O voluntariado do eu

Algum de nós ou alguém do nosso círculo de amigos já foi, é ou quer ser voluntário. As motivações são diversas e os momentos da vida, nos quais essa vontade surge são também muito diferentes. Alguns começam cedo e podem entendê-lo como um importante caminho de aprendizagem, que acrescenta ensinamentos que a Escola, bem como outros contextos formais de aprendizagem não podem garantir. Outros apercebem-se da sua importância já mais tarde, já maduros, porque se abriu um espaço nas suas vidas, porque parecia faltar alguma coisa que os tornasse mais ricos, mais conscientes de si e do outro.

O artigo 2º da Lei Portuguesa do Voluntariado (nº71/98) define o voluntariado da seguinte forma: “Voluntariado é o conjunto de ações de interesse social e comunitário realizadas de forma desinteressada por pessoas, no âmbito de projetos, programas e outras formas de intervenção ao serviço dos indivíduos, das famílias e da comunidade desenvolvidos sem fins lucrativos por entidades públicas ou privadas.”

As oportunidades de voluntariado são incontáveis. Existem cada vez mais organizações especializadas no recrutamento destes «exércitos», com intervenções nos mais diferentes domínios e disponibilizando pacotes à medida, desde 15 dias até uma vida inteira. Atualmente, pode ser-se voluntário em orfanatos, em lares de idosos, em associações estudantis, em abrigos de animais, em campos de refugiados, em hospitais, em escolas etc. Não há como não seduzir candidatos, porque no mundo do voluntariado há espaço para se ser aquilo que se quiser, durante o tempo que se quiser.

A escala do voluntariado é planetária. Posso ser voluntária na Associação de moradores do meu bairro, no hospital da minha cidade, como posso ambicionar mais. E ambicionar mais pode significar sair do meu país, até do meu continente, preferencialmente, para outro, onde ajudar faça mais sentido do que no meu bairro, onde o nº de pobres por m2 seja substancialmente maior.

Esta escala atinge o seu expoente máximo nos mais diversos países, quer do continente africano, quer da América latina, da Ásia e, mais recentemente, na zona dos Balcãs, onde a dignidade humana parece ser posta em causa, todos os dias. E, como já dizia Pessoa, “o melhor do mundo são as crianças”. Quem é que já não verteu uma lágrima, ou deu um murro na mesa, ou perdeu uma noite de sono depois de ver um daqueles documentários, onde os protagonistas são crianças desnutridas (ou carinhosamente apelidadas de meninos do Biafra), mulheres com o peito desnudo e descaído depois de muitos filhos trazidos ao mundo, famílias numerosas em casas de palha sem água potável, grávidas em camas de hospital improvisadas e insalubres? Imagens da mais profunda miséria humana que nos tocam, e relativamente às quais nos questionamos “Qual o futuro desta gente?” Geralmente seguido de um suspiro: “Coitados…”.

Movidos por esta solidariedade, pela crença de que o mundo deve ser melhor e que cada um de nós pode ser um impulsionador dessa mudança, milhares de pessoas, todos os anos, deixam para trás os seus países e rumam a outros para esta grande odisseia que é o voluntariado.

Vivo num pequeno país africano há cinco anos e, como diz a sabedoria popular, “ninguém nasce ensinado”. Quando me mudei, foi para trabalhar. Candidatei-me, fui a algumas entrevistas e fui escolhida para trabalhar numa ONG. Sempre recebi o meu salário, pago as minhas contas, como também o fazia em Lisboa. Apesar de se tratar de um trabalho remunerado, é verdade que quando se está num país mais pobre, onde a ajuda externa e as agências de cooperação reinam, são, frequentemente, sublinhadas palavras como missão, dar, salvar, sacrifício.

A realidade é dura. A maioria das pessoas é, de facto, bastante pobre. Os sistemas de educação, justiça, saúde, proteção social são muitíssimo frágeis. Os governos pouco estáveis. A organização das políticas pouco eficiente. Contudo, nem este, nem provavelmente outros países com características semelhantes, são pobres ao ponto de terem de comer todo o peixe que lhes querem vender.

No país onde vivo, tal como em qualquer outro país do mundo, existem muitos perfis, porque nós os seres humanos tendemos a arrumar as pessoas em tipologias, de acordo com os seus comportamentos e interesses. Tem muitas desvantagens, contudo, quando o fazemos, acreditamos que é um mecanismo de identidade e de seleção, que nos ajuda a distinguir aquilo que somos/não somos e aquilo do qual queremos/não queremos fazer parte.

Tratando-se de um país africano, há um perfil evidente e generalista, que é o dos brancos. Dentro deste perfil (no qual eu própria me incluo), podem estar os mais diferentes subperfis: os cooperantes, os empresários, os diplomatas, os hippies e, last but not least, os que salvam África. Desengane-se o leitor que acha que estes subperfis não podem misturar-se, porque existem notórias mutações de empresários salvadores de áfrica, de cooperantes empresários. Enfim, as combinações são infinitas, porém, foquemo-nos naqueles que salvam áfrica.

A propósito desta questão, um destes dias, uma amiga enviou-me um link, que partilho aqui, convido a visitarem-no.

Nesta página do instagram, as autoras apresentam, através da figura da Barbie, imagens-tipo que caracterizam, precisamente, este grande número de pessoas.

Quais são então alguns dos requisitos necessários para se entrar neste subperfil?

- Dar, dar e dar. Tudo o que se tem e o que não se tem, o que é bom e também o que já não o é assim tanto, porque o importante é mesmo dar;

- Definir sorrisos e meninos vestidos com camisolas do Cristiano Ronaldo, como indicadores de sucesso;

- Ver toda a sua vida transformada depois de descarregar um contentor de 40 pés;

- Dedicar, sem nada em troca, uma parte do seu precioso tempo a fazer aquilo que lhe parece o melhor para os outros;

- Tirar muitas, mas mesmo muitas fotos, para partilhar no facebook, instagram, blog e todos os canais que permitam que o mundo saiba o tamanho do nosso coração;

- Usar peças de roupa ou acessórios tradicionais locais, não porque tenham alguma coisa a ver connosco, mas porque nos tornam mais próximos das pessoas que estamos a salvar.

- Optar por tarefas nas quais não somos particularmente competentes, e que pouco ou nada têm a ver com a nossa formação profissional. Por exemplo, faz todo o sentido que um gestor financeiro, em vez de ajudar uma Instituição na organização da sua contabilidade, pinte a parede de uma Escola ou monte uma caixa de Legos, para que as crianças possam apenas ser salvas, e não tenham de fazer mesmo nada.

Depois desta descrição mais ou menos exaustiva, já algum dos leitores se apercebeu que conhece/conheceu alguém assim?

Pois é, eu conheço muitos. Muitos mais do que gostaria. E apesar do meu tom sarcástico, este artigo tem uma razão específica de ser. A de chamar a atenção para um perfil, para um tipo de voluntariado perigoso, amador, egocêntrico e incapacitador dos outros. Fazendo uma pesquisa no Google, multiplicam-se as páginas com o título “Ser voluntário só traz benefícios” e que seja claro que é também essa a ideia que defendo. Não obstante, o voluntariado não é uma moda, porque as pessoas, animais, ecossistemas junto dos quais o praticamos, também não são.

Ser voluntário, estar disponível para ajudar os outros tem de significar, em primeiro lugar, saber o que os outros querem/esperam de mim. Posso ter 1000 camisolas amarelas para oferecer, mas se o amarelo simbolizar o infortúnio num determinado país, fará sentido oferecer, só porque as pessoas são pobres? Posso estar muito cansada de ser advogada no meu escritório, em Évora, mas será que naquele sítio para onde me voluntariei, não são mesmo as minhas competências que fazem sentido, ao invés de ir desenhar Ratos Mickey nas paredes de um orfanato?

Ser voluntário também não deve ser um sacrifício. Não viajo 15 dias para África, como voluntário, só para me pôr à prova, só para conhecer os meus limites, só para ver se aguento viver em lugares bastante mais inóspitos do que aqueles aos quais estou habituada. Se tenho todas essas necessidades, então eu sugeriria uma visita a um técnico especializado, para falar sobre isso e sobre o que pode estar a provocar tamanha angústia.

Ser voluntário não é uma manifestação inteira do altruísmo. Nada o é no comportamento humano. Haverá sempre algum ganho para mim, mais que não seja uma nova linha no CV, que pode deixar alguns empregadores bastante impressionados. Porém, ser voluntário tem de ser mais responsável, mais sério que isso. E essa responsabilidade, essa seriedade devemo-las, acima de tudo, àqueles que nos propomos a ajudar. As pessoas podem ser pobres, mas não são estúpidas. As pessoas não têm de querer todos os bens que me apeteceu recolher numa angariação de bens, em Oliveira do Hospital. Todos aqueles que vivem em países africanos, de certeza, já entraram em salas/armazéns cheios de caixotes com manuais escolares descontextualizados; com aparelhómetros inutilizados, porque a peça em falta só se vende na Alemanha; com tampões da O.B fora do prazo, porque naquele local, as mulheres não usam tampões.

Acabe-se com esta realidade que desajuda, que incapacita, que incha, desincha e passa. Que deixa a sua pegada ecológica – viagens de avião, contentores carregados, megabytes de internet despendidos – e um EU muito cheio, muito transformado, uma lágrima na despedida aos sorrisos rasgados dos pobres meninos africanos. E ainda assim, o avião parte, a vida das pessoas continua, com mais uma camisola do Benfica, mas sem nada desenvolvido, sem nenhuma aprendizagem feita, sem nenhuma nova competência adquirida.

por Alice Gomes
A ler | 21 Junho 2016 | cooperação, crítica, Guiné Bissau, voluntariado