, acrescenta, é conhecer a história com todas as suas contradições.

Lois Leveen corrobora: “Os historiadores estão hoje mais preocupados em compreender a experiência dos escravos, inclusive compreender o que escravos e homens livres negros fizeram para desafiar a escravatura.” O problema, diz Leveen, é que na população em geral “ainda permanece a ideia de que não se sabe muito sobre a escravatura (sobretudo num país como os EUA que lida muito mal com a sua história que não é ‘positiva’), especialmente entre os brancos do Sul, que tentam abafar o quão terrível foi a escravatura”.

Fantasias de vingança

O que realmente inquieta tanto Natalie Zemon Davies como Lois Leveen é a questão da “fantasia de vingança”. “Ela é legítima e existe na consciência nacional, tal como existe nos judeus em relação ao Holocausto”, explica Davies. Mas essa “fantasia” faz com que “o acontecimento seja memorializado, constantemente revivido” e isso não nos “fará confrontar com a história como ela é, com todas as suas contradições”. A professora não gosta especialmente da palavra “reconciliação”: “Aqui o que me importa é a capacidade de vivermos juntos, encontrar – não ‘a’ verdade – mas uma verdade que faça justiça à história, compreendendo o passado, não de uma forma única ou canónica, mas incorporando precisamente todas as vozes que o constituem.”

O apresentador da PBS, Tavis Smiley disse recentemente que também não vai ver Django. “Não percebo por que razão Hollywood não encara de forma séria fazer um filme autêntico sobre o holocausto da escravatura e depois dá luz verde para se fazer um embuste sobre a escravatura, como se esse embuste tornasse a escravatura mais fácil de engolir. O sofrimento dos negros não é redutível a uma história de vingança e reparação. A tradição negra ensinou a nação o que significa o amor. Dito de outro modo: os negros aprenderam a amar a América apesar de e não por causa de.”

É aqui que as palavras de Scott Foundas no Village Voice fazem ressoar a questão levantada pelo debate na NPR: “[Django é] um acto de provocação e de reparação que vai ser mais difícil de engolir para algum do público que aclamou os vingadores judeus de Sacanas sem Lei.” Mas ninguém se lembra de Sacanas sem Lei provocar tanta celeuma. Seria porque, como diz Michele Martin, a moderadora do programa da NPR, “já havia A Lista de Schindler? E porque era uma espécie de peça definitiva em que as pessoas sentiram que a história estava a ser honrada e preservada, por isso podíamos dar-nos ao luxo de fazer uma versão mais exagerada, menos ortodoxa?”

Jelani Cobb, professor de estudos africanos em Rutgers, disserta na New Yorker sobre a diferença entre Django e Sacanas. Aqui, Tarantino brinca “à vontade com a história, mas há riscos implícitos em fazê-lo num filme sobre a escravatura que não são tão significativos quando se faz um filme sobre a História do Ocidente”. É que, continua, “a história do Ocidente está assente de uma maneira que a história do Sul da América e da escravatura não estão.”

A história da escravatura ainda não está escrita. O que surpreende Jelani Cobb é que 150 anos após a Emancipação ainda choque pensar que o “pecado de Django Libertado não é o desejo de criar uma história alternativa; mas a ideia de que um homem escravizado capaz de matar para proteger os seus possa [de facto] ler-se enquanto tal”.

Artigo originalmente publicado no Ipsilon, jornal Público 11/01/2013

por Raquel Ribeiro
Afroscreen | 15 Janeiro 2013 | América, escravatura, EUA, movimento negro, Quentin Tarentino