Cinema em Angola não era angolano

Angola – O nascimento de uma nação (Volume I: O cinema do império)

Editora Guerra e Paz, 2013

Autores: Maria do Carmo Piçarra e Jorge António

Primeiro volume de um trabalho importante que vem preencher uma lacuna nos estudos de cinema africano.

 

Escreve uma das editoras, a investigadora Maria do Carmo Piçarra, num dos artigos deste livro, Angola – O nascimento de uma nação, que “quando o cinema nasceu, em Angola, não foi um cinema angolano”. Por isso, este primeiro volume, sub-intitulado O cinema do império, debruça-se sobre um certo cinema “angolano”, isto é, feito em e sobre Angola quando a nação era ainda a “jóia da coroa” do império colonial português: até 1975.

Aguarda-se um segundo volume sobre o cineclubismo, o cinema militante e da luta pela independência, associado aos movimentos de libertação (ainda durante o período colonial) e um terceiro volume futuro, dedicado ao cinema do pós-independência.

Ainda que, na nossa opinião, este trabalho tenha de ser visto como um todo, ou seja, contemplando os três volumes enquanto história do cinema em Angola, este primeiro volume é um passo fundamental que vem preencher uma lacuna nos estudos de cinema africano e lusófono, trabalho esse que já vinha sendo feito sobre Moçambique há uns anos e de forma mais sistemática.

António Lopes Ribeiro, O Feitiço do Império (1940)António Lopes Ribeiro, O Feitiço do Império (1940)

Sobre Moçambique o trabalho foi feito não só com o “abrir dos cofres” dos arquivos moçambicanos (do Instituto Nacional de Audiovisual e Cinema, antigo INC, cujo espólio foi grandemente afectado por um incêndio nos anos 90), mas também através das publicações de trabalhos académicos e projecções de filmes (resultado do protocolo entre os Estados português e moçambicano para a recuperação dos arquivos). No caso da Guiné, é ainda necessário ressalvar o trabalho que a artista plástica Filipa César tem vindo a fazer para a recuperação, divulgação e visionamento (muitos desses filmes pela primeira vez) do arquivo fílmico de Bissau.

Sobre cinema angolano (de e sobre Angola) pouco se sabia. E como este livro documenta, parecia igualmente que muitos dos investigadores sobre cinema angolano (etnográfico, ficção, propaganda, comercial ou industrial, realizados por estrangeiros ou portugueses) estavam de certa forma isolados nas suas diferentes áreas a fazer uma investigação solitária que agora este volume organiza e põe em diálogo.

Nem sempre de forma equilibrada, é certo. Para o leitor especialista, o livro é excelente, uma vez que todos os trabalhos são apresentados de forma crítica e bastante exaustiva; uns através de levantamentos específicos de todo o material sobre filmes de economia colonial (é o caso de Paulo Miguel Martins), outros com um percurso pela ficção portuguesa sobre Angola até à independência, como Feitiço do Império ou Epopeia da Selva (textos de Tiago Baptista e de Maria do Carmo Piçarra, o último mais sobre o trabalho de propaganda), o estudo de caso sobre o cinema da Diamang (companhia diamantífera do Dundo, na Lunda, belíssimo ensaio de José da Costa Ramos) ou a discussão sobre cinema científico e etnográfico (português mas sobretudo estrangeiro) realizado em Angola (por Teresa Castro).

Para o leitor comum, o livro pode apresentar alguns problemas, não por ser demasiado académico ou hermético – pelo contrário, as três entrevistas no final do livro (a João Silva, pioneiro do cinema em Angola, operador de câmara; Francisco Castro Rodrigues, cineclubista; e Manuel S. Fonseca, hoje crítico de cinema, na altura vivia em Angola e lá “se fez” cinéfilo) são um complemento interessante, uma vez que testemunhos da história do cinema angolano em Angola falam aqui em discurso directo.

os autores Jorge António e Maria do Carmo Piçarraos autores Jorge António e Maria do Carmo PiçarraMuitos leitores poderão estar a entrar em contacto com estes materiais e esta informação pela primeira vez. Se esse levantamento exaustivo pode ser útil para o académico, pode tornar-se repetitivo para o leitor comum. Isto porque alguns filmes se repetem em vários textos; as citações das referências bibliográficas também e porque o levantamento cronológico sem um enquadramento histórico ou sociológico crítico da situação se podem tornar monótonos.

Haveria, contudo, algumas análises que podiam ter sido mais aprofundadas ou, até, críticas, sobre o material levantado (e visionado) pelos investigadores. Por exemplo: o termo “propaganda” é usado com regularidade, evidentemente, não fosse o cinema um dos veículos essenciais do projecto do Estado Novo. O problema é que dizer-se que determinado filme é “de propaganda”, porque enquadrado no programa de propaganda do Estado, não é suficiente do ponto de vista crítico e pode levar ao esvaziamento do próprio conceito. O que é um filme de propaganda? O que é que ele oculta, mais do que mostra? E ao mostrar todo esse desenvolvimento (como os filmes económicos sobre o café ou a madeira em Angola faziam), como é que o olhar se cruza com quem o viu (seja ele o censor, o “indígena” ou o branco)? Estas são perguntas que gostaríamos de ver respondidas e, mesmo que muitas vezes impossíveis de responder, pelo menos interpeladas.

Apesar de nem todos os autores o fazerem do mesmo modo, a investigadora Teresa Castro discute, no seu excelente artigo sobre o cinema científico e etnográfico, as diferenças que as etimologias (e métodos) aplicados a esses filmes permitem perceber sobre o que se oculta e o que se mostra: “Não se trata apenas de restituir a uma parte dos interessados o que constitui um património comum, mas de evitar que a projecção dos filmes em contexto estritamente museológico reproduza o efeito de distanciamento e de objectivação tão justamente alvo de críticas. O que parece certo é a necessidade de enquadrar estas imagens no seu contexto de produção, acompanhando-as de um aparelho crítico capaz de assinalar o que subtilmente revelam e o que flagrantemente ocultam.”

Sobre cinema militante e sobre o pós-independência em Angola está quase tudo por escrever. Exceptuando algumas investigações sobre “Terceiro Cinema” que incluem os filmes de Sarah Maldoror, e outros (escassos) sobre os trabalhos de Ruy Duarte de Carvalho ou de António Ole, há pouquíssimo trabalho feito sobre os arquivos da TPA, os noticiários, os filmes do pós-independência, mais os arquivos de cooperação russo/soviético, cubano, ou sul-africano, até. Todo esse levantamento está por fazer (em alguns casos, já está a ser feito) e por publicar.

Este livro é, por isso, um documento pioneiro e imprescindível para o estudo do cinema angolano (e também lusófono e colonial). Esperamos que o trabalho futuro dos investigadores Maria Carmo Piçarra e Jorge António continue (e continue a ser financiado) porque é com expectativa que aguardamos os volumes futuros. Porque não estamos só a falar de cinema per se. Sobretudo no caso de Angola, ao falar de cinema (do que há, do que não há, do que houve e do que se perdeu) estamos também a falar de movimentos históricos, de relações internacionais, de relações de poder, de olhares internos e externos sobre fenómenos económicos, sociais ou outros, de política e (sobretudo) de ideologia. Há escolhas, há olhares e há história(s) que têm de ser resgatados e estudados.

 

artigo originalmente publicado no Público

por Raquel Ribeiro
Afroscreen | 23 Agosto 2013 | cinema angolano, colonial