Cenas da vida de Jonas Mekas

Em 1973, voltando de um encontro com o cineasta alemão Hans Richter, e impressionado com a jovialidade e sagacidade mental do amigo, na altura com 85 anos, Jonas Mekas escreveu um texto celebrando a idade avançada de Richter. Idosos como ele restauravam sua fé no homem: “são como coroas da vida, pontes, sinalizações. Podemos olhar para eles como uma obra de arte da humanidade, a coração da vida como arte.” Mekas, que faleceu na quarta-feira, aos 96 anos, em Nova York, não tinha como saber que, em 1973, publicava precocemente seu próprio epitáfio. 

Nascido na Lituânia, em 1922, Mekas chega aos Estados Unidos em 1949 com seu irmão Adolfas. Depois da 2ª Guerra, os dois haviam passado quatro anos em campos para “deslocados”, como ficaram conhecidos os campos para onde eram enviados os prisioneiros libertados que não podiam retornar aos seus países de origem, então sob controle da URSS. Assim que chegam aos Estados Unidos, os irmãos compram uma câmera 16mm e começam a filmar seu cotidiano. 

Não será, entretanto, por seus filmes que Mekas será primeiro conhecido, mas por todas as outras atividades ligadas à criação e fortalecimento de uma cultura de cinema de vanguarda nos Estados Unidos. Ele mantém uma coluna no jornal independente mais lido do país chamando a atenção para o trabalho de novos realizadores; funda uma revista dedicada ao cinema independente, a Film Culture; uma cooperativa de distribuição de filmes, a Film Maker’s Cooperative, e uma cinemateca, o Anthology Film Archives, até hoje um lugar de peregrinação para cinéfilos em Nova York.

  Em um país com uma indústria cinematográfica tão forte como Hollywood, havia pouco espaço para uma cultura alternativa. Mekas assume a função quase quixotesca de ajudar a criar um ambiente e um sistema para uma produção mais livre, lírica e espontânea, que não se dobrasse às regras do cinema comercial. Essa dedicação rendeu-lhe os epítetos de “pai e parteiro do underground”, “ministro da defesa e da propaganda do Novo Cinema Americano”. 

Embora tenha finalizado poucos filmes naquele período, desde sua chegada a Nova York Mekas filmou religiosamente o seu dia-a-dia. Sem finalidade, ele filmava momentos aparentemente insignificantes de sua vida em Nova York ao lado de amigos como Allen Ginsberg, George Maciunas, Andy Warhol, Nam June Paik, Jackie Kennedy, Patti Smith. Seus registros eram como filmes de família, notas em um diário, breves impressões e anotações para uma memória futura. Assim como um pai sabe que os filhos irão crescer, abandonar a casa, ele filmava para ter um lugar para onde voltar.

No final dos anos 1960, quando nomes como John Cassavetes, Stan Brakhage e Andy Warhol haviam despontado, o cinema independente não precisava mais da militância constante de um ministro da defesa. Mekas então volta-se para o seu material e entende que não só havia registrado, sem saber que o fazia, a história da vanguarda, mas que também tinha desenvolvido um estilo e uma linguagem próprios. Um estilo “caseiro” e “amador”, baseado no uso da câmera na mão e em um modo quase intuitivo de manipular a velocidade do registro. 

Jonas Mekas por Liz WendelboJonas Mekas por Liz Wendelbo

Em 1969, ele reúne parte dessas imagens em Walden: aka Diaries Notes and Sketches (Walden, também conhecido como diários, notas e esboços), um diário, como anuncia o título, no qual se vê parte do cotidiano da vanguarda estadunidense entre 1967 e 1969. Há imagens do casamento de John Lennon e Yoko Ono, caminhadas com Allen Ginsberg pela cidade, passeios de barco com membros do Fluxus. Um tour de force com a câmera, Walden parece uma explosão de fogos de artifício, um staccato rítmico de cores e transparências – um filme de família com a virtuosidade de uma pintura pontilista.

A partir dos anos 70, o cineasta começa a montar novos “capítulos” ou “cadernos” desse longo diário.  Se agrupados, todos os seus filmes compõem um único e longo diário de aproximadamente 1200 minutos, no qual temos nada menos que 65 anos da vida de Mekas celebrando a vida ao lado de sua família estendida nessa casa que ele escolheu como sua: a cultura. 

E ele celebra. A começar pelos títulos: Paradise Not Yet Lost; This side of Paradise; As I Was Moving Ahead I Ocasionally Saw Brief Glimpses of Beauty; Out-takes of the Life of a Happy.

À despeito do horror, à despeito das sombras; por causa do horror e das sombras, Mekas celebra. Uma vez, em uma entrevista nunca publicada, ele me disse: “A beleza não é neutra. Há muita feiura no mundo, é preciso fazer algo de belo”. Era 2013 e ele apenas reelaborava, com outras palavras, o que já havia escrito em 1962 quando abordava a responsabilidade do crítico de cinema: “o mal e a feiura que cuidem de si mesmos; é o belo e o bom que precisam do nosso cuidado”. 

Nas últimas décadas de sua vida, Mekas teve sua obra exibida nas mais importantes cinematecas, museus e eventos de arte do mundo: do Centre Georges Pompidou ao Arsenal em Berlim, da Bienal de São Paulo à documenta de Kassel. Com a difusão de seus filmes, o cineasta virou uma espécie de herói, santo e inspiração para legiões de jovens que, começando a produzir, viam nele um modelo de integridade e integração de arte e vida. Mekas tornou-se o exemplo vivo de que é possível não se dobrar a autoritarismos ou imposições (políticas, de mercado ou estéticas), para inventar as próprias regras do jogo sem jamais perder a ternura ou a alegria. 

Mekas nos deixa em um momento sombrio, quando todas as forças parecem querer apartar os laços que unem uma mão à outra e autoridades celebram o exílio dos que ousam sonhar outros mundos. Que ele e seus filmes permaneçam como as “coroas da vida” de que falou quando escreveu sobre Richter; pontes sinalizando que, mesmo em tempos graves, é possível seguir adiante para (como diz o título de um de seus filmes) “ocasionalmente encontrar lampejos de beleza”.

 

Artigo publicado originalmente no Folha de São Paulo

 

por Patrícia Mourão
Afroscreen | 28 Janeiro 2019 | cinema, EUA, Jonas Mekas, Lituânia