Fronteira de amor e ódio

Já fui clandestino, em 1972, em lugares do Hemisfério Norte. Por razões políticas. Diferentes das que levam os meus compatriotas a passarem a salto a fronteira para a África do Sul. No entanto, corri os mesmos riscos: passei a fronteira a salto, tive fome, trabalhei em tudo o que aparecia, fui olhado como vagabundo, como imigrante ocupando um espaço que não era meu por direito. Essa vivência de clandestinidade, somou-se ao que já era o sentimento de injustiça da situação colonial.

Talvez essa sensibilidade para questões sociais, e a consciência de que tenho o dever de fazer algo para mudar essa situação, tenha sido o que fez de mim: primeiro um combatente da luta de libertação nacional, depois um cineasta, no pós-independência.

Talvez por isso, nunca tenha deixado de fazer um cinema de intervenção social.  

Há cerca de ano e meio passei pela fronteira de Ressano Garcia e vi centenas de compatriotas a serem recambiados da África do Sul para Moçambique, alguns em autocarros e outros em carros celulares acompanhados pela polícia. O chamado “Comboio da Vergonha”. Não consegui ficar indiferente a esta questão, percebi que algo não estava a correr bem e decidi fazer uma pesquisa no local. Passei vários dias e noites tentando perceber o que acontecia.

Porque eram repatriadas pessoas sem qualquer indício de crime, bebés, crianças, adolescentes, homens, mulheres e idosos. Mobilizei colegas meus para irmos juntos recolher imagens, falar com pessoas. Dei-me conta, então, que o processo de xenofobia tomava os seus primeiros contornos. Pouco tempo depois, eclodia a onda de violência xenófoba na África do Sul.

cena de 'Fronteira de Amor e Ódio' de Camilo de Sousa (2009)cena de 'Fronteira de Amor e Ódio' de Camilo de Sousa (2009)

 

Por uma daquelas boas coincidências do destino, depois destes acontecimentos violentos, a FDC (Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade) decidiu fazer o filme sobre os que regressaram e a sua integração no País. Surgiu assim a oportunidade de transformar uma proposta de filme institucional, num filme de autor, que acabou acontecendo a partir de uma aturada pesquisa nas províncias de Maputo, Gaza e Inhambane, de histórias de moçambicanos recém regressados da África do Sul.

Escolhemos as mais fortes histórias de vida, entre as inúmeras que encontrámos e tentámos falar desta problemática do ponto de vista das pessoas que dela foram vítimas. Espero que este filme ajude a capitalizar esforços no sentido de um apoio mais coordenado e significativo para as vítimas deste processo.

Em 2008 eclodiu inesperadamente na África do Sul, país que acolhe um grande número de emigrantes dos países vizinhos, uma onda de Xenofobia contra estes. Cerca de 50 pessoas foram mortas e milhares ficaram feridas entre as quais moçambicanos. Milhares de estrangeiros viram os seus familiares agredidos e mortos, as suas casas e bens queimados e foram obrigados a fugir sem nada. Este documentário relata a história dramática de três destas pessoas que regressaram à sua terra natal fugindo da violência.

 

originalmente publicado no catálogo do Dockanema - festival de filme documental, Maputo 2009

por Camilo de Sousa
Afroscreen | 10 Julho 2012 | Africa do Sul, fronteira, moçambique, xenofobia