Sanz-Briz: o “Anjo de Budapeste” que salvou milhares de judeus do Holocausto

Com apenas 33 anos, Ángel Sanz Briz, encarregado de negócios da delegação espanhola de Budapeste, enganou as autoridades nazis e húngaras ao permitir que 5.200 judeus escapassem da morte. Sete décadas após o fim da II Guerra, o diplomata tem agora o seu nome numa das principais avenidas da capital.

 “Os heróis existem em todos os tempos e lugares, mas é nas guerras, onde se dão as grandes injustiças, que mais sobressaem. Às vezes, passam despercebidos e durante anos ninguém reconhece os seus gestos. Ángel Sanz-Briz (…) pertence a esta última categoria de homens de aço”, escrevia há uns anos o biógrafo Fernando Diaz Villanueva sobre aquele que é considerado o “Schindler espanhol”.

Em 1942, Ángel Sanz Briz, natural de Saragoça, foi nomeado número dois da delegação espanhola de Budapeste. Era o seu segundo posto diplomático, depois de uma estreia no Cairo (Egito). Recém-casado, partiu para a cidade com a esposa, Adela Quijano, que um ano mais tarde daria à luz uma rapariga, a primeira dos cinco filhos do casal. Numa tentativa desesperada de travar as forças soviéticas a este, a 19 de março de 1944, as tropas de Hitler invadiram a Hungria, um país aliado.“ [Perante o cenário] O meu pai não pensou duas vezes, e mandou a minha mãe, que estava grávida de Paloma, e a minha irmã Adela de volta para Espanha”, recorda Ángela Sanz Briz.

Nos meses que se seguiram, o jovem diplomata e o chefe da delegação espanhola, Miguel Ángel Muguiro, assistiram, horrorizados, à perseguição, segregação, confinamento e deportação de milhares de judeus húngaros. O próprio Adolf Eichmann, responsável pela criação das câmaras de gás, encontrava-se no país para supervisionar os planos de extermínio da comunidade judaica.

Correspondência com Madrid: O silêncio do lado de lá

Sanz Briz e Muguiro alertaram reiteradamente o regime de Franco para o que estava a suceder aos judeus na Hungria e também em outros países da Europa. Num desses avisos, Sanz Briz informou Madrid que os nazis já haviam deportado para os campos de trabalho meio milhão de húngaros, entre estes “um grande número de mulheres, idosos e crianças perfeitamente inaptos para trabalhar” sobre o futuro dos quais corriam os rumores mais pessimistas.

Diante de tamanha barbárie e, de acordo com alguns historiadores, sem resposta das autoridades franquistas aos sucessivos apelos, o jovem diplomata resolveu atuar em consciência, salvando, com a ajuda dos funcionários da delegação, milhares de vidas. Para tal, recorreu a um decreto promulgado em 1924 por Primo de Rivera - militar e ditador que governou Espanha entre 1923 e 1930 – que concedia a nacionalidade espanhola aos judeus sefarditas (descendentes dos que foram expulsos de Espanha pelos Reis Católicos no final do século XV). Utilizando a caduca lei como pretexto, Sanz Briz conseguiu que Espanha lhe enviasse 200 passaportes, que depressa transformou em documentos passaportes familiares para poder resgatar mais pessoas. Como os sefarditas em Budapeste não ultrapassavam uma centena, os documentos serviram também para salvar judeus não sefarditas. 

Mas Sanz Briz - que entretanto passara a ocupar a chefia da delegação após a exoneração de Muguiro por parte das autoridades espanholas - não ficou por ali e, com imaginação e engenho, transformou os 200 documentos em milhares. “Consegui que o Governo húngaro autorizasse a protecção por parte de Espanha de 200 judeus sefarditas (…) Depois o trabalho foi relativamente fácil, das 200 unidades que me haviam sido cedidas [por Espanha] converti em 200 famílias, e as 200 famílias multiplicaram-se indefinidamente com o simples procedimento de não emitir qualquer passaporte (…) que tivesse um número superior a 200”, explica no livro “Los Judios em España ” (Joseph Perez, 2005). O diplomata acabou por salvar 5.200 judeus através da emissão de várias séries de salvo-condutos: 200 de A, 200 de B e por aí me diante até à letra Z.

Segundo a família Sanz Briz, o regime de Franco manteve-se em silêncio perante a ousadia do diplomata. “Nem o incentivaram a salvar os judeus, nem o impediram”, relata Ángela. Uma visão corroborada pelo neto Carlos García-Bañón Sanz-Briz: “O meu avô informou o Governo espanhol do que se estava a passar: a perseguição dos judeus por parte dos húngaros pró-nazis. Pelo que nós, sua família, sabemos, o Governo não respondeu, não disse nada. O meu avô agiu de forma independente e seguiu o seu melhor critério.” No entanto, ressalva: “Saber o que realmente se passou numa época tão conturbada como aquela é praticamente impossível. Existem alguns livros escritos por reputados historiadores e jornalistas, mas as opiniões divergem.”

Edifícios diplomáticos abrigavam milhares de judeus

Para acudir os judeus, o diplomata dirigia-se aos locais de deportação, e, aos gritos, pedia que se alguém tivesse alguma relação com Espanha se identificasse. Alguns tinham realmente raízes espanholas e mencionavam esse facto. Outros fingiam ter. De seguida, Sanz Briz levava-os para os edifícios da delegação espanhola, ao todo sete, onde ficavam a viver, uma vez que dentro dos mesmos estavam protegidos das forças do Hitler. Empenhado na missão de resgatar o maior número possível de vidas, o diplomata chegou a propor ao representante da Cruz Vermelha em Budapeste que erguesse a bandeira espanhola sobre os hospitais, os orfanatos e as maternidades da cidade, de forma que os judeus que ali se encontravam pudessem também usufruir de imunidade diplomática.

Durante o período mais negro da História da capital húngara, Sanz Briz não só colocou a vida e a carreira em risco para livrar milhares de judeus do Holocausto como empreendeu a sua fortuna pessoal na alimentação destes e na compra de edifícios – que transformou em dependências da delegação- para os proteger.

Na Hungria, o diplomata contava com o apoio dos seus colegas dos países neutrais - Raoul wallenberg da Suécia, Angelo Rota do Vaticano e Carl Lutz da Suíça -, que também seguiam uma política de proteção da comunidade judaica. Nos últimos meses de 1944, milhares de judeus encontravam-se recolhidos nas delegações destes países em Budapeste.

O regresso a Espanha

Em novembro de 1944, na iminência da entrada das tropas soviéticas na capital húngara, o Governo espanhol ordenou o regresso de Sanz Briz a Espanha. “O meu pai deixou Budapeste com tristeza”, garante a filha, “e manteve toda a vida silêncio sobre o que tinha vivido”. Apesar da saída do encarregado de negócios, a delegação espanhola continuou a atividade de auxílio aos judeus, agora sob a orientação de Giorgio Perlasca - um italiano veterano da Guerra Civil Espanhola que Sanz Briz empregara -, que, diante de as autoridades húngaras, se fazia passar por chefe provisório da delegação.

Quase todos os colaboradores da delegação espanhola desapareceram após a expulsão dos nazis do país pelas forças soviéticas. O mesmo sucedeu ao diplomata sueco Raoul wallenberg sobre o qual existem relatos de que terá sido mandado para a prisão de Lubjanka, em Moscovo (Rússia). “A mulher de Kofi Annan, ex-secretário-geral das Nações Unidas, é sobrinha de Wallenberg e costuma contar que, cada vez que o telefone toca em sua casa, imagina que é alguém a dar notícias do seu tio”, refere Ángela.

Sanz Briz na lista dos “Justos entre as Nações”

Em 1955, Israel atribuiu a Sanz-Briz o título de “Justo entre as Nações” – reconhecimento concedido aos não Judeus que durante a II Guerra Mundial salvaram vidas de Judeus perseguidos pelo regime nazi. No entanto, nesse mesmo ano Israel vetara a entrada de Espanha nas Nações Unidas, razão pela qual Franco não o autorizou a receber a distinção. Em 1989, nove anos após a sua morte, Sanz Briz voltaria a ser homenageado com o mesmo título na Embaixada de Israel em Madrid.

Depois da sua atribulada estadia na Hungria, o diplomata seguiu viagem para os Estados Unidos onde esteve nas delegações de Washington e São Francisco. Com uma longa e bem-sucedida carreira, Sanz Briz foi ainda o primeiro embaixador espanhol na China comunista. Entre 1973 e 1980, ocupou o cargo de embaixador junto da Santa Sé, em Roma, cidade que o veria desaparecer para sempre.

Na sexta-feira, 16 de outubro, a Avenida Ángel Sanz Briz foi inaugurada em Budapeste juntamente com um monólito onde está registado o feito heróico do diplomata. Durante a cerimónia, os representantes do Estado espanhol e Gregorio Gulyás – o vice-presidente do Parlamento Nacional Húngaro, que pertence ao Fidesz, o partido do Presidente Viktor Órban – recordaram Sanz Briz na presença da sua família. No mesmo dia, a Hungria anunciava a conclusão do muro de arame farpado que mandou erguer na fronteira com a Croácia para travar a entrada de refugiados. Ironia do destino? A História também pode ser bem irónica.

 

 

 

 

por Catarina Andresen Bouça
A ler | 1 Novembro 2015 | diplomacia, Holocausto, judeus, Sanz-Briz