A respeito da violência

 

Baseado num dos capítulos de Os Condenados da Terra (1961) do ativista e teórico anti-colonial Frantz Fanon, Concerning Violence é um documentário de Göran Olsson, o mesmo autor que realizou em 2011The Black Power Mixtape 1967-1975. Concerning Violence obriga-nos a discutir o tempo colonial, levantando questões que continuam em grande medida recalcadas. O caso colonial português é a este propósito sintomático. No filme, diversas imagens de arquivo produzidas pela televisão sueca documentam o modo como o sistema colonial em África se impôs pela violência. A violência encontrava-se presente nas relações quotidianas entre colonizadores e colonizados, nas espaços de trabalho, em contextos públicos e privados. Quando não era manifesta, encontrava-se latente, iminente, pronta a ser usada. A possibilidade constante de violência enquadrava o desenvolvimento de uma sociedade radicalmente desigual na qual a estrutura profissional, os direitos políticos e cívicos se encontravam racializados. O paternalismo que também caracterizava muitas sociedades coloniais não se encontrava desligado desta violência. Esta aparente versão benigna das relações coloniais traduzida pelo termo paternalismo, na qual o poder se exercia a partir de uma pretensa proximidade afectiva, continua hoje a servir para relatar a experiência colonial portuguesa e o seu ilusório excepcionalismo. Este paternalismo, desprezível em sim mesmo, só operava, no entanto, perante a possibilidade última da violência. Inúmeras vezes esta possibilidade passou do estado latente para o manifesto, pela acção do Estado colonial, da empresa privada e dos particulares, tanto no espaço público como doméstico.  Pela força destas imagens de arquivo e pelo ritmo que lhes é dado pelas palavras de Fanon, inseridas no ecrã, Olsson introduz-nos neste universo concentracionário que importa por demais voltar a discutir.

Mas esta obra deve também ser olhada criticamente. A selecção das palavras de Fanon efetuada por Olsson, ao mesmo tempo que permite discutir a experiência colonial, acaba por sugerir que a luta contra o sistema colonial se realizou sobretudo pelo recurso à violência. A legitimidade do uso da força para combater a violência colonial era evidente. E ainda assim, muitos processos de descolonização resultaram de uma diversificação dos repertórios de luta política, não redutíveis ao uso da violência, como o associativismo, a imprensa, o sindicalismo e mesmo o jogo político formal, embora nestes últimos dois casos não em territórios portugueses. Noutros contextos coloniais, a violência foi uma arma necessária.

Mas Olsson não apenas reduz a obra de Fanon, que interessava discutir noutros moldes, como limita a compreensão dos movimentos de resistência ao colonialismo, bastante mais complexos nos seus programas e repertórios de protesto. É interessante pensar o papel da violência nos processos de transformação social, quais os contextos em que é legítima e aqueles em que é considerada ilegítima e mesmo prejudicial às causas pelas quais se propõe lutar. Mas neste filme, a violência parece surgir por vezes como meio de purificação, um processo fundamental para começar tudo de novo, seja qual for o preço a pagar. Esta aparente abstracção da violência, retirando-a dos contextos históricos em que ganha mais ou menos legitimidade, é algo assustadora, nomeadamente quanto misturada com uma análise do mundo social que insiste na sua divisão em categorias estanques, de ordem racial, ou partindo de uma conceção simplista e mistificadora sobre a África e a Europa, linearidades que os próprios sistemas coloniais se esforçaram por criar e propor como modo de imaginação do mundo. É assim, por exemplo, que no filme é relativamente indiferente o tratamento dados às classes altas da Rodésia racista daquele que enquadra os colonos agricultores pobres. Quando na sala de cinema as pessoas se riem destes colonos pobres, rudes e pouco sofisticados, estão a rir-se não apenas do colonizador branco, do opressor, mas também daqueles que lhes são cultural e socialmente inferiores. Para compreender estas contradições sem anular o potencial crítico é fundamental recorrer a categorias analíticas mais ricas. Podemos encontrá-las, aliás, nos programas políticos dos movimentos de libertação colonial. A leitura de Cabral, Mondlane ou Pinto de Andrade, entre outros exemplos entre aqueles que lutaram contra o colonialismo português, revela a superioridade do seu pensamento, universalista, perante um sistema colonial onde imperava a violência e a discriminação. É pena que Olsson não dê a devida importância à riqueza dos textos e perspectivas destes e de outros autores e ativistas que combateram os regimes coloniais.



 

por Nuno Domingos
Afroscreen | 21 Setembro 2016 | Concerning Violence, Frantz Fanon, Göran Olsson, Os Condenados da Terra