alheava_filme

1º momento de reflexão

Alheava-film, 2007, de Manuel Santos Maia tem como temática central o processo de (Des)Colonização Portuguesa em África, como tal faz parte do projecto de mesmo título Alheava1, que tem vindo a ser construído e mostrado desde 1999 e se pode acompanhar documentalmente aqui.

O filme é um trabalho de autor, independente, que funciona por si só mas também no conjunto faz parte desse projecto abrangente, em que Manuel Santos Maia propõe-se contribuir para levantar o véu2 das memórias, das estórias que lhe contam e das histórias que lê, da ex-África portuguesa. Vai assim colhendo, juntando e dispondo a público diversos materiais e registos, relativos a esse período, desde objectos, imagens, a dados escritos e orais, pertencentes a membros da sua família ou retirados de livros de História e de outros documentos oficiais. Neste (re)contar, neste (re)memorar, há uma reconstrução selectiva que é inerente a qualquer ser humano e a partir do que é dito e mostrado surgem sempre novos apontamentos para (re)contar, para (re)memorar de novo.

O representado em Alheava é a realidade dos portugueses que povoaram e viveram em Moçambique, no período anterior e posterior ao 25 de Abril e a representação é a informação que se guardou, que pertence ao passado, e se reconhece fundida com uma reflexão sobre esse passado, em que nos são transmitidas informações que se foram acrescentando em momentos posteriores, constituindo deste modo um filme visual e mental, feito de registos múltiplos, do que se sabe e do que se pensa que sabe.


2º momento de reflexão

Em Alheava-film temos o híbrido da estória biográfica com a história político-social, estamos diante de uma projecção que corresponde a um trajecto de (re)memoração do eu-colectivo, isto porque se há uma experiência de vida pessoal que se visiona há também uma relação dessa experiência com outras vidas similares, do mesmo lugar e do mesmo tempo, estamos diante de uma narrativa que evoca duplamente a estória familiar do seu autor e o processo de (des)colonização portuguesa em África3, no caso do filme, de Moçambique, que sabemos corresponder a um período da História de Portugal.

A imagem foi montada a partir de filmes super 8 feitos por familiares de Manuel Santos Maia quando este vivia e sonhava em África, traz-nos o passado e a possibilidade de o visitar, assim entramos na zona da memória identitária. A memória pode ser tida aqui como um elemento essencial do que se costuma chamar a “identidade”, individual ou colectiva, cuja busca é uma das actividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia.

A voz do pai de Manuel Santos Maia orienta-nos4, num discurso memorial, captado em várias sessões, vai-nos dando conta da sua situação de vida relativamente ao facto de ter vivido em África e dela ter partido, juntamente com a sua família, para Portugal, no período pós-colonial. Evocar o passado, através de imagens e palavras sobre esse período, que correm em simultâneo mas que não se correspondem, leva-nos a uma projecção documental contudo ficcionada. Imagens e palavras são documentos todavia as imagens são anacrónicas, as palavras não as descrevem, jogam entre si no plano fílmico em mecanismos de desfasamento espacio-temporal, complementam-se e vão além do documento. Se o que vemos e o que ouvimos, como reunidos num conjunto único, pertencem de facto a momentos diferentes logo a realidade documental é passível de ser questionada, entre o que se vê e o que se ouve existe uma ficção que é própria da (re)memoração, sobre o fundo branco do ecrã preenchem-se lapsos espaciais e silêncios temporais. Sugerindo a ideia de desvio, de desequilíbrio, esses lapsos e silêncios preenchidos tornam o passado presentificado, como um fantasma ao qual se procura dar um corpo vivo, consciente e inconscientemente crítico.

A ideia de memória de Alheava- film é não somente pessoal e histórica, produção narrativa documental, mas também plástica e criativa, produção do imaginário mental5. A imagem sofre o abalo da descontinuidade, de imagem a imagem, interrupções, cortes, desfocagens, como recordar, rememorar ou construir a memória diante de um espaço vazio de um tempo passado? A palavra solta um discurso feito de lembranças, procura preencher um vácuo feito de silêncio, diz-se o que no presente se pensa, se idealiza, se imagina ou se conhece e se sabe? Estas e outras questões são dúvidas por esclarecer, no aqui e agora sobre o ali e então, no fundo sentimos um processo crítico sobre a memória a ser despoletado e que é intrínseco ao trabalho que Manuel Santos Maia tem vindo a apresentar ao longo do projecto alheava.

Entre o sujeito real e o sujeito representado, entre o eu e o outro, ficamos com um meta-ser, o ser trans-fusão de possibilidades, o que é do presente e é do passado, o que é de Portugal e o que é de Moçambique. Neste terceiro ser a dimensão do desequilíbrio é ajustada por estratégias de transmissão e transcrição, seja de imagens, seja de palavras, claramente uma transmissão de tempos e de espaços. Neste ser trans-formado, o objecto videográfico é o seu corpo, misturam-se na distância do tempo vivido o ser pessoal com o ser impessoal, o eu com o qualquer outro. Com este objecto ampliam-se perspectivas, pois permite tecer um discurso crítico, que analisa e vaticina, de dentro e de fora e na proximidade da experiência de vida. O ser pessoal, que sente de dentro a melancolia no pensamento, que respira e se emociona com o próprio discurso. E, na distância da história, o ser impessoal, que está de fora das decisões frias e implacáveis dos homens de poder, factual e atento. No fundo ambos atenderam só que nunca entenderam a mudança de vida de milhares de portugueses em África, deslocados para um Portugal, para muitos, desconhecido.

3º momento

Em Alheava- film vejo um documento videográfico ensaístico6  por isso redijo um documento escrito sobre ele ensaiando também uma versão flexível e autêntica da história e da estória que nele é tratada, o todo é em simultâneo objectivo e subjectivo. É um resultado que traduz a objectivação do subjectivo vivido, porque estamos perante um objecto de realização videográfica mas que junta documentos fílmicos e orais da história colonial portuguesa e da história de vida pessoal, que consiste o filme de Manuel Santos Maia, em cada momento de reflexão fui dando conta do todo e me inteirando eu também como parte.

Semelhante ao momento em que fechamos os olhos apagam-se as luzes do cinema, semelhante ao momento em que desligando a nossa atenção das distracções mundanas nos concentramos na nossa mente, o filme começa com uma viajem, parece que vamos dentro de um veículo, o ecrã é a janela, embrenhamo-nos pelo mato, em seguida uma imagem branca que se pode equiparar a uma zona de esquecimento, a dada altura visiona-se umas letras que correm em movimento ascendente, umas pessoas que parecem vir numa marcha pública, tudo muito desfocado e como uma pintura a óleo antiga e que não teve o necessário tempo de preparação da tela aparecem rachaduras (craclet) provocando a sensação de se estar numa zona antiga, na nossa perscrutação interior, em que a passagem dos anos foram tornando menos nítidas mas onde ainda se encontra algo que a lembrança vai reavivando.

Para além das informações, dos dados factuais, quer na imagem quer nas palavras, vamos colhendo impressões e comentários, de certa forma catárticos, como se passássemos por uma expiação, ainda a medo, do silêncio, visionamos paisagens urbanas, campos, flores, e vamos ouvindo expressões como “foi uma destruição total”, “de maneira que é assim… mas não se pode dizer nada porque se falarmos de alguma coisa estamos a insultar e essas coisas todas e a gente sabe mas não pode dizer”, “e ninguém sabe disso… ninguém conta”, “e de maneira que é assim… não posso dizer mais nada”. Em determinado momento confirma-se mesmo, “ o medo reinava por todos os lados, por onde a gente andava havia medo, tanto em brancos como em pretos, tudo amedrontado, eram prisões por todo o lado, prisões, prisões, por todo o lado, prendia-se por tudo e por nada, prisões, prisões, de brancos e pretos”.

Um filme que aborda a Guerra em África, a Descolonização, os que ficaram e os que vieram de África para Portugal, fala-nos de um conflito de identidades políticas e culturais, que entre tantas coisas abalou a memória pela qual lutavam essas identidades que se assumiam a si como nações. Uma guerra entre uma África livre, pré-colonial, na altura um passado de há cerca de 500 anos atrás, e uma África tomada, colonial, na altura feita por muitos militares vindos de Portugal ao encontro de outros portugueses que tendo a mesma nacionalidade foram apreendendo outros modos de estar7. Que Guerra é esta? Está aí alguém? Quem veio de lá? Para onde fomos? E somos… ainda… de lá ou de cá?

Na memória de um tempo e de um lugar imprecisos, somos, aqui e agora, como personagens mas reais, somos ecos de perguntas feitas de silêncio, perdidos em respostas vagas, despersonalizadas, da História dita oficial e que não colmatam o estado de alienação dos alheados Manuel Santos Maia permite-se lembrar, partilhar, reconstruir trazendo memórias suas e de outros desse período. A voz de seu pai é o meio de activação dessas perguntas “o governo daqui foi a Lusaka entregar o governo de Moçambique a Samora Machel, não foi através de eleições, quer dizer, não foi uma descolonização pacífica, nem legal, foi muito aldrabada, muito vigarizada (não sei de que maneira), e portanto não deram garantias a ninguém, àqueles que lá estavam e tinha feito a sua vida à 20, 30, 40 50 anos, não garantiram nada a ninguém, novos e velhos, todos a fugir, fugiu tudo, nada era de ninguém, com uma simples acusação prendiam uma pessoa e nunca mais se sabia dela, só por vinganças… era um país onde já não se podia viver”.

Ao ver o filme também eu pensei com uma voz que vinha de longe (passado) e no entanto próxima (presente), do mesmo lugar e do mesmo tempo que o autor do filme, ambos nascidos em Moçambique e a viver em Portugal. Acabamos por ouvir em tom confessional através de seu pai “e veio a destruição de Moçambique… Moçambique foi assim, dessa maneira, mas ninguém fala, ninguém fala, ninguém fala das mudanças da população de um lado para o outro, pronto, se quiseres damos isto por terminado…” Visionamos em simultâneo o ecrã a ficar branco e depois a criança que se vai aproximando. E afinal, o filme continua… Para escrever sobre ele, vem me à ideia um período indefinido na minha memória pessoal mas que as narrativas formais da História definiram de descolonização e de retorno, situo-me, por isso, dentro e fora, numa forma informal, entre a narrativa pessoal e histórica. Dentro desta in-forma, que utilizo neste texto, o discurso é não-linear, entre o crítico e o literário, entre o vivido e a ficção. Como no filme às vezes é preciso repetir: somos, aqui e agora, como personagens mas reais. O nome de família de “Retornados” nos deram, contudo, a tinta invisível é de “Destroçados” o apelido que lemos no B.I., mesmo que este passe a ser Cartão de Cidadão, seremos até ao fim da nossa história da família dos “De” e não dos “Re”, seremos ambíguos cidadãos. Ao longo da projecção o som como se de um eco se tratasse, as imagens brancas, os desfoques, as manchas e fios de pó, as cores esbatidas e os tons ocre, vão-nos dando conta de um passado que a memória foi desenterrando mas que deambula como um sonâmbulo, de olhos fechados.

«Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz»8

E somos… ainda… de lá ou de cá? A dúvida do ver, do ouvir, do dizer, é uma estratégia subversiva útil, que provém de uma narrativa cinematográfica que busca a técnica da inserção: na qual tempo e espaço são manipulados na edição de montagem, criando o seu ritmo, sendo que estes filmes também chamados de filmes de montagem. Permite que se soltem perguntas, perguntas atrás de perguntas, em camadas, perguntas de 2ª, ou talvez de 3ª geração, a dos netos, a minha, a do Manuel Santos Maia, neste texto, nesta escrita, acabei por reunir todas as perguntas numa só, que memória esta, neste filme, que não me lembro e, no entanto, que acompanha o bater do ritmo do coração à flor da pele?

 

Título original: alheava_filme
Realização: Manuel Santos Maia
Ano: 2006 – 2007
Argumento: Manuel Santos Maia
Narrador: António Manuel Machado Maia
Captação Original (8mm): António Manuel Machado Maia
Edição Vídeo: Manuel Santos Maia e José Roseira
Pós-produção de imagem: José Roseira
Concepção sonora: Manuel Santos Maia
Engenheiro de Som: Pedro Lima
Mistura: Pedro Lima
Vídeo realizado a partir de originais de filmes de 8mm, editados em Mini-DV Vídeo DVD-Pal, Cor, Audio PCM Stereo
Duração: 35min

 

África_já ali
alheava_filme_Manuel Santos Maia
A Costa dos Murmúrios_Margarida Cardoso
segunda, 13 de Set. de 2010

  • 1. O título Alheava surgido da leitura da obra De Profundis Valsa Lenta do escritor português José C. Pires [PIRES, José Cardoso, De Profundis Valsa Lenta. Portugal, Lisboa: Circulo de Leitores 1998]
  • 2. “A perspectiva pós-colonial não se resume de modo algum àquilo que, de um modo mais ou menos consensual ou polémico, se tem vindo a abrigar sob a designação de estudos pós-coloniais no espaço anglófono, mas conta também com produção desenvolvida noutras áreas complementares e decisivas para a sua renovação.” segundo SANCHES, Manuela Ribeiro, “Introdução”, in Portugal não é um país pequeno. Lisboa: Edições Cotovia, 2006, p. 9
  • 3. A (re)memoração permite-nos o encontro com analogias curiosas, li num romance documental de Isabel de Figueiredo o seguinte parágrafo que não posso deixar de citar, «Manuel deixou o seu coração em África. Também conheço quem lá tenha deixado dois automóveis ligeiros, um veículo todo-o-terreno, uma carrinha de carga, mais uma camioneta, duas vivendas, três machambas, bem como a conta no Banco Nacional Ultramarino, já convertida em meticais. Quem é que não foi deixando os seus múltiplos corações algures? Eu há muitos anos que o substituí pela aorta.» FIGUEIREDO, Isabel, Caderno de Memórias Coloniais. Coimbra: Editora Angelus Novus, 2010, p. 11
  • 4. Considerando que: «Os fenómenos da memória, seja nos seus aspectos biológicos ou psicológicos, mais não são do que os resultados dos sistemas dinâmicos de organização, e apenas existem enquanto a organização os mantém ou os reconstituir», ibid. p. 10
  • 5. A memória é um importante mecanismo de produção do imaginário como tal liga-se à plasticidade e criatividade mentais, in lcino SILVA –“A nossa memória está ao serviço dos nossos interesses” – revista pública - Jornal Público, 2006 e www.silvalab.com «A memória está ligada a uma utilidade, a uma potencialidade. Penso que o mundo é muito menos interessante do que a forma como o vemos. São os cérebros criativos que vêem o mundo com outras “nuances” e as partilham com os demais. O mundo tem a sua aspereza e precisamos desse processo criativo para torná-lo mais ameno. Se [você] muda o seu comportamento diante da realidade, consegue de alguma forma alterá-lo aos seus olhos, e isso exige uma grande dose de plasticidade, maleabilidade. Essa é uma das funções mais pujantes da nossa memória. Aprendemos como as coisas funcionam e gravamos os pontos em que falhamos, para fazer melhor da próxima vez. Não memorizamos tudo o que aconteceu exactamente como aconteceu. Por vezes, saber com precisão aquilo que realmente aconteceu não nos ajuda em grande coisa.»
  • 6. Denominamos ensaio uma certa modalidade de discurso científico ou filosófico que carrega atributos amiúde considerados “literários”, como a subjectividade do enfoque (explicitação do sujeito que fala), a eloquência da linguagem (preocupação com a expressividade do texto) e a liberdade do pensamento (concepção de escritura como criação, em vez de simples comunicação de ideias). Ver artigo de MACHADO, Arlindo, Filme Ensaio, in http://www.concinnitas.uerj.br/resumos5/machado.pdf
  • 7. A reportagem de DaCosta “Os Retornados estão a mudar Portugal” que é citada por João Medina na sua História de Portugal (volume XVIII), dá-nos um pouco esta ideia quando enuncia: «Uma parte dos que vieram pereceu, porém. Não sobreviveu à morte da sua Angola, do seu Moçambique, da sua Guiné que tentou reconstruir em Moncorvo, em Viseu, em Lisboa, em Sagres, do mesmo modo que tentou reconstruir Moncorvo, Viseu, Lisboa, em S. Tomé, na Índia, no Brasil. África foi portugalizada nos últimos séculos, Portugal africanizado nos últimos decénios. Os musseques do Prenda repetiram-se no Alto do Dafundo, as marrabentas agitaram os bailes dos domingos suburbanos, as churrasqueiras fumegaram nas estradas beirãs, o caril, a cerveja, o fumo, os fumos, subiram nos planaltos nortenhos, o imaginário dilatou-se, as histórias de caça, de aventuras, de magia, de abundância, perpassaram os cabeços de granito e giesta», DACOSTA, Daciano, “Partir de novo”, in Cadernos de Reportagem. Lisboa: Relógio de Água editores, 1984, p. 9
  • 8. COUTO, Mia, Terra Sonâmbula. Lisboa, Editorial Caminho, 8ª edição, 2004 (1992).

por Cristina de O Alves
Afroscreen | 10 Setembro 2010 | colonialismo, memória, retornados