Espécies de espaços. Lugares, não-lugares e espaços identitários na obra videográfica de Ângela Ferreira.

Há algo de transversal na obra videográfica de Ângela Ferreira, algo que se prende, fundamentalmente, com uma espécie de não-correlação entre a identidade concreta dos lugares de filmagem e o  seu investimento por justaposições abertas sobre uma constelação de eixos espaciais e temporais descontínuos. Se a dualidade territorial, indissociável de um certo percurso biográfico, das deslocações constantes entre África - Moçambique e a África do Sul - e a Europa, marca, indubitavelmente, a obra de Ângela Ferreira, é precisamente essa dualidade territorial que vem inscrever a história no espaço indeterminado do discurso videográfico, apontando para questões relacionadas com a geopolítica e remetendo-nos, simultaneamente, para o trabalho de desconstrução da iconografia e do imaginário coloniais e pós-coloniais que vem sendo sistematicamente desenvolvido pela artista. O corpo de Ângela Ferreira, no contexto de uma démarche de carácter auto-referencial, inscreve-se nesses lugares, lugares que albergam o tempo e a história, espaços heterogéneos, em que as relações com o espaço real são momentaneamente evidenciadas para logo depois serem suspendidas através da intervenção da artista. 

' Joal la Portugaise ' (2004)' Joal la Portugaise ' (2004)

Na obra videográfica de Ângela Ferreira, encontramos espaços abstractos, mas também espaços precisos, perfeitamente identificáveis e localizáveis, como o Estádio Nacional do Jamor, em “Untitled”, vídeo de 1998. O Estádio Nacional, monumento de inspiração germânica inaugurado em 1944, em pleno Estado Novo, foi concebido para ser a catedral dos acontecimentos desportivos e das grandes manifestações públicas organizados pelo regime de Salazar. Num plano-sequência, fixo e frontal, Ângela Ferreira, vestida de verde - um verde que alude à tonalidade do uniforme paramilitar da Mocidade Portuguesa -, realiza uma sequência de ginástica aeróbica. A tribuna do estádio, de um neo-classicismo monumental, em segundo plano, serve de cortina cénica à performance da artista. A qualidade desfocada da imagem cria, neste vídeo, um efeito de quasi-fusão entre o corpo móvel da artista, em primeiro plano, e a arquitectura do estádio. Os gestos coreográficos do primeiro plano entretecem com a fixidez do conjunto arquitectónico, enquanto espaço real e histórico, uma relação dupla. Por um lado, a gestualidade da artista convoca e, no mesmo movimento, decompõe a iconografia desportiva do regime salazarista; por outro lado, o espaço arquitectónico de rodagem é convertido num não-lugar ou num espaço híbrido onde espacialidades e temporalidades heterogéneas se vêm inscrustar e sobrepor. A cortina cénica, rasgada, deixa entrever uma série de espaços outros, espaços heterotópicos abertos sobre o tempo. 

' Untitled ' (1998)' Untitled ' (1998)

Michel Foucault define as heterotopias como espécies de lugares que se encontram fora de todos os lugares, ainda que (todavia) sejam efectivamente localizáveis1. Neste pequeno artigo, gostaria de analisar brevemente a função da heterotopia na obra videográfica de Ângela Ferreira. Para Foucault, as heterotopias, ao contrário das utopias, constituem espaços reais, no interior de uma instituição da sociedade, em que todos as outros lugares se encontram representados. Conformando uma espécie de condensação ou de justaposição de espacialidades diversas, a heterotopia não é universal, nem tão-pouco constante ao longo da história, já que desempenha sempre uma função relativamente ao conjunto do espaço social. Por outro lado, a heterotopia pressupõe um sistema de abertura e de clausura, factor que a desvia e a isola, tornando-a, ao mesmo tempo, permeável.


Na obra de Ângela Ferreira, deparamo-nos com uma predilecção sistemática por lugares e objectos heterotópicos, como o estádio, no exemplo analisado, a colónia, em “Joal, la Portugaise” (2004) ou, ainda, a arquitectura modernista colonial, na instalação “Maison Tropicale” (2007). No entanto, esses lugares essencialmente heterotópicos são, através da experimentação da linguagem artística e da adopção de modelos e estratégias narrativas fundadas na fricção e no choque semânticos, desviados das suas funções originais e convertidos em novos espaços e objectos heterotópicos. Re-circunscritos, reenquadrados pelo próprio gesto artístico, desviados e arrancados das suas funções originais, esses lugares e objectos - de carácter material e imaterial, como o dito encantatório dos forcados nas touradas em “Pega” (2004) -, transformam-se em resíduos históricos, a partir dos quais novas discursividades emergem, articuladas agora em torno de um trabalho de interrogação da memória e de desconstrução iconográfica.

'Pega' (2000)'Pega' (2000)

Encontramos também espaços neutros, não-lugares, que se transformam em espaços concretos e heterotópicos. Ainda em “Pega”, um estúdio branco e abstracto é convertido numa arena tauromáquica através do ralenti da imagem e do som, bem como da repetição quase ininteligível do mote “Ah, touro!”. Uma vez mais, a artista coloca-se em cena, encarnando um forcado. A presença e a constância de Ângela Ferreira parecem unificar as espacialidades e as temporalidades essencialmente descontínuas da obra videográfica da artista. A inscrição de Ângela Ferreira na imagem, quase sempre frontal no espaço cénico dos seus vídeos, parece interpelar simultaneamente o espectador e a sua consciência histórica, como o retorno de uma coisa vista de longe, de uma coisa que julgávamos esquecida, mas que, remanescente,  invade subitamente o espaço da representação, impelida pela frontalidade do corpo da artista.

Em “Joal la Portugaise”, Ângela Ferreira encarna Joana Alves, alegada fundadora da vila de Joal-Fadiouth, no Senegal, terra natal de Léopold Senghor, onde a obra foi filmada. A artista conta, interpelando a câmara em primeira pessoa, a história da fundação da vila. O espaço fechado da vila-colónia abre-se sobre temporalidades heterogéneas, sobre o tempo da fundação portuguesa de Joal-Fadiouth, bem como sobre o tempo da colonização francesa do Senegal e ainda sobre o período de descolonização do país e o presente. A ruptura temporal, também evidente num certo gosto pelo anacronismo, é acompanhada por um movimento de abstracção espacial: a paisagem e a arquitectura da vila, percorridas pela personagem, tornam-se pouco a pouco irreais, como que reflectidas num espelho. A auto-mise en scène de Ângela Ferreira parece, neste sentido, criar um jogo de espelhos, como se a artista encontrasse a sua identidade num efeito de retorno da imagem (retorno que passa também pelo espectador), precisamente, num movimento de passagem do próximo ao longínquo e do longínquo ao próximo. Passagem não somente de ordem subjectiva, mas que se prende, sobretudo, com a memória colectiva, a história e o tempo.

  • 1. … des sortes de lieux qui sont hors de tous les lieux, bien que (pourtant) ils soient effectivement localisables. Michel Foucault, Des Espaces Autres in Architecture, Mouvement, Continuité, nº5, Outubro de 1984, pp. 46-49.

por Raquel Schefer
Afroscreen | 4 Agosto 2010 | Ângela Ferreira, colonial, pos-colonial, vídeo