Passagem de imagens, imagens da passagem

Ao lado de expressões já consagradas, como expanded cinema, migração das imagens, film exposé e mesmo terceiro cinema, a noção de “passagens da imagem” foi usada, num determinado momento, para descrever o movimento da imagem cinematográfica para fora da sala, constitutiva e definidora do dispositivo clássico. A partir dos anos 1970, o cinema não só conquistou espaços (museus, galerias, centros de arte), como adquiriu novas formas. Uma das importantes exposições que iluminam esse processo intitulava-se justamente Passages de l’image. Realizada no Centro Pompidou em 1990, sob a curadoria de Raymond Bellour, Catherine David et Christine van Assche, tinha como foco, como descreve o texto do catálogo, “passagens de natureza diversa, ambíguas, não raro difíceis de situar e nomear”. Valendo-se da dupla-passagem geradora da imagem fotográfica e cinematográfica (a impressão e, em seguida, a projeção), as múltiplas passagens consagradas pela exposição manifestavam

uma dupla tensão que se modula diferentemente de acordo com cada obra: de um lado entre imobilidade e movimento; de outro, entre a representação analógica e o que a interrompe, a destrói, a corrompe. (…) Como se fosse nesse espaço de comutação, nesse entrelaçamento de passagens, que a imagem encontrasse hoje seu lugar, sua mais inteira e nova qualidade de enigma.1

revolução revolução Por outro lado, pode-se entender “passagem de imagens” como gesto fundamental de cineastas e artistas “passadores” e “tomadores” de imagens, gesto este que extrapola os limites da noção de autoria, de paternidade e de propriedade, sem no entanto abandonar o fazer cinema. Chris Marker é sem dúvida o mais notório praticante desse tipo de passagem de imagens, mas de maneira alguma é o único. No contexto das lutas pela independência de Moçambique e da criação de um cinema nacional moçambicano, nos primeiros anos pós-1975, bobinas e fitas de VHS circulavam de uma ilha de edição para outra, como acontecia aliás em estações de montagem de todo o planeta nas décadas de 1960 e 1970, em que a necessidade de que certas imagens fossem vistas superava as regras do possuí-la que viriam a se estabelecer.

À luz desses dois tipos de passagem que acabam de ser nomeados, as análises da instalação For Mozambique (2008), da artista contemporânea Ângela Ferreira, e do filme 25, realizado em 1975-1976 por José Celso Martinez Corrêa e Celso Luccas, têm como objetivo a interrogação a respeito do que seria uma “imagem da passagem”, ou uma imagem que mostrasse o momento exato da virada – no caso, o momento da transformação de Moçambique, de colônia portuguesa para país livre e socialista.

transportadortransportador

Passagens da imagem

Travessia de mídias e de épocas, as instalações contemporâneas contendo imagens de arquivo operam uma dupla passagem. Filmes moçambicanos rodados no período próximo da independência têm interessado particularmente uma série de artistas contemporâneos, como Raquel Schefer, que se apropria de arquivos familiares em super 8 em seus vídeos Avó (Muidumbe), de 2009, e Nshajo (O Jogo), de 2010; Catarina Simão, com sua complexa instalação Off Screen Project, apresentada na Manifesta 8 de Múrcia, Espanha, a partir dos arquivos do Instituto Nacional do Cinema de Moçambique. É também o caso de For Mozambique (2008), de Ângela Ferreira, nascida em 1958 em Maputo e estabelecida atualmente em Lisboa. A instalação reúne três tipos de arquivos por assim dizer cinematográficos, agenciados por uma estrutura escultural de madeira: imagens em super 8, imagens gravadas pela televisão e imagens de um projeto de uma série de filmes. Assim, uma torre inclinada a 23º e 27 minutos (o eixo de inclinação da Terra) sustenta duas telas opostas, uma de costas para a outra. Sobre a tela que forma um “ângulo agudo” com o chão, projeta-se em looping o filme Makwayela (1977), realizado pelos franceses Jean Rouch e Jacques D’Arthuys. Na outra tela vê-se Bob Dylan, no penúltimo show da turnê Hard Rain, em 23 de maio de 1976, em Fort Collins, no Colorado, em imagens gravadas e difundidas pela NBC. No chão, um conjunto de quadros dispostos em ziguezague contém ampliações das páginas do projeto Naissance (de l’image) d’une Nation, uma série de cinco filmes que Godard pretendia gravar em Moçambique – em 1979, os Cahiers du Cinéma reproduziram o projeto em seu número 300.

fogueira na alvoradafogueira na alvorada

Na instalação de Ângela Ferreira, a montagem desses arquivos tem lugar numa estrutura escultural de madeira inspirada nas vanguardas soviéticas: a inclinação é a mesma do célebre projeto de torre de Vladmir Tatlin, o Monumento à III Internacional (1919-1920), nunca realizado em escala real; a disposição das telas e dos quadros cita os écrãs-tribunas-quiosques de Klucis. Por conseguinte, estabelece-se uma relação de parentesco entre a euforia criativa contemporânea à Revolução Russa  e a euforia ligada à independência moçambicana, sendo ambos momentos históricos que aliavam arte de vanguarda e engajamento político. Na montagem de Ângela Ferreira, as imagens ganham novos sentidos e se tornam visíveis (depois de algumas décadas obscurecidas).

Passagem de imagens

monteiromonteiroMinha hipótese é de que as passagens da imagem operadas por Ângela Ferreira, Raquel Schefer e Catarina Simão a partir dos arquivos moçambicanos filiam-se a passagens anteriores, ocorridas no imediato pré e pós 25 de junho de 1975, no processo de busca de uma visibilidade para a independência e para o fim do período colonial. Assim, se em For Mozambique Ângela Ferreira apropria-se de Makwayela, de Rouch e D’Arthuys, já em 1977 o próprio filme Makwayela baseava-se em um canto-dança tradicional, que contava o cotidiano dos homens que iam trabalhar nas minas da África do Sul e depois foi transformado em hino socialista. Por outro lado, a mesma cena de canto-dança em frente à uma fábrica de vidros aparece em um dos episódios do cinejornal Kuxa Kanema.

O filme 25 é notável por sua impressionante coleção de empréstimos. Seus realizadores, José Celso e Celso Luccas, respectivamente diretor e membro do grupo brasileiro de teatro Oficina, estavam exilados em Portugal desde o fechamento do Oficina, durante a ditadura militar no Brasil. Sem qualquer experiência no cinema, eles filmam em 1975 O Parto, em Lisboa, composto de um grande volume de imagens provenientes dos arquivos da televisão portuguesa. Uma montagem em paralelo combina cenas da Revolução dos Cravos com imagens de um parto. 25, produzido pelo Instituto Nacional do Cinema, que acabara de ser criado por Samora Machel, é portanto a segunda incursão cinematográfica do duo. Assim, com Zé Celso no som e Celso Luccas na câmera, registra-se o momento histórico da passagem de Moçambique-colônia para Moçambique-independente – a seqüência da troca de bandeiras e da primeira aurora em um país livre está entre as mais emocionantes do filme.

Além do material filmado em 16mm por Zé Celso e Celso Luccas, 25 combina imagens de cinejornais, de arquivos da televisão portuguesa e de filmes de ficção. O melodrama épico Chaimite (1953), de Jorge Brum do Canto, dedicado ao Exército Português (“cuja colaboração foi fundamental para a realização deste filme”, de acordo com os créditos de abertura), está entre os empréstimos mais explícitos. Trata-se de uma reconstituição da batalha de Chaimite, em 1895, na qual Gungunhana, último imperador no território correspondente ao atual Moçambique, foi capturado pelo português Mouzinho de Albuquerque, por isso conhecido como “O Pacificador”. Mas, se Chaimite apresenta a vitória portuguesa como o fim da resistência ao projeto colonial (ainda que a cena de prisão mostre um Gungunhana irreverente, que não se dobra diante da autoridade de Mouzinho de Albuquerque), em 25 as mesmas imagens funcionam como prova de que os moçambicanos nunca, em mais de 400 anos, aceitaram o colonialismo.

Outro empréstimo identificável de 25 é Monangambé, música de Ruy Mingas sobre um poema de Antônio Jacinto, que se tornou um hino anti-colonial. Monangambé – termo que significa “contratado” e designava os trabalhadores negros que cuidavam das plantações dos senhores brancos – é ainda o título do primeiro filme de Sarah Maldoror, de 1968. Um dos versos do poema de Jacinto foi reproduzido no título do filme que Joaquim Lopes Barbosa rodou em Moçambique em 1972, Deixem-me ao menos subir às palmeiras, que também usa a música de Mingas.

prisão chaimiteprisão chaimite

Assim, se não bastassem as influências estéticas de Vertov, Eisenstein e Glauber Rocha, as músicas engajadas brasileiras da trilha sonora (Jorge Ben, João Gilberto), os aplaudidos líderes de diferentes países africanos presentes no filme, a constelação de referências introduzidas por Monangambé inscreve definitivamente 25 em um movimento anti-colonial internacional – e na comunidade internacional2 de cineastas que contribuíam para a construção de um novo cinema, para um novo país.

Antes da independência, equipes e material vindos da União Soviética, de Cuba, da Suécia, do Canadá e da Iugoslávia foram fundamentais para registrar as imagens da luta de liberação. De acordo com Fernando Arenas, tanto na independência moçambicana como na de Angola,

o cinema teve um papel fundamental, pois conferia uma representação para as lutas de liberação e galvanizava o apoio aos movimentos políticos triunfantes que chegavam ao poder depois da independência para construir as nações pós-coloniais (…).3

No texto que Zé Celso e Celso Lucas escrevem juntos, em forma de diálogo, na volta ao Brasil, eles dizem que a documentação filmada durante a guerra  “foi decisiva para que Moçambique provasse, junto à ONU, que existiam zonas já liberadas, o que Portugal negava”.4

Depois da independência, o Instituto Nacional do Cinema de Moçambique convida cineastas reconhecidos internacionalmente – como Ruy Guerra, Jean Rouch, Godard – para que contribuam no processo de criação do novo cinema. No entanto, se à primeira vista Zé Celso e Celso Luccas poderiam se encaixar nos dois conjuntos, o que se verifica é que eles se mantêm à parte. O duo chega a elaborar um projeto de cinema popular encomendado pelo INC, baseado no 16mm, em um circuito de exibição móvel (única parte adotada, ainda que parcialmente, pelo que se sabe do circuito de exibição do Kuxa Kanema) e na aceitação das limitações técnicas, que eles consideravam coerentes com a situação política e econômica do país. Sobretudo nesse último ponto, houve divergências com o projeto de cinema que acabou sendo adotado. Os dois membros do Oficina acreditavam que o padrão de qualidade do cinema comercial não deveria ser almejados; eles não davam especial valor para o treinamento profissionalizante de equipes, nem para a importação de técnicos ou equipamento.

(…) tinha material espalhado por Moçambique que podia ser utilizado, os aparelhos podiam ser consertados, estavam todos abandonados, havia condições de aproveitar aquele momento e colocar o povo todo trabalhando naquilo, porque o povo de Moçambique estava apaixonado pela descoberta da tecnologia, eles tinham descoberto trabalhar com a metralhadora (…). Tanto que no “25”, como éramos somente o Celso e eu, teve muita assessoria da população, sempre havia pessoas incríveis que se ocupavam até do som, que eu opero muito mal, e aprendiam rapidamente, queriam conhecer as coisas, mas havia esta tendência colonialista, que era liderada por este grupo inglês, que era a que mais nos combatia, que apoiava aquela burguesia de Lourenço Marques, no sentido de importar tecnologia européia, máquinas, técnicos, e instaurar este tipo de cinema que a cabeça deles concebia, e uma vez realizado o aparato de cinema, como existe na Europa, então fazer cinema para o povo, então brigar muito bem equipado,m levar cinema ao povo. E neste processo o povo fica ali servindo cafezinho, sendo chauffeur, sem nada de sério na participação do Instituto.5

No exílio português, Zé Celso e Celso Luccas decidem embarcar para Moçambique porque sentem que a independência se aproxima. Esse sentimento de urgência vai marcar a fabricação de 25 e em seguida o texto do projeto de cinema que eles elaboram. Havia o desejo de estar o mais perto possível do acontecimento, e de capturar a imagem do fim de um regime, de construir uma imagem do engajamento na construção do novo país por meio de um processo ele também engajado e novo.

Imagens da passagem

Antes de ser exibido em Cannes e na televisão francesa, em 1978, 25 teve sua estréia no Cinema Scala de Maputo, no dia 15 de fevereiro de 1977. No livro que eles publicam depois de voltarem ao Brasil, Zé Celso e Celso Luccas descrevem a noite, na qual acreditam terem sido vítimas de sabotagem:

A projeção de 16 mm numa sala do tamanho do Cinema Scala com o projetor que se tem, é um desafio técnico difícil de resolver. Passamos a incentivar os técnicos a procurarem a melhoria das qualidades de projeção. Os projecionistas Salles e Armando, mais Eurico Ferreira, passaram a fazer várias adaptações:

-       passagem do som das máquinas de 16 mm para as de 35 mm

-       aumento da voltagem da lâmpada

-       melhoria no enquadramento, etc.

Após dois dias de trabalho, os técnicos concordaram como sendo possível a data de 15 de fevereiro, marcada pelos camaradas do INC.

(…)

Na noite de estréia, com a casa totalmente cheia, a projeção, como é natural nas estréias, teve inicialmente alguns problemas que se foram resolvendo. O projetor reforçado era uma máquina insólita: um aspirador de pó ligado a soprar vento dentro da máquina para refrescá-la do calor conseqüente do aumento de carga. (…). Na segunda parte do filme, quando a projeção já estava a se afirmar, houve um estouro de uma válvula de um dos retificadores e a projeção parou.

Deixem-me ao menos subir às palmeiras, de Lopes Barbosa, que tem algumas imagens e sons contidos em 25, também conheceu um destino difícil, de acordo com Maria do Carmo Piçarra: “filmado em Moçambique, proibido antes do 25 de abril de 1974, nunca teve uma estréia comercial”.6

Assim, da mesma maneira que a forma escultural da instalação For Mozambique, de Ferreira, faz referência a projetos artísticos que nunca ultrapassaram o estágio da maquete (a torre de Tatlin, as tribunas de Klucis, a série moçambicana de Godard), e contém imagens cuja visibilidade sempre foi limitada (nos últimos trinta anos, as projeções públicas de Makwayela contam-se nos dedos), 25 conta muitas histórias invisíveis – ou quase.

Parece-me que For Mozambique (assim como Avó/Muidumbe e Off Screen Project) compartilha com 25 a procura por uma imagem visível do momento da transição, da ruptura. Essa procura estaria cristalizada na estrutura da torre inclinada (antes de sua queda) de Ferreira, no primeiro caso e, no segundo, na imagem de lusco-fusco do primeiro anoitecer-amanhecer de uma nação livre. As passagens de imagens (e a circulação das idéias) que esses dois trabalhos põem em prática estariam, desta forma, ligadas a um projeto mais amplo, de produção de imagens da passagem.

  • 1. Raymond Bellour, Catherine David, Christine van Assche, Passages de l’image (prefácio), Paris, Centre Georges Pompidou, 1990, p. 7 (minha tradução).
  • 2. Tanto a noção de comunidade internacional como a de passagem de imagens fazem eco à circulação de idéias tal como o historiador Benedict Anderson a trabalha, sobretudo nas articulações que levaram à independência das Filipinas. Nesse momento, na passagem do século 19 para o 20, Anderson nota um movimento internacional de forças e personalidades confluindo para a independência e o assemelha a uma “primeira globalização”. As trajetórias dos três protagonistas de seu livro Under Three Flags. Anarchism and the Anticolonial Imagination (Londres, Verso, 2005), o escritor José Rizal, o antropólogo Isabelo de los Reyes e o militante nacionalista Mariano Ponce são provas de uma intensa circulação de idéias, de uma intensa colaboração internacional – visíveis por exemplo na intriga e nos personagens dos livros de Rizal.
  • 3. Fernando Arenas, Lusophone Africa – Beyond Independence, Minneapolis/Londres, University of Minnesota Press, 2011, p. 103 (minha tradução).
  • 4. José Celso Martinez Correa, Celso Luccas, Álvaro Nascimento, Noilton, Cinemação, Cine Olho Revista de Cinema, 5º Tempo, Te-Ato Oficina, 1980, p. 9.
  • 5. José Celso Martinez Correa, Celso Luccas, Álvaro Nascimento, Noilton, Cinemação, Cine Olho Revista de Cinema, 5º Tempo, Te-Ato Oficina, 1980, p. 15
  • 6. Maria do Carmo Piçarra, “Deixem-me ao menos subir às palmeiras…”: um filme da ‘frente de guerrilha’ (entrevista com Lopes Barbosa), Buala, 3 de outubro de 2010, http://www.buala.org/pt/afroscreen/deixem-me-ao-menos-subir-as-palmeiras... (último acesso: junho de 2011).

por Lúcia Ramos Monteiro
Afroscreen | 7 Julho 2011 | Ângela Ferreira, cinema moçambicano, imagem, Independência