O Tabu da História

«Desejo de ficção» e imagens do colonialismo

O filme Tabu do realizador Miguel Gomes tem sido aclamado pela crítica nacional e internacional. É uma obra importante do cinema português que merece ter uma audiência vasta.

Obra a dois tempos, Tabu tem uma primeira parte «contemporânea», magnífica história da relação entre três mulheres, e uma segunda parte que decorre no Moçambique colonial, onde ficamos a conhecer o passado da mais velha destas mulheres, uma colona que vivia com o marido e com outros membros de uma pequena sociedade europeia nas encostas do Gurué, na Zambézia, onde exploravam uma plantação de chá.

A imprensa tem-se referido ao contexto colonial tratado no filme e ao modo como o cinema português voltou ao tema sem complexos. Nas entrevistas sobre a sua obra, Miguel Gomes procurou afastar-se deste debate, rejeitou que o seu filme fosse um comentário histórico e afirmou-se vinculado a outra história: a história do cinema. Tabu tem o nome de um filme do realizador alemão F.W. Murnau (1888-1931), e o nome da heroína do filme, Aurora, é também o título de uma outra obra maior do mesmo autor. A recriação de um universo colonial no Gurué, por seu turno, é tributária do cinema clássico norte-americano. Dos filmes desta época passados em África, o processo de formação de um cânone cinematográfico consagrou poucos, como A Rainha Africana (1951) de John Huston, Mogambo (1953) de John Ford, ou mesmo a saga de filmes sobre Tarzan, cuja série começa com Tarzan, o Homem Macaco (1932). Mas muitos outros filmes do sistema de produção clássico americano, muitos deles hoje esquecidos, ou películas mais recentes, como África Minha (1984) de Sidney Pollack, representaram em imagens o continente africano, um dos diversos espaços não ocidentais retratados pelas películas de Hollywood.

É no cruzamento destas referências (outras haverá) que Miguel Gomes articulou em várias entrevistas o discurso sobre o seu filme, acentuado pela interpretação crítica. A história do cinema ajuda a explicar o nexo de organização da obra, as imagens e as tomadas de planos e o modo como servem a sucessão de significados e leituras. A auto-referencialidade, criticada pelo autor nos seus exageros1, é, ainda assim, o instrumento de interpretação por excelência.

A narrativa de Tabu, feita de mil pedaços e influências trabalhados criativamente, é guiada, segundo o próprio, por um «desejo de ficção»2: contar uma história que não se pode confundir com a História, considerada uma instância da norma, da explicação, da demonstração factual. Em Tabu tratava-se de criar uma outra representação do mundo. A História está presente no filme, sobretudo como lugar onde as personagens se movem, mas também como meio para acentuar o sentimento de perda que caracteriza a relação entre personagens, num mundo colonial a prazo que também se vai perder e nos ajuda a perceber melhor o ambiente dominante da primeira parte da obra.

 

 

A autonomia do gesto criador, feito da sua estética, linguagem e ritmos próprios legitima-se frequentemente pela recusa do comentário, da tese, ou da dependência da obra da análise histórica e social. A afirmação de uma autonomia da linguagem cinematográfica procura separar estes planos, tentando descontaminar o ofício específico, o artesanato, de funções das quais não pode ser refém. Miguel Gomes assume o seu desinteresse estético por obras que professaram essa contaminação, como as correntes neo-realistas ou naturalistas3, que fizeram ceder o princípio da autonomia da forma a um objectivo exterior ao próprio trabalho sobre a linguagem fílmica. Haverá inúmeros motivos estéticos para criticar os neo-realismos e os naturalismos, todos legítimos, alguns mais bem articulados do que outros.

Dir-se-á, no entanto, que os autores comprometidos não estavam interessados apenas em dialogar com a história da sua actividade, cedendo na expressão formal, perante as críticas de alguns pares, mas em dialogar com a História e a sociedade de forma mais geral. Haverá diferentes modos de estabelecer este diálogo, alguns mais interessantes do que outros, alguns formalmente mais ousados do que outros: certas obras, celebradas, fizeram-no fora dos modelos neo-realistas ou naturalistas. Os seus autores, no entanto, não deixaram de acreditar na importância do diálogo como uma esfera pública alargada.

Outros criadores, não intervindo a partir das obras, optaram por fazê-lo enquanto intelectuais públicos. A aparente decadência da figura do intelectual público é, em grande medida, o resultado da especialização dos campos culturais. Um dos seus efeitos mais evidentes é que a participação pública de alguns criadores parece encontrar-se condicionada pela sua relação com a história da sua actividade, o que não seria mau se a partir deste conhecimento decorresse uma visão alargada sobre o mundo, mas que, em termos gerais, parece resultar em intervenções que raramente excedem o quadro da defesa dos interesses da corporação, desligados de quadros de poder mais vastos, independentemente da razão que lhes possa assistir neste protesto.

 

Representações, autonomia e normatividade

Em Tabu, o «desejo de ficção» de Miguel Gomes recorre ao imaginário do cinema clássico americano, no qual o autor se inspirou para criar a sociedade colonial do seu filme. A construção ficcional, desconfiada da História e das ciências sociais4, representações do mundo que limitam a liberdade criativa e a imaginação, surge como um espaço de liberdade normativa. Esta ideia parece sugerir que as formas artísticas estão separadas da sociedade, tanto no que respeita à produção, como no que concerne à recepção. O modo americano clássico de produção cinematográfica, aqui retrabalhado por Miguel Gomes, é, no entanto, uma instância de poderosa normatividade. O êxito comercial de produtoras como a Fox, a Warner Brothers, a Metro, a MGM ou a RKO baseava-se no inevitável encontro entre produção e consumo5; na expectativa de que as imagens que saíam dos projectores nas salas de cinema fossem ao encontro das aspirações e imaginações do público, enfim, dos seus desejos de ficção.

Este público era o americano, que se levantava aos poucos da grande depressão dos anos trinta, mas também um público mundial que alimentava os crescentes circuitos de lazer urbano. Neste período, na capital de Moçambique, na altura Lourenço Marques, eram estes os filmes que dominavam a oferta cultural das inúmeras salas de cinema6. Eram vistos por colonos, como aqueles retratados por Miguel Gomes no seu filme, mas também pelos africanos a viver nas margens das cidades, que vibravam com westerns e policiais, porém, quase sempre confinados aos seus próprios cinemas, já que a sociedade colonial portuguesa os havia enxotado dos seus7, como havia enxotado os africanos de uma cidadania política e cultural, procurando reduzi-los a instrumentos de trabalho. Os públicos que mais contribuíam para o sucesso das grandes produtoras americanas eram os ocidentais, era para eles que os actores sorriam, se vestiam, se penteavam, era para eles que eram construídos enredos e personagens.

Neste diálogo entre produção e consumo produziam-se inevitavelmente representações sobre o mundo que não têm de ser directamente políticas e ideológicas, nos sentidos mais explícitos do termo, embora muitas vezes o fossem, mas que transmitiam ideias sobre hábitos e relações, entre classes, géneros, povos. Estas imagens, fortemente normativas, não dependiam apenas do conteúdo do enredo, mas da sua própria estrutura literária (estatuto das personagens, das descrições) e posteriormente do modo como a câmara traduzia essas ideias. Um dos aspectos mais relevantes desta capacidade de «criar mundo» que o cinema possui, neste caso o cinema clássico norte-americano, é a forma como representa os povos e as sociedades não ocidentais. Em contextos políticos de construção nacional e nacionalista, a superioridade da civilização ocidental, branca, masculina, reforçava-se pelo contraste com os outros povos. Os orientalismos de que falava Edward Said8, penetraram a cultura popular reforçando estereótipos e todas as leituras da História que justificaram a legitimidade cultural do colonialismo, esse «fardo do homem branco». O cinema, especificamente, construiu assim o «outro», quase sempre representado na sua irredutibilidade cultural, pelos seus usos e costumes, pelo seu exotismo e sobretudo pelo seu atraso. A culturalização do «outro», seja para demonstração da sua inferioridade, ou simplesmente para mostrar que é diferente e, portanto, está à parte, foi, e continua a ser, um poderoso instrumento da ocultação das relações de poder.

O modelo norte-americano que inspirou Miguel Gomes na representação de uma sociedade colonial em África está repleto de representações do «outro», mesmo quando o menor dos seus males é um certo paternalismo humanista. Prolixo em normatividades sociais, este cinema encontra-se refém de representações que não dependem da liberdade do autor, mas de um cuidado produto de um sistema de produção que para se desenvolver foi beber a técnicas de marketing e aos estudos de sociologia da comunicação.

É certo que aTabu não importa este modelo de forma pura, nem Miguel Gomes está habitado por qualquer sentimento nostálgico em relação ao império. De resto, a sua construção da sociedade colonial permite relativizar essa inspiração no modelo clássico norte-americano, introduzindo filtros e mediações que complexificam a representação (desde logo a narração na primeira pessoa). Porém, ao remeter a construção narrativa para um sistema auto-referencial, supostamente fechado nos seus universos estéticos e representacionais, o autor não reconhece o modo como as obras estão incrustadas em sistemas de produção que inevitavelmente constrangem os olhares criativos, para não falar de outras mediações cruciais que afectam o gesto do autor e a sua visão do mundo.

Apesar dos filtros que permitem uma distanciação, muitos dos «africanismos» típicos da normatividade da representação do cinema clássico americano acabam por permanecer. Esta normatividade traduz uma visão do mundo, no caso concreto de Tabu, do mundo colonial português. Em entrevista ao semanário Expresso, o realizador afirmou que «Tabu é uma efabulação que não deve nada à realidade histórica mas que eu acho justa com essa realidade»9. Mas de que realidade falamos? Se o mundo das personagens do filme se encontra em ebulição, a sociedade em que se movimentam sugere-nos uma aparente harmonia. Os africanos da plantação de chá do Gurué que trabalhavam no Monte Tabu, retratados em actividades laborais e em outras situações quotidianas, parecem integrados, na sua impessoalidade, embora a História tenha vindo a salientar que nas plantações de chá da Alta Zambézia o trabalho forçado e todas as práticas de semi-escravatura abundavam.

O filme, partindo da ideia de que o império está a prazo, não oferece nenhuma leitura que permita perceber por que razão afinal está a prazo. Porque há uma guerra, sim, mas por que razão há uma guerra?

 

O estatuto narrativo do «outro»

Em Tabu, habitantes e paisagens coloniais estabelecem-se com um pano de fundo onde os ocidentais, colonos deslocados do seu habitat para um espaço «natural», «selvagem», «bruto», vivem paixões e histórias de modo mais superlativo. Apesar de tudo, o Tabu de Murnau tomava os indígenas polinésios como os actores não apenas de histórias mas também da sua História.

Um dos pontos cruciais na história da literatura e do cinema africanos foi precisamente a necessidade de devolver aos africanos a sua humanidade e singularidade, oferecendo-lhes aquilo que estas representações artísticas, durante anos, lhes tinham retirado: um estatuto narrativo que os deslocasse das funções que lhes tinham sido atribuídas − como parte da paisagem, como forma de acentuar o contexto selvagem onde as acções, os dilemas existenciais dos ocidentais, enfim tudo o que lhes confere certa humanidade, se iriam manifestar. Este modo de representar o outro, mesmo quando movido pelas melhores intenções, continua hoje implícito em diversas obras, em géneros diferentes, algumas delas com uma circulação massificada.

Se a relação da história do cinema com a sociedade implica que se pensem todas as dinâmicas que estão por trás de um acto criativo, é fundamental acrescentar a esta relação a questão da recepção. É verdade que o autor se pode desvincular desta discussão, assumindo que a recepção é um problema de quem vê. Mas neste como noutros casos, a recepção não é apenas matéria da idiossincrasia individual do espectador mas de representações e memórias colectivas.

Embora Miguel Gomes queira afastar-se da discussão sobre o «colonial», o seu filme constitui inevitavelmente um olhar sobre o mundo colonial. Quando estreiam em sala, os filmes deixam de pertencer aos autores (tal como não pertencem à crítica especializada que justamente tem reconhecido a mestria do filme). Nesse sentido, observando a cultura portuguesa contemporânea, parece que Tabu se harmoniza amigavelmente com um contexto nostálgico de produção cultural sobre o colonial. O sentimento de perda com que lidaTabu, centrando-se num quadro de relações pessoais exemplarmente tratado pelo autor, ganha com celeridade um significado mais estrutural. As imagens da nostalgia por um paraíso perdido feito de relações sociais harmoniosas, onde os africanos se inserem sem aparente drama, e que foi interrompido abruptamente, surge num momento em que a diplomacia económica portuguesa, no âmbito da recente invenção lusófona, procura reconstruir um passado mítico de relações culturais para acomodar o progressivo avanço de todos os investimentos económicos. Um avanço que se faz pelo silêncio da História mas também pelos silêncios em relação ao estado das próprias relações sociais e políticas nos países que fazem parte da dita comunidade lusófona. É evidente que tudo isto são questões de comentário social, estranhas à intenção artística da obra, que interessam pouco a quem usufrui da destreza formal do filme. No entanto, tal como o sistema de produção norte-americano que criou imagens e representações sobre as sociedades africanas, também o cinema de Miguel Gomes está incrustado, dialogando com imaginários difundidos por discursos institucionais, políticos, mediáticos e académicos, presentes em categorias de entendimento do mundo e das coisas que se impõe sejam discutidos.

Desde logo, enquanto representação do colonial, o filme participa num debate sobre a História do colonialismo português, onde abundam hoje os discursos sobre a excepcionalidade lusa, dos mitos da mistura cultural e deste colonialismo harmonioso, que, na verdade, foi quase ritmado pela iniquidade e pela discriminação radical. Este incrustamento é ainda mais relevante quando o próprio produtor de Tabu assume que o filme trata de uma representação do imaginário português10. É certo que fala a partir da sua função enquanto produtor para quem a «marca» do cinema português oferece renovadas possibilidades comerciais e circulações internacionais. Mas este casamento entre o mito do imaginário cultural português e o mito do cinema português só pode ter um resultado perverso. Ambos ocultam e distorcem mais do que explicam ou interpretam.

Tabu, como os filmes americanos em que se inspira, é o resultado de um sistema de produção. A funcionar em Portugal, este sistema, que Miguel Gomes procurou discutir de forma interessante em entrevista ao Jornal de Letras11, explica em grande medida o campo de possibilidades a partir do qual o realizador trabalhou, os resultados que alcançou e mesmo o seu discurso. Noutro âmbito, certo imaginário contemporâneo do colonialismo português, dimensão desse imaginário mítico da portugalidade, instrumentaliza o nacionalismo para acomodar inúmeros interesses bastante mais terrenos e lucrativos; ao fazê-lo opera pela ocultação histórica, impondo silêncios sobre o real funcionamento de um sistema colonial iníquo e brutal.

 

publicado originalmente na ed. portuguesa do Le Monde diplomatique, Maio 2012

  • 1. Atual», Expresso, 6 de Abril de 2012, p. 10.
  • 2. Atual», Expresso, 6 de Abril de 2012, p. 8.
  • 3. «Atual», Expresso, 6 de Abril de 2012, p. 10.
  • 4. “Ipsilon”, Público, 30/3/2012, p. 18
  • 5. Thomas Schatz, The Genius of the System: Hollywood Filmmaking in the Studio Era, Faber and Faber, Londres, 1988.
  • 6. Guido Convents, Os Moçambicanos Perante o Cinema e o Audiovisual, CP Conteúdos e Publicações / Dockanema / Afrika Film Festival, Maputo, 2011.
  • 7. Idem, pp. 58-63 e 191-194
  • 8. Edward Said, Orientalismo − Representações Ocidentais do Oriente, Cotovia, Lisboa, 2004.
  • 9. «Atual», Expresso, 6 de Abril de 2012, p. 10.
  • 10. «Atual», Expresso, 6 de Abril de 2012, p. 11.
  • 11. Jornal de Letras, 10 de Abril de 2012.

por Nuno Domingos
Afroscreen | 28 Janeiro 2014 | colonialismo, imagem, Miguel Gomes, Tabu